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RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
ACTIVIDADES PERIGOSAS
Sumário
I - Entre os pressupostos do dever de indemnizar figuram os requisitos da prática do facto pelo agente e da culpa. II - O lançamento de foguetes é inquestionavelmente uma actividade perigosa pela sua própria natureza, sendo-lhe aplicável o disposto no artº. 493º, nº. 2, do C.C. III - No caso do pressuposto da culpa, o lesado está dispensado do ónus da sua prova, por via da presunção de culpa do citado artº. 493º, nº. 2, decorrente da inversão do regime regra contido no artº. 487º do C.C. IV - No domínio do requisito da prática do facto pelo agente, tal ónus pertence ao lesado, como pressuposto autónomo do dever de indemnizar e facto constitutivo do direito que se arroga, nos termos do artº. 342º, nº. 1, do mesmo diploma.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 4-2-99, A e mulher B, em representação de seu filho menor C, instauraram a presente acção ordinária contra os réus D e Comissão de Festas de Nossa Senhora ..., pedindo a condenação solidária destes no pagamento ao menor da quantia de 5.600.000$00, acrescida de juros de mora.
Para tanto, alegam resumidamente o seguinte:
No dia 27 de Abril de 1998, o menor foi vítima da explosão de um foguete, abandonado no solo, que lhe feriu gravemente a mão esquerda, na ocasião em que o manipulava, e que lhe causou diversos danos patrimoniais e não patrimoniais;
Tal foguete havia sido lançado por ocasião dos festejos em honra de Nossa Senhora ... e caiu no solo sem estoirar no ar;
O mesmo foguete tinha sido produzido pelo réu D, que o fornecera à indicada Comissão de Festas, tendo sido esta quem efectuara o lançamento desse foguete, para além de outros, no dia 26 de Abril de 1998, e não cuidara de saber se qualquer bomba não rebentara.
Os réus contestaram.
O D, negando que tivesse vendido qualquer fogo de artifício à ré Comissão de Festas; esta, impugnando que haja qualquer relação causal entre os foguetes lançados por ocasião das festas em honra de Nossa Senhora ... e o invocado acidente.
Houve réplica.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.
Apelaram os autores, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 3-4-2003, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformados, os autores recorreram de revista, onde concluem:
1 - As actividades dos recorridos integram-se na previsão do artº. 493º do C.C.
2 - O Acórdão impugnado, tal como a sentença da 1ª instância, fizeram recair sobre os autores o ónus da prova de que a bomba que rebentou na mão do seu filho menor tinha sido lançada pela Comissão de Festas de Nossa Senhora ... e havia sido fabricada pelo réu D.
3 - Mas era antes aos recorridos que incumbia o ónus da prova de que a bomba em questão não fora por eles fabricada nem lançada.
4 - Se não fosse a indevida e ilegal inversão do ónus da prova a que o Acórdão procedeu, seriam irrelevantes as respostas negativas que foram dadas aos quesitos 8-A, 28 e 29 da base instrutória.
5 - A Relação considerou ilidida a presunção estabelecida no citado artº. 493º, nº. 2, do C.C., pelo facto dos autores não terem demonstrado que a bomba que deflagrou nas mãos do seu filho foi lançada pela Comissão de Festas, quando era sobre esta que impendia o ónus da prova do contrário.
6 - Consideram violados os artºs. 483º, 487º e 493º do C.C., e ainda os dec-leis nº. 389/89 de 6-11 e nº. 376/84, de 30-11, pedindo a revogação do Acórdão em crise e a procedência da acção.
Os réus não contra-alegaram.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Remete-se para os factos que foram considerados provados pela Relação, ao abrigo dos artºs. 713º, nº. 5 e 726º do C.P.C..
Com interesse para a decisão, destacam-se os seguintes, relativos às circunstâncias do acidente:
1 - C é filho dos autores e nasceu em 11-11-86.
2 - As festividades em honra de Nossa Senhora ... realizam-se todos os anos, uma semana após o Domingo de Páscoa.
3 - Durante esses festejos são lançados foguetes várias vezes ao dia.
4 - Nos dias 18 e 19 de Abril de 1998, tiveram lugar os festejos em honra de Nossa Senhora ..., que ocorreram na Capela, situada na freguesia de ..., Celorico de Basto,
5 - A ré Comissão de Festas adquiriu fogo de artifício e fogo para estoirar durante o período de duração dos mesmos festejos.
6 - A Comissão de Festas contratou um especialista para lançar os foguetes.
7 - Esse fogo era queimado num local sito a cerca de 300 metros da capela, ateando lume ao rastilho e fazendo-o rebentar no ar.
8 - As canas e as bombas que não estoiravam caíam no chão.
9 - Os foguetes eram lançados a partir de um local situado a cerca de 300 metros daquele onde decorriam os festejos.
10 - Os foguetes eram lançados para um local sem casas, ermo e isolado.
11 - No segundo dia dos festejos, a procissão da santa saiu da capela, aonde regressou novamente.
12 - Durante o trajecto da procissão, a ré Comissão de Festas fez estoirar foguetes, várias vezes, nos termos atrás referidos.
13 - Entre os dias 27 e 28 de Abril de 1998, miúdos do lugar de ..., da freguesia de ..., encontraram uma bomba que não estoirou e que tinha caído ao chão.
14 - Quando o filho dos autores tinha a bomba na mão esquerda, foi ateado fogo a essa bomba.
15 - Esta rebentou na mão daquele.
16 - O sítio onde a referida bomba veio a rebentar na mão do menor situa-se a cerca de um quilómetro do local onde são lançados os foguetes utilizados durante os festejos de Nossa Senhora ... .
17 - Na ocasião do período pascal são lançados foguetes.
18 - O percurso pascal passa próximo do local onde a dita bomba veio a rebentar na mão do menor.
Não se provou:
- que a bomba encontrada no dia 27 de Abril de 1998 e que rebentou na mão do menor fosse lançada pela ré Comissão de Festas, aquando dos festejos em honra de Nossa Senhora ... (resposta negativa ao quesito 8ª A);
- nem tão pouco que fosse o réu D quem fabricou os foguetes vendidos à ré Comissão de Festas (resposta negativa ao quesito 28º).
A questão fulcral a decidir consiste em saber:
- se incumbe aos autores o ónus da prova de quem foi o autor da prática dos factos, ou seja, se são aqueles que estão onerados com a prova de que a bomba que rebentou na mão do seu filho menor tinha sido fabricada pelo réu D e lançada pela Comissão de Festas por altura dos festejos em honra de Nossa Senhora ...;
- ou se era sobre os réus que impendia a prova do contrário.
Dispõe o artº. 483º do Cód. Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação.
A simples leitura deste preceito mostra que vários pressupostos condicionam, no caso da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante.
Assim, são pressupostos da responsabilidade civil: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, um facto voluntário, pois só quanto a factos dessa natureza tem cabimento a ideia da ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos termos impostos por lei.
Com efeito, na raiz da responsabilidade por factos ilícitos está necessariamente uma conduta da pessoa obrigada a indemnizar, ou seja, um facto voluntário do agente.
Por isso, o problema de saber quem está obrigado a reparar os danos resultantes de um facto ilícito consiste na definição da pessoa ou pessoas às quais, nos termos da lei, se atribui a conduta constitutiva da responsabilidade.
Pois bem.
O lançamento de foguetes, simples ou de artifício, é inquestionavelmente uma actividade perigosa pela sua própria natureza, sendo-lhe aplicável o disposto no artº. 493º, nº. 2, do C.C. (Ac. S.T.J. de 7-7-94, Col. Ac. S.T.J., II, 3º, pág. 47).
Só que, in casu, o problema não está no domínio do ónus da prova do pressuposto da culpa do lesante, com aplicação da presunção de culpa decorrente do citado artº. 493º, nº. 2.
A questão está na prova do prévio pressuposto da definição da autoria da prática do facto, que é determinante da conduta constitutiva da obrigação de indemnizar, consistente na apuramento de quem procedeu ao fabrico e ao lançamento daquele foguete que veio a explodir na mão do menor.
Se no caso do pressuposto da culpa, o lesado está dispensado do ónus da sua prova, por via da presunção de culpa do artº. 493º, nº. 2, do C.C., decorrente da inversão do regime regra contido no artº. 487º, já no caso da prova relativa ao requisito da imputação subjectiva da autoria dos factos aos réus, tal ónus pertence ao lesado, como pressuposto autónomo do dever de indemnizar e facto constitutivo do direito que se arroga, nos termos do artº. 342º, nº. 1, do mesmo diploma.
Ora, já vimos que os autores não lograram provar que a bomba do foguete encontrada no dia 27 de Abril de 1998 e que rebentou na mão do menor fosse lançada pela ré Comissão de Festas, aquando dos festejos em honra de Nossa Senhora ..., nem tão pouco que tivesse sido fabricada pelo réu D.
Por isso, a acção não podia deixar de improceder.
O Acórdão recorrido não violou as regras do ónus da prova, nem o regime da culpa presumida decorrente do artº. 493º, nº. 2, do C.C.
Termos em que negam a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 4 de Novembro de 2003
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão