ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
SUB-ROGAÇÃO
Sumário

I - Constitui requisito da sub-rogação legal tipificado no nº. 1 do artigo 592º do Código Civil a satisfação pelo terceiro, total ou parcial, do direito do credor, aferindo-se os direitos do sub-rogado em função desse cumprimento (artigo 593º);
II - O denominado «direito de regresso» a que alude o nº. 4 da base XXXVII da Lei nº. 2127, de 3 de Agosto de 1965 - e, actualmente, o nº. 4 do artigo 31º da Lei nº. 100/97, de 13 de Setembro, que a revogou -, depende do mesmo requisito do cumprimento da obrigação mencionado na conclusão anterior, quer aquele direito se construa juridicamente como direito de regresso, quer como direito de sub-rogação;
III - Consequentemente, o «direito de regresso» contra os responsáveis por acidente de viação e simultaneamente de trabalho que vitimou determinado trabalhador só assiste à entidade patronal, nos termos dos preceitos citados, na medida em que tenha pago ao lesado as indemnizações respectivas assumidas no processo laboral;
IV - Enquanto esse pagamento não for efectuado a entidade patronal não é titular de um crédito sobre os responsáveis, e nem sequer de um crédito já existente mas ainda inexigível que autorizasse a condenação daqueles in futurum, ao abrigo dos artigos 472º, nº. 2, e 662º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"A", residente na freguesia de Arentim, concelho de Braga, intentou no tribunal desta cidade, em 23 de Março de 1999, contra
- B, e esposa D. C, residentes na freguesia de Cunha, do mesmo concelho,
- "Companhia de Seguros D, S.A.", agora "E - Companhia de Seguros, S.A.", com sede em Lisboa, acção ordinária visando em regresso obter a condenação destes solidariamente nas responsabilidades para ele emergentes de acção laboral que lhe foi movida na qualidade de entidade patronal de trabalhador vítima de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, imputável a facto dos réus (1).
Contestada a acção e prosseguindo os legais trâmites, veio a ser julgada improcedente por sentença de 20 de Fevereiro de 2001.
A apelação dos primeiros réus ficou deserta por falta de alegação, enquanto a da ré seguradora foi julgada extinta no tribunal ad quem por impossibilidade de conhecimento do seu objecto (2).
O autor apelou também sem êxito perante a Relação do Porto, que negou provimento ao recurso, mediante acórdão de 4 de Julho de 2002, do qual interpõe agora a presente revista.
Considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz dos fundamentos do acórdão recorrido, o objecto do recurso que assim é nosso mister decidir consiste na questão de direito de saber - pressupondo que o acidente é da responsabilidade do primeiro réu, de que, aliás, dependem as responsabilidades dos demais co-réus, como entendeu a 1.ª instância sem controvérsia actual - se o autor tem direito a haver destes, seja com fundamento em regresso, seja pela via da sub-rogação, as quantias por que, mercê do sinistro, ficou responsabilizado no processo laboral relativamente ao sinistrado (3), conquanto permaneça incerto por falta de prova se tais quantias foram a este último pagas por aquele.
II
No tocante à factualidade relevante na perspectiva da problemática sub iudicio, a Relação cingiu-se à matéria de facto assente em 1.ª instância, para a qual, na falta de impugnação ou alteração, também aqui se remete, nos termos do nº. 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões pertinentes.

1. Partindo assim dos factos provados, a sentença concluiu em primeiro lugar, com nuances despiciendas no âmbito da revista, pela responsabilidade dos réus - maxime do primeiro réu a título principal, nos termos já referidos - na eclosão e consequências do acidente.
Quanto, por seu turno, às concretas pretensões discriminadas na petição inicial (4), veio a entender-se, ponderado o nº. 4 da base XXXVII da Lei nº. 2127, de 3 de Agosto de 1965 (5), que o autor, invocando o direito de regresso contra os terceiros responsáveis pelo acidente, estava a usar simultaneamente a qualidade de sub-rogado nos direitos do lesado, com fundamento no nº. 1 do artigo 592º do Código Civil (6).
Todavia - sublinha a sentença, citando o assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Novembro de 1977 (7), e outra jurisprudência e doutrina -, «a sub-rogação está dependente da satisfação efectiva do pagamento que é a condição e a medida dos direitos do sub-rogado», de forma que a entidade patronal, por exemplo, só pode exigir do terceiro responsável pelo acidente o que houver pago e não o que tenha a pagar no futuro.
Por outro lado, prossegue, a base XXXVII da Lei nº. 2127 e o artigo 592º, nº. 1, do Código Civil devem ser interpretados no sentido de que se possa exigir ao autor a prova de que pagou as quantias em que foi judicialmente responsabilizado.
E na falta dessa prova, como é o caso, a dúvida sobre o efectivo pagamento resolve-se contra ele (artigo 342º, nº. 1, do mesmo Código) (8).

2. Sensivelmente no sentido exposto foi também o entendimento da Relação do Porto ao considerar, em suma, evocando autorizada doutrina e jurisprudência, que a base XXXVII, nº. 4, da Lei nº. 2127 - ainda em vigor à data do acidente, cujo regime, de resto, passou para a nova Lei nº. 100/97, de 13 de Setembro, que a substituiu (9) -, conquanto aludindo a um direito de regresso, o que na realidade consagra é um direito de sub-rogação (legal) e não um verdadeiro direito de regresso, tal como paradigmaticamente em sede de responsabilidade solidária (artigo 497º do Código Civil), que no caso não se verifica.
E pressuposto irrecusável da sub-rogação legal do autor é «o efectivo pagamento» das quantias sub iudicio, tanto mais que «o solvens apenas se sub-roga aos direitos do credor na exacta medida do que paga (artigo 593º do Código Civil)».
Acontece, porém, que o autor não provou ter pago essas quantias - peticionadas nas alíneas a), b), c) e d) (supra, nota 2) - e tão-pouco alegou sequer o pagamento, pelo que, observa inclusivamente o acórdão em revista, a acção podia ter sido logo julgada no saneador.
O resultado não seria, aliás, diferente caso se qualificasse como direito de regresso a faculdade concedida pelo nº. 4 da citada base XXXVII, posto que o mesmo ónus impenderia nessa hipótese sobre o autor, a condicionar a procedência da pretensão accionada (10).

3. Da decisão dissente o recorrente mediante a presente revista, restringindo, todavia, o objecto do recurso aos pedidos das alíneas a), c), d) e f), e sintetizando a propósito a alegação nas conclusões seguintes:
3.1. «Que a entidade patronal responsável pelo pagamento da indemnização a um trabalhador por danos emergentes do acidente de trabalho, simultaneamente de viação, dispõe de dois direitos para se ressarcir dos prejuízos resultantes da obrigação de pagamento dos danos sofridos pelo lesado - um direito de regresso nos termos do artigo 497º do Código Civil, e um direito de sub-rogação legal, baseado no artigo 592º do Código Civil, ex vi da base XXXVII da Lei nº. 2127;
3.2. «Que o direito de sub-rogação legal só pode ser exercido se a entidade patronal efectuar o pagamento da indemnização devida ao trabalhador;
3.3. «Que o direito de regresso poderá ser exercido sem a condição prévia de pagamento, ficando apenas o seu exercício efectivo (executivo) dependente da prova desse facto;
3.4. «Consequentemente os pedidos formulados pelo recorrente nas alíneas a), c) e d) da petição inicial deviam ter sido julgados procedentes ao abrigo do que dispõe o artigo 662º do Código de Processo Civil;
3.5. «Que o pedido formulado na alínea f) é um pedido de prestação de facto, que não está dependente de qualquer condição e cujo cumprimento é imediatamente exigível pelo que deveria ter sido reconhecido ao recorrente o seu imediato exercício contra os recorridos responsáveis, como são os recorridos, pelas consequências do sinistro, como emerge ‘apodictamente’ dos autos;
3.6. «Indicam-se, como violados, os normativos constantes dos artigos 497º, nº. 1, do Código Civil e a base XXXVII da Lei nº. 2127, de 3.08.1965, e o artigo 662º do Código de Processo Civil.»
Apenas a ré seguradora contra-alegou defendendo a confirmação do acórdão recorrido.
III
1. Delineados, nos termos expostos, os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
O objecto da presente revista consiste, por conseguinte, na questão, inicialmente equacionada, de saber se o autor recorrente tem direito a haver dos réus recorridos, com fundamento em regresso, ou sub-rogação, as quantias em que, por virtude do sinistro, ficou responsabilizado no processo laboral relativamente ao sinistrado, a despeito da falta de prova do pagamento das mesmas.
O acórdão sub iudicio responde em sentido negativo pelos fundamentos há pouco sintetizados (supra, II, 2.), merecendo a nossa concordância, com a consequente improcedência das conclusões que vêm de se enunciar.

2. Nesta linha interessará em todo o caso aduzir uma certa ordem de precisões.
2.1. De um modo geral fala-se de sub-rogação para designar determinadas situações em que juridicamente uma coisa se substitui a outra ou uma pessoa a outra pessoa. No primeiro caso, haverá sub-rogação real, no segundo, que ora mais importa, sub-rogação pessoal.
Abstraindo das situações de sub-rogação do credor ao devedor, neste momento de interesse muito secundário, define-se doutrinariamente a sub-rogação pessoal, «segundo um critério puramente descritivo», como a «substituição do credor (do sinistrado, na óptica do caso que nos ocupa], na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro [o autor da presente acção) que cumpre em lugar do devedor» (aqui os réus, responsáveis pelo acidente), «ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento» (11).
Está-se perante um fenómeno de transferência de créditos, que o Código Civil regula, como tal, no capítulo relativo à "transmissão de créditos e dívidas" (Capítulo IV do Título I do Livro II) - Secção II, artigos 589º e seguintes.
O fulcro da sub-rogação reside, porém, no cumprimento, de passo que a cessão de créditos, por exemplo, também regulada no mesmo Capítulo, tem fundamento jurídico no contrato de cessão entre o cedente e o cessionário.
Daí que os direitos do sub-rogado se meçam em função do cumprimento - «O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam», preceitua o nº. 1 do artigo 593º, sendo os itálicos nossos - enquanto o direito do cessionário se afere pelos termos do negócio respectivo.
Isto significa que o sub-rogado fica «investido na posição jurídica até aí pertencente ao credor pago» (12).
E a amplitude desta investidura revela-se primordialmente em dois aspectos.
Por um lado, o principal efeito da sub-rogação é, evidentemente, a transmissão, para o sub-rogado, do crédito que pertencia ao credor satisfeito.
Por outro lado, transmitem-se ainda para o sub-rogado, com o direito à prestação, quer as garantias, pessoais ou reais (fiança, penhor, hipoteca), quer os acessórios do crédito que não sejam inseparáveis da pessoa do credor primitivo (taxas de juro, cláusula penal) - acessorium sequitur principale. É a doutrina que dimana do artigo 582º, nº. 1, para a cessão de créditos, preceito aplicável à sub-rogação por força do artigo 594º (13).
São em todo o caso as circunstâncias peculiares do cumprimento, erigidas por lei em pressupostos da sub-rogação, que justificam, com a amplitude aludida, o sub-ingresso ou sub-entrada do terceiro na posição do primitivo credor (14).
Na falta de cumprimento, total ou parcial, da obrigação para com o credor não haverá sub-rogação. De contrário, a sub-rogação será total ou meramente parcial (artigo 593º, nº. 2).
Esta solução, entre nós firmada pelo assento de 9 de Novembro de 1977, evocado nas instâncias, é também a adoptada nos direitos da família romano-germânica em que o direito português se integra, tais os direitos italiano, francês e alemão, e ainda no direito brasileiro.
Na tónica do objecto do recurso que é nosso mister decidir, observe-se em remate, a propósito da figura cuja compreensão teórica se vem ensaiando, ser possível discernir ainda, pelo ângulo genético, a espécie da sub-rogação voluntária, por vontade do credor ou do devedor (artigo 589º e artigos 590º e 591º, respectivamente), ao lado de uma sub-rogação legal, em exclusivo fundada na lei, independentemente de declaração do credor ou do devedor (artigo 592º).

Nesta segunda modalidade, o terceiro que cumpre a obrigação por regra só fica sub-rogado nos direitos do credor em dois núcleos de situações tipificadas genericamente no nº. 1 do artigo 592º: quando tiver garantido o cumprimento; ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito.
E doutrinariamente ilustra-se esta última alternativa, a única por hipótese relevante no presente ensejo, afirmando-se, por exemplo, que existirá interesse directo no cumprimento, entre outras situações, sempre que o terceiro «esteja constituído no dever de o efectuar» (15).

2.2. Ora, sendo este justamente o caso do autor recorrente em veste de entidade patronal, conclui-se que a sub-rogação nos direitos do trabalhador sinistrado contra os responsáveis pelo acidente que o vitimou era de preceito, desde que, como vimos, satisfizesse os respectivos créditos do lesado, pagando-lhe efectivamente as quantias em que ficou responsabilizado no procedimento laboral.
No sentido dessa mesma exigência é, aliás, expresso o nº. 4 da base XXXVII da Lei n.º 2127: a entidade patronal «que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso (...)».
Sucede, porém, não se ter provado esse pagamento, um elemento constitutivo do direito do autor cuja prova sobre ele impendia (artigo 342º, nº. 1, do Código Civil).
Consequentemente, em correspondência com a específica intencionalidade do ónus probatório, a incerteza acerca da verificação daquele pressuposto da sub-rogação não pode deixar de se resolver contra ele, com a necessária improcedência da pretensão, nessa base, tal como vem decidido.

2.3. Polarizou, todavia, os debates no curso do processo, e vem posta em evidência na alegação da revista, a antinomia entre sub-rogação e direito de regresso.
Conclui, efectivamente, o recorrente neste plano - conclusão terceira da alegação, supra, II, 3.3. - que «o direito de regresso poderá ser exercido sem a condição prévia de pagamento, ficando apenas o seu exercício efectivo (executivo) dependente da prova desse facto».
Para além da «desconstrução» processual ao nível da estrutura da acção implícita no argumento - já apreciada no acórdão sub iudicio, que não importa retomar -, a afirmação de que o direito de regresso, em contraste com a sub-rogação, não depende do cumprimento da obrigação carece a nosso ver de fundamento jurídico plausível.
Desde logo, não se tratando de instituto a que o legislador tenha dedicado uma disciplina fundamental acabada, reconhecendo-o a ordem jurídica de forma avulsa, importa ter sempre presente a concreta normação a que nos casos concretos se reporte a invocação de um direito de regresso, e bem assim a teorização doutrinária desenvolvida a respeito da figura.
Ora, no caso sub iudicio temos inevitavelmente diante dos olhos a base XXXVII, nº. 4, da Lei nº. 2127.
Dir-se-ia, contudo, que a figura plasmada nesta norma, a despeito do nomen iuris, não constituiria verdadeiramente um direito de regresso em sentido técnico, antes se aproximando dos rasgos da sub-rogação (16).
E aceite-se que a própria estrutura do preceito, ao condicionar a acção da entidade patronal contra os responsáveis à inércia do lesado em agir durante certo prazo, induz de algum modo a feição de uma acção sub-rogatória sui generis.
Mas admitamos que se trata de regresso.
Como já se escreveu entre nós (17) embora nalgumas legislações estrangeiras a sub-rogação e o direito de regresso sejam tratados, não como realidades jurídicas «distintas ou opostas», mas como figuras «compatíveis» e até, em vários casos, «sobrepostas», as duas figuras constituem, no sistema legal português, realidades jurídicas «distintas« e mesmo «opostas», sem embargo de «certa afinidade substancial nas suas raízes».
A sub-rogação, como forma de «transmissão» das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito - conquanto limitado pelos termos do cumprimento - que pertencia ao primitivo credor. O direito de regresso, ao invés, nasce ex novo na titularidade daquele que extinguiu, no todo ou em parte, a relação creditória anterior.
Por outro lado, a sub-rogação envolve um «benefício» concedido a quem, sendo «terceiro», cumpre, por ter interesse na satisfação do direito do credor. O direito de regresso, no caso paradigmático da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de «reintegração» ou «restituição» concedido pela lei a quem, sendo «devedor» perante o acipiens, cumpre, todavia, para além do que lhe competia no plano das relações internas - por isso se não transmitindo para ele, na falta de estipulação, nem as «garantias» nem os «acessórios» da dívida, diversamente do que acontece na sub-rogação.
Ou seja - observa-se de outro lado (18) -, a «diversa configuração dos dois institutos justifica uma diferença de regimes» tal como a que vem de se apontar.
Parece-nos, em todo o caso, atenta a «afinidade substancial» entre ambos, que as diversidades de regime se justificarão na medida em que assim o exija a diferente natureza dos institutos. E, se bem pensamos, não será esse o caso do cumprimento da obrigação, inquestionável pressuposto da sub-rogação como agora o recorrente admite explicitamente na conclusão segunda da sua alegação.
Bem ao invés por maioria de razão deve o mesmo outrossim considerar-se requisito essencial do direito de regresso - e de plano, em princípio -, quando um dos tópicos fundamentais da sua natureza jurídica nos revela que o direito de regresso se constitui exactamente como direito novo na esfera do titular, mediante a extinção, pelo cumprimento, da relação creditória anterior.
Uma diferença, de resto, capaz de justificar neste caso a não transmissão das garantias e acessórios do crédito, que seria de preceito se de sub-rogação se tratasse.
Decisivo, porém, é que, perfilando-se ante o julgador a base XXXVII, nº. 4, ela própria condicione explicitamente o «direito de regresso» da entidade patronal contra os responsáveis pelo acidente ao pagamento da respectiva indemnização, como há pouco se evidenciou.
Consequentemente, o direito do autor concretamente emergente desse preceito estaria sempre subordinado ao requisito do cumprimento da obrigação, quer construindo-se tecnicamente como sub-rogação, quer como direito de regresso.
Daí ter a Relação concluído que a solução não podia deixar de ser a mesma nas duas hipóteses.

2.4. O recorrente alega, porém, que o seu direito de regresso se funda no artigo 497º do Código Civil.
Quid iuris?
Em primeiro lugar, a construção é radicalmente inaceitável, salvo o devido respeito.
Prevê o nº. 1 deste artigo a hipótese de uma pluralidade de responsáveis pelos danos, estipulando a solidariedade das respectivas obrigações.
Contudo, o próprio autor introduziu a presente acção nos tribunais sustentando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do primeiro réu, conducente, por seu turno, à responsabilidade da ré sua esposa e da seguradora.
Sendo estes, por conseguinte, os responsáveis solidários a que se refere o nº. 1 do artigo 497º e configurando-se a responsabilidade do autor a título de entidade empregadora, temos juridicamente de recusar-nos a reconhecê-lo partícipe daquela solidariedade determinada pela prática do facto ilícito.
Aliás, a regra das obrigações plurais é a da conjunção, ou parciaridade, visto que a solidariedade só pode existir se for determinada por lei ou estipulada pelos interessados (artigo 513º) (19), o que não é, portanto, o caso.
E ainda que a tese do recorrente fosse exacta, o certo é que o regresso entre responsáveis solidários aludido no nº. 2 do artigo 497º se encontra nuclearmente regulado no artigo 524º - «O devedor que satisfizer o direito do credor (...) tem direito de regresso» etc. - que o torna, por seu lado, dependente, também ele, do requisito do cumprimento da obrigação.

3. Bem se decidiu por todo o exposto no acórdão recorrido negando-se o reconhecimento de qualquer das pretensões do autor consubstanciadas nos pedidos formulados nas alíneas a), c), d) e f), da petição inicial, que integram o objecto do presente recurso, e pelos fundamentos aí expendidos, com que na essência se concorda.

4. Improcedem, consequentemente, as conclusões da alegação da revista, não se vislumbrando violação de alguma das normas indicadas pelo recorrente.
Nem mesmo do artigo 662º do Código de Processo Civil.
Parafraseando Vaz Serra (20) à luz do exposto, as disposições dos artigos 472º, nº. 2, e 662º não autorizam, com efeito, que aquele que, se pagar, terá o direito de regresso ou se sub-rogará nos direitos do credor peça a condenação do devedor no reembolso das prestações vincendas e ainda não pagas. E isto porque, «enquanto não efectuar o pagamento, não tem crédito contra o terceiro responsável (crédito cujo montante será determinado pelo do pagamento que fizer), e não tem sequer um crédito já existente mas ainda inexigível» (21).
Pode a solução não satisfazer de lege ferenda, mas é o direito em vigor.

Nega-se, por conseguinte, a revista com custas pelo autor recorrente (artigo 446º, nº. 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 23 de Outubro de 2003
Lucas Coelho
Ferreira Girão
Luís Fonseca
________________
(1) O acidente consistiu no atropelamento do assalariado rural F, a 27 de Outubro de 1997, em prédio agricultado pelo autor, devido à manobra de um tractor com atrelado que o primeiro réu conduzia, do qual resultaram para o sinistrado graves ferimentos que lhe determinaram incapacidade permanente de elevado grau. Conduzindo o veículo nesse momento, o réu exercia assim a sua actividade profissional de tractorista e alugador de máquinas agrícolas, donde aufere rendimentos com que faz face às despesas do seu agregado familiar. Por fim, a responsabilidade civil emergente de acidentes provocados pela utilização do tractor e do atrelado tinha sido transferida para a ré seguradora, mediante contrato de seguro em vigor na data do acidente.
(2) Não se estranhem, com efeito, em face do «vencimento» obtido, as apelações ainda ensaiadas pelos réus, uma vez que a sentença concluiu numa primeira parte, como adiante se dirá, que o acidente se deveu a facto ilícito e culposo do primeiro réu, responsabilidade, por seu turno, determinante das responsabilidades da ré esposa e da ré sua seguradora (cfr. supra, nota 1).
(3) A saber, segundo a discriminação das alíneas a) a h) do pedido formulado no petitório: a) 258.288$00, de indemnização por incapacidade temporária do sinistrado entre Outubro de 1997 e Abril de 1998; b) 5.000$00 de despesas com transportes obrigatórios do mesmo ao tribunal de trabalho; c) pensões anuais vitalícias actualizáveis, a favor dele, desde Abril de 1998, acrescidas de subsídio de Natal, tudo a pagar no mês de Dezembro, cujo montante anual em 1998 foi de 621.120$00; d) pensões anuais vitalícias actualizáveis, a favor de terceiro acompanhante, no valor de 25% das devidas ao sinistrado, acrescidas de idêntico subsídio e pagáveis nas mesmas condições; e) 94.400$00 de custas no tribunal de trabalho; f) os meios económicos necessários à prestação de caução no montante de 20.307.434$00 destinada a garantir o pagamento das pensões ao sinistrado; g) os honorários dos advogados dos autores pelo patrocínio no tribunal de trabalho e na presente acção, a liquidar em execução; h) as custas e a procuradoria neste processo. É, todavia, evidente que este derradeiro pedido careceria de sentido na literalidade da sua formulação. Os réus jamais podem ser condenados a pagar ao autor as custas deste processo porque o credor é o Estado e a ser o autor nelas condenado não disporia de qualquer título para as repetir dos réus.
(4) Cfr. supra, nota 2.
(5) Que regulava o direito dos trabalhadores e suas famílias à reparação por danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (artigo 1º), sendo o preceito citado do seguinte teor: «A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº. 1 (companheiros da vítima ou terceiros causadores do sinistro), se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar do acidente. (...)»
(6) Segundo o qual, «o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito» (frisado agora).
(7) «Boletim do Ministério da Justiça», nº. 271, págs. 100 e seguintes.
(8) E isto - distingue a sentença - no tocante às verbas peticionadas nas alíneas a) a d) há instantes evidenciadas, porque as demais são, por assim dizer, insusceptíveis de sub-rogação a vários títulos: as custas do processo laboral (alínea e)) por constituírem responsabilidade própria do autor frente ao Estado; a caução (alínea f)) por se tratar de uma garantia, não consubstanciando de per si qualquer pagamento; e os honorários dos advogados (alínea g)), direitos igualmente alheios ao património do lesado em que o autor pudesse sub-rogar-se.
(9) Com efeito - importa esclarecer -, o novel diploma veio aprovar, conforme a sua epígrafe, um «regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais», aliás muito inspirado na Lei nº. 2127, revogando esta a partir da data da entrada em vigor do diploma regulamentar previsto no seu artigo 41º (artigo 42º). A Lei nº. 100/97 reportou ademais a sua eficácia a essa data, declarando-se do mesmo passo aplicável tão-somente aos acidentes de trabalho ocorridos a partir dela (artigo 41º, nº. 1, alínea a)). Ora, não é este o caso do sinistro a que se reportam os presentes autos, a despeito da sua verificação em 27 de Outubro de 1997, como sabemos (supra, nota 1), posto que o diploma aludido, o Decreto-Lei nº. 143/99, de 30 de Abril - que regulamentou na verdade a Lei nº. 100/97 no tocante à reparação dos danos emergentes de acidentes laborais (artigo 1º, nº. 1) -, apenas iniciou a sua vigência ulteriormente. Embora o seu artigo 71º, nº. 1, previsse originariamente a entrada em vigor do mesmo a 1 de Outubro de 1999, o certo é que esta acabou por ser diferida para 1 de Janeiro de 2000 pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº. 382-A/99, de 22 de Setembro, por seu turno editado sem prazo especial de vacatio. De todo o modo, como a Relação observa, o regime do nº. 4 da base XXXVII da Lei nº. 2127 encontra-se substancialmente reproduzido no artigo 31º, nºs. 4 e 5, da nova Lei, com diferenças literais que seriam despiciendas no caso sub iudicio.
(10) Quanto aos demais pedidos respeitantes às custas laborais, caução e honorários decidiu a Relação no sentido da 1.ª instância e pelos mesmos fundamentos, agora ilustrados com novos subsídios jurisprudenciais. Como se vai ver, o recorrente excluiu, porém, do objecto da revista, se bem se interpreta, as custas laborais e os honorários dos advogados - além do pedido da alínea b) do petitório (transportes) -, restando daquelas três pretensões tão-somente a caução.
(11) Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II (Reimpressão da 7.ª edição de 1997), Almedina, Coimbra, Julho de 2001, págs. 335/336, que por instantes se segue.
(12) Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, revista e actualizada, Coimbra, 1989, pág. 282; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, pág. 766.
(13) Antunes Varela, op. cit., págs. 348 e segs.; s. 282 e seg.; Almeida Costa, ibidem; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, Lições policopiadas ao 3º Ano Jurídico de 1978/1979, Edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1979, págs. 583 e seguintes.
(14) Antunes Varela, op. cit., págs. 336/337; Almeida Costa, op. cit., pág. 768, observando a propósito, num confronto entre as figuras da cessão e da sub-rogação, que a sub-rogação «pressupõe a satisfação do crédito» e esta satisfação «representa a condição e a medida dos direitos do sub-rogado».
(15) Galvão Telles, op. cit., pág. 279.
(16) Nesta linha se orientou precisamente o acórdão sob recurso, a título principal, ponderando como vimos acerca do questionado normativo: «A lei anterior (Lei 1942 de 27/7/36) falava expressamente em sub-rogação legal, mas o facto de a nova lei falar em direito de regresso não significa, só por si, que seja esta a figura jurídica consagrada, visto que, afinal, o regime definido é idêntico ao que resultava da lei anterior e está mais próximo da sub-rogação do que de um verdadeiro direito de regresso, que dimana de uma situação de responsabilidade solidária (art. 497º do CC) que se não verifica no caso».
(17) Antunes Varela, op. cit., págs. 345/347, que momentaneamente seguimos de perto.
(18) Almeida Costa, op. cit., pág. 767.
(19) Cfr., por todos, Antunes Varela, op. cit., vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, pág. 749.
(20) Vaz Serra, Anotação ao acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Maio de 1966, «Boletim do Ministério da Justiça», nº. 157, págs. 269 e segs., «Revista de Legislação e de Jurisprudência», Ano 99º nº. 3332, págs. 360/361.
(21) Cfr. no mesmo sentido, Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, coligidas e publicadas por Abílio Neto e revistas pelo Professor, vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 1967, págs. 186/188.