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PATERNIDADE
ACÇÃO DE REGISTO
JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
Sumário
1. A paternidade presumida do marido da mãe em relação ao filho nascido em 1975, na constância do casamento daquela, tinha necessariamente de constar do seu assento do registo de nascimento lavrado em 1976, pelo que o mesmo não podia inserir a menção de que a pessoa nascida era filha de pessoa casada e de pai solteiro. 2. Lavrado assim o referido assento, sem a menção de paternidade do cônjuge da mãe, devia o Ministério Público ou o Conservador do Registo Civil, a todo o tempo, promover a sua rectificação. 3. As chamadas acções de estado têm principalmente por objecto o apuramento real de factos de estado civil das pessoas, e as chamadas acções de registo o acerto ou o desacerto de um acto de registo, por exemplo a omissão, a inexistência jurídica, a nulidade ou erro de declaração, incidindo as primeiras directamente sobre o facto objecto de registo civil, e as últimas sobre o próprio acto de registo. 4. É de registo, ou seja, de justificação judicial, a acção tendente à eliminação do assento de nascimento em causa da menção da paternidade de outrem que não o cônjuge da mãe ao tempo do nascimento, e à inserção nele da paternidade presumida deste último.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A Conservatória dos Registos Centrais instaurou, no dia 26 de Janeiro de 2001, com fundamento no registo de paternidade contrária à presunção legal, processo administrativo prévio tendente à eliminação do assento de nascimento de A da menção de ser filha de B e de C e à inserção da menção de ser filha de D e de C, o qual culminou com o parecer do Conservador no sentido dever o tribunal operar a rectificação.
O Ministério Público acompanhou o teor do parecer do Conservador dos Registos Centrais e o tribunal da 1ª instância negou a rectificação do referido registo de nascimento, sob o fundamento de a pretensão formulada dever ser objecto de acção de estado e não da acção de justificação judicial que foi utilizada.
O Ministério Público interpôs recurso de agravo da referida sentença e a Relação negou-lhe provimento sob o mesmo fundamento de, na espécie, não poder ser utilizada a acção de justificação judicial, mas a acção de estado.
O Ministério Público agravou para o Supremo Tribunal de Justiça do mencionado acórdão, formulando as seguintes conclusões de alegação:
- a pretensão formulada na acção não é a indagação da verdade biológica, mas a de rectificação do assento de nascimento mediante a activação das normas imperativas referentes à presunção legal de paternidade que, por erro nos elementos levados àquele assento, foram bloqueadas com a menção de paternidade diferente da presumida;
- a menção no assento de nascimento de que o pai é outrem que não o marido da mãe da pessoa cujo nascimento foi registado constitui inexactidão cuja rectificação deverá operar por via da acção de justificação judicial;
- o acórdão recorrido desrespeitou, por não aplicação, o disposto nos artigos 94º, 118º, nº. 1, 124º, nº. 2, 229º e 233º do Código do Registo Civil e 1832º, nº. 4, 1835º e 1836º do Código Civil, devendo ser substituído por outro que considere a acção de justificação judicial a adequada para operar a pretendida rectificação.
II
É a seguinte a factualidade declarada assente no acórdão recorrido:
1. No dia 30 de Julho de 1961, na Rua ..., rés-do-chão direito, freguesia do Socorro, Lisboa, perante o Conservador da 8ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, C casou com D, filho de ... e de ... .
2. O assento do registo de nascimento referente a A, nascida no dia 22 de Janeiro de 1975, foi lavrado sob o nº. 158 do ano de 1976, no Consulado de Portugal em Pretória, República da África do Sul, por declaração de B.
3. Consta do assento mencionado sob 2, integrado na Conservatória dos Registos Centrais sob o nº. 5934, ano de 1990, que A nasceu em Pretória e que é filha de B, este, por seu turno, filho ... e de ..., solteiro, natural de Feijão, Pampilhosa da Serra, e de C, casada, natural de Ribeira de Pena, filha de ... e de ... .
4. O casamento mencionado sob 1 foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença proferida no dia 18 de Outubro de 1976, transitada em julgado, proferida pelo Supremo Tribunal da África do Sul, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Janeiro de 1990, transitado em julgado no dia 9 de Fevereiro de 1990.
5. A contraiu casamento com E no dia 11 de Fevereiro de 1995, em Joanesburgo, República da África do Sul, alterando o nome para A.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se a correcção do assento do registo de nascimento de A deve operar por via da chamada acção de estado ou por via da chamada acção de registo.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação do recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática.
- regime legal que se sucedeu no tempo aplicável no caso vertente;
- síntese dos fundamentos das decisões da primeira instância e da Relação;
- síntese do núcleo fáctico relevante para a decisão do recurso;
- regime legal substantivo e adjectivo concretamente aplicável na espécie;
- distinção entre as chamadas acções de estado pessoal e de registo;
- solução para o caso decorrente dos factos e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1. O assento do registo de nascimento em causa foi lavrado no dia 22 de Janeiro de 1975 e o processo administrativo que deu origem a acção foi iniciado nos serviços do registo civil no dia 26 de Janeiro de 2001.
Decorrentemente, são aplicáveis, na espécie, as pertinentes normas substantivas de direito civil e de registo civil constantes da primeira versão do Código Civil de 1966 e do Código de Registo Civil de 1967, respectivamente (artigo 12º, nºs. 1 e 2, primeira parte do Código Civil).
Acresce que, relativamente às normas atinentes aos pressupostos e à dinâmica das acções de registo, são aplicáveis as pertinentes normas do Código do Registo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº. 131/95, de 6 de Junho, anteriores à sua alteração operada pelo Decreto-Lei nº. 272/2001, de 13 de Outubro (artigo 9º).
2. Na primeira instância entendeu-se que a pretensão formulada na acção não podia ser objecto de uma acção de justificação judicial, sob o fundamento de se estar perante um conflito de paternidades, uma resultante da perfilhação e outra da presunção.
Acrescentou-se estar em causa na acção a própria perfilhação e que as acções de registo apenas visam a correcção de vícios do registo, em termos de o colocar de harmonia com a verdade jurídica, como seria o caso da infirmação da identidade da mãe ou dos pressupostos da presunção da paternidade.
No acórdão recorrido entendeu-se essencialmente, por seu turno, ser substancialmente nulo o acto de registo em causa por contrariar a lei substantiva, na medida em que foi lavrado contra a presunção de paternidade do cônjuge da mãe de A, mas que essa nulidade deve ser objecto de acção de estado e não de registo, por esta só poder ter por objecto a inexistência jurídica do acto de registo e a sua nulidade decorrente de falsidade.
3. É a seguinte a síntese dos factos que essencialmente relevam na decisão do recurso:
Quando no dia 22 de Janeiro de 1975 nasceu A, a sua mãe, C, ainda era casada com D, casamento que só foi dissolvido por sentença proferida pelo Supremo Tribunal da África do Sul no dia 18 de Outubro de 1976.
No assento do registo de nascimento de A, lavrado sob declaração de B, ficou, porém, a constar que ela era filha deste e de C, casada.
Inscreveu-se no assento o nascimento de A, mas como o nascimento é inseparável de um parto, trata-se de um acto de registo civil complexo que compreende não só o acto de nascimento como também a maternidade.
Passou a haver uma declaração de fé pública consubstanciada no assento dotada de fé pública de que C deu à luz, no dia 22 de Janeiro de 1975, a filha A.
Dir-se-á que o nascimento de A ocorreu durante o casamento da mãe, que B se identificou como solteiro e aquela como casada, mas foi omitida no registo, por quem o lavrou, contra o disposto na lei, o registo da paternidade presumida.
4. Vejamos agora o pertinente regime de direito substantivo constante da lei civil e do registo civil, por esta ordem.
A regra ao tempo do nascimento de A era no sentido de que se presumia filho do marido da mãe o que nascesse na constância do casamento da última (artigos 1801º, nº. 1, do Código Civil e 36º, nº. 4, da Constituição, versão de 1976).
O momento da dissolução do casamento por divórcio era o do trânsito em julgado da respectiva sentença (artigo 1801º, nº. 2, do Código Civil).
Assim, de harmonia com o velho princípio de que pater is es quem nuptiae monstrant, o marido da mãe era considerado ipso iure como pai, independentemente de qualquer acto de reconhecimento a praticar por si e sem possibilidade de fazer qualquer declaração contrária a essa presunção
A paternidade que resultasse da referida presunção tinha obrigatoriamente que constar do registo de nascimento do filho, sob proibição de menções que a contrariassem, salvo declaração contrária à presunção do filho nascido nos cento e oitenta dias posteriores à celebração do casamento da mãe (artigos 1807º, nº. 1, do Código Civil e 36º, nº. 4, da Constituição, versão de 1976).
Se contra o disposto nas mencionadas normas se não inserisse a menção de paternidade do filho ou se mencionasse algo a ela contrária, qualquer interessado, o Ministério Público ou o funcionário do registo civil competente, a todo o tempo, deviam promover a rectificação do assento do registo de nascimento (artigos 1808º, nº. 1, do Código Civil e 36º, nº. 4, da Constituição, versão de 1976).
À luz da lei do registo civil, também a paternidade presumida devia obrigatoriamente constar do registo de nascimento respectivo (artigos 142º, nº. 1, do Código do Registo Civil, e 36º, nº. 4, da Constituição, versão de 1976).
Expressa a lei adjectiva de registo civil dever instaurar-se o processo de justificação judicial, por um lado, nas situações de suprimento da omissão do registo ou da sua reconstituição avulsa, da sua inexistência jurídica ou nulidade e, por outro, nos casos de rectificação de inexactidões, deficiências ou irregularidades do registo insanáveis por via administrativa e que o não tornem juridicamente inexistente ou nulo (artigo 233º, nºs. 1 e 2, do Código do Registo Civil de 1995).
Ademais, estabelece que o processo de justificação administrativa só é utilizável verificada que seja a existência, no contexto do registo, de alguma das deficiências ou irregularidades previstas nas alíneas c) e d) do nº. 1 do artigo 91º e no nº. 2 do artigo 93º (artigo 241º do Código do Registo Civil).
A própria rectificação do registo deve operar em processo de justificação judicial quando se suscitem dúvidas acerca da identidade das pessoas a quem o registo respeita ou esteja em causa o estabelecimento da filiação (artigo 94º do Código do Registo Civil).
Não se está perante alguma situação de registo juridicamente inexistente nem de nulidade decorrente de falsidade do registo, mas também se não está perante caso de utilização do processo de justificação administrativa ou de mera intervenção do conservador por despacho (artigos 85º, 87º a 89º, 92º, nº. 1, 94º e 241º do Código do Registo Civil).
Em consequência, a alternativa é entre a acção declarativa constitutiva comum e a acção especial do registo civil legalmente designada processo de justificação judicial.
5. Tal como se alude na sentença proferida na 1ª instância e no recurso, apesar da discussão vir de longe, ainda actualmente ocorre a dificuldade na distinção entre as acções de estado pessoal e as acções de registo.
A doutrina têm procedido à referida distinção, essencialmente com base no critério da correspondência ou não do registo à verdade na altura da sua feitura.
Nessa perspectiva, tem considerado, por um lado, que se o registo em causa corresponder à verdade ao tempo da sua feitura e se pretende alterar o estado civil que ele reflecte, a modificação só pode operar por via de uma acção de estado pessoal, por exemplo acções tendentes à impugnação da paternidade presumida, de investigação de paternidade, de investigação de maternidade ou de impugnação de perfilhação, conforme os casos.
E, por outro, que se se tratar de um erro ou de uma omissão, designadamente de omissão da feitura do registo de nascimento ou de algumas da suas formalidades, de se mencionar erradamente a data do nascimento ou de se inserir um nascimento suposto, a acção a intentar é a de registo (F. A. PIRES DE LIMA, "Revista de Legislação e de Jurisprudência", Ano 96º, nº. 3255, pág. 287.
A jurisprudência tem, por seu turno, considerado que as acções de registo têm essencialmente por objecto o acerto ou o desacerto de um acto de registo, por exemplo a omissão, a inexistência jurídica, a nulidade ou o erro de elaboração, e as acções de estado pessoal o apuramento real do facto registado ou registando (Acs. do STJ, de 4.4.78, BMJ, nº. 276, pág. 287; de 7.6.77, BMJ, nº. 268, pág. 229; de 26.11.81, BMJ, nº. 311, pág. 398, e de 7.6.94, BMJ, nº. 438, pág. 365).
No seguimento do referido entendimento doutrinal e jurisprudencial, insusceptível de alteração em razão da evolução legislativa que ocorreu nesta matéria, consideramos ser o objecto das acções de registo a correcção de erros, o suprimento das omissões e a declaração das consequências dos vícios dos actos de registo civil, e o objecto das acções de estado o apuramento real ou a modificação dos factos relativos ao estado das pessoas.
Dir-se-á que as acções de registo, ao invés das acções de estado pessoal, não incidem directamente sobre o facto registado, antes se reportam ao próprio acto de registo em si, visando suprir uma omissão, operar uma reconstituição avulsa ou declarar vícios de natureza formal que o afectam.
Os termos da referida distinção não obstam, como é natural, a que por via de uma acção de registo ocorra o efeito indirecto de alteração de um estado pessoal tal como consta do registo e que duma acção de estado pessoal resulte a modificação de um acto de registo.
6. No caso vertente estamos perante um curioso assento de registo de nascimento em que se expressa ser a mãe de A casada e a pessoa indicada como pai dela, B, ser solteiro.
Como ao tempo do nascimento de A a mãe desta era efectivamente casada com D, certo é, dada a presunção legal a que acima se fez referência, não poder constar do mencionado assento a paternidade de B, mas a de D.
Independentemente da realidade biológica envolvente, ao inserir no assento do registo de nascimento de A, contra a presunção legal, a menção de que ela era filha de B, certo que o funcionário do registo civil que o lavrou, independentemente do motivo respectivo, fosse erro ou dolo, infringiu o disposto no artigo 1807º, nº. 1, do Código Civil.
Não obstante o disposto nos artigos 292º, 294º e 295º do Código Civil e a afectação parcial do acto complexo de registo civil consubstanciado no assento de registo de nascimento em causa, a sua consequência jurídica não é a correspondente à de nulidade dos negócios jurídicos em geral.
Com efeito, a solução que resulta da lei para a omissão da menção do assento de registo de nascimento da paternidade presumida ou de menção a ela contrária, como é o caso de figurar como pai da pessoa cujo nascimento foi registado alguém diverso do marido da mãe, é a de mera rectificação do referido acto de registo (artigo 1808º, nº. 1, do Código Civil).
Com tal rectificação do assento do registo de nascimento não se visa impugnar a perfilhação operada por B, mas apenas eliminá-la do assento a fim de dele passar a constar a menção de paternidade relativa a D, que dele devia constar desde a sua feitura, por força da presunção legal e da lei imperativa.
Trata-se de omissão no assento do registo de nascimento de uma menção de obrigatória de paternidade e da inserção de outra àquela contrária, a superar por via de uma acção de registo, porque ao caso não quadra uma acção de estado pessoal.
Dir-se-á, em síntese conclusiva, por um lado, que registo de nascimento de filho de mulher casada onde consta como pai outro que não o marido da mãe não o afecta de nulidade, mas apenas de irregularidade ou inexactidão, susceptível de superação por via de acção de registo, isto é, do chamado processo de justificação judicial.
Por conseguinte, deve o recurso de agravo interposto pelo Ministério Público proceder, com a consequência de revogação do acórdão recorrido.
Tendo em conta os limites de competência deste Tribunal no que concerne à apreciação da matéria de facto, impõe-se a remessa do processo à Relação a fim de, pelos mesmos juízes, se possível, conhecer do objecto do recurso interposto da sentença proferida na primeira instância e decidir se os factos alegados e provados conduzem ou não à procedência do pedido formulado na acção (artigo 762º, nº. 2, do Código de Processo Civil).
Nenhum dos recorridos alegou no recurso ou acompanhou a decisão recorrida, pelo que ocorre, na espécie, a seu favor, isenção de custas (artigo 2º, nº. 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais).
IV
Pelo exposto, dá-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, e determina-se que a Relação conheça do objecto do recurso interposto da sentença proferida na primeira instância, com vista a decidir se os factos alegados e provados conduzem ou não à procedência do pedido formulado na acção pelo Conservador dos Registos Centrais.
Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís