CLÁUSULA PENAL
EXCESSO
REDUÇÃO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
PROPORCIONALIDADE
Sumário

I - A redução equitativa da cláusula penal depende de ser ela considerada manifestamente excessiva ou de a obrigação ter sido parcialmente cumprida.
II - Aquela excessiva onerosidade não é de conhecimento oficioso, tendo de ser expressamente articulada e provada pelo devedor que pretenda a redução da cláusula penal, nomeadamente demonstrando que a outra parte não sofreu qualquer prejuízo.
III - Havendo cumprimento parcial da obrigação, deve recorrer-se a um critério de proporcionalidade para determinar se e em que medida deve o montante da cláusula penal ser reduzido, porque esta cláusula é, por via de regra, estabelecida em vista de um incumprimento integral.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 25/8/87, A instaurou contra "B, CRL", acção com processo ordinário, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 162.575.865$00, acrescida dos juros legais respectivos a contar da citação até integral pagamento, montante aquele subdividido nas parcelas de 82.575.865$00 respeitante a trabalhos facturados a preços antigos e a preços actualizados, depósitos sobre valores iniciais, retenções sobre facturas, comissões e despesas de garantias bancárias e valores devidos por IVA, tudo derivado da execução, pelo autor, como empreiteiro, de quatro contratos de empreitada celebrados entre ele e a ré, esta como dona da obra, e de 80.000.000$00 de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos em consequência de incumprimento da ré ao rescindir os mesmos contratos sem qualquer fundamento.
Em contestação, a ré negou ter qualquer obrigação de pagamento para com o autor, a quem imputa incumprimento dos contratos que justificou que tivesse rescindido os mesmos, e, em reconvenção, pediu a condenação do autor a pagar-lhe a quantia de 88.090.800$00, sendo 80.000.000$00 de indemnização pelos danos sofridos em consequência do incumprimento do autor, 7.076.800$00 a título de multas convencionalmente devidas pelo atraso do autor na execução das obras, e 1.014.000$00 de uma dívida do autor paga pela ré, que pretende ainda a condenação daquele como litigante de má fé.
Replicou o autor, rebatendo a matéria da reconvenção.
Houve tréplica, em que a ré renovou a sua versão segundo a qual, em resumo, foi o autor quem incumpriu os contratos.
Após uma audiência preparatória em que não se obteve conciliação, houve conhecimento de ter o autor sido declarado em estado de falência, pelo que foi notificado para intervir nos autos em sua substituição o respectivo administrador da falência, C.
Proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, foram elaborados especificação e questionário, de que ninguém reclamou.
A requerimento daquele administrador da falência do autor, foi admitida a intervenção principal do Instituto Nacional de Habitação (INH), que recusou o chamamento.
Finalmente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido dadas respostas aos quesitos, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, mas procedente a reconvenção, pelo que absolveu a ré do pedido do autor e condenou este no pedido reconvencional.
Apelou o autor, por intermédio do mencionado administrador da falência, tendo a Relação negado provimento à apelação e confirmado a sentença ali recorrida, por acórdão de que vem interposta a presente revista, de novo pelo autor, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - Não se apurou que os blocos A1, A2, B1, B2 e B da Luz não estivessem concluídos à data da rescisão de todos os contratos feitos pela ré em 28 de Maio e 12 de Junho de 1987, nem tal matéria foi quesitada;
2ª - A ré não cumpriu o "aditamento" que acordou com o autor, pois, depois de iniciados os trabalhos, não efectuou qualquer medição em Março de 1987, não efectuou qualquer medição entre 20 e 25 de Abril de 1987, não valorizou as medições com os preços previstos no aditamento e não pagou qualquer das medições dentro do prazo de 30 dias a partir da sua elaboração;
3ª - A falta de cumprimento do aditamento por parte da ré, nomeadamente a falta de pagamentos, colocou o autor na impossibilidade objectiva de continuar as obras por falta de dinheiro até para pagar aos empregados, que por isso abandonaram o trabalho;
4ª - À data em que a ré procedeu à rescisão de todos os contratos, o autor encontrava-se na situação de impossibilidade temporária de cumprir a sua prestação (concluir a obra), não por culpa sua mas por culpa da ré, que o colocou nessa situação ao não cumprir as suas aludidas obrigações emergentes dos contratos de empreitada e respectivo aditamento (artº. 792º do Cód. Civil);
5ª - Tal impossibilidade temporária cessaria logo que a ré procedesse aos pagamentos que eram devidos ao autor;
6ª - A ré tinha na altura da rescisão e continuou a ter todo o interesse no recebimento da prestação do autor (conclusão das obras);
7ª - Não tinha por isso a ré o direito de rescindir o contrato com fundamento em incumprimento definitivo por parte do autor, por não se verificar incumprimento definitivo nem a culpa da situação ser imputável ao autor (artºs. 798º e 808º do Cód. Civil);
8ª - Mesmo que a ré tivesse o direito de rescindir o contrato, o exercício de tal direito seria ilegítimo nos termos do artº. 334º do Cód. Civil (abuso de direito), por exceder manifestamente os princípios da boa fé, bons costumes e o fim económico desse direito, uma vez que foi a própria ré que, ao faltar ao cumprimento das suas prestações no contrato, colocou o autor na situação de também por sua vez não poder cumprir a sua prestação no mesmo contrato;
9ª - À data da rescisão dos contratos era o autor credor da ré, sendo aquele o único prejudicado com a rescisão, que não trouxe à ré qualquer prejuízo;
10ª - Mesmo que a ré tivesse direito à rescisão e esta fosse legítima, deveria a cláusula penal invocada ser reduzida a zero em obediência ao princípio da equidade por a ré não ter sofrido qualquer prejuízo com a rescisão (artºs. 810º e 812º do Cód. Civil);
11ª - Foram violados por não aplicados os artºs. 792º, 798º, 808º, 812º e 334º do Cód. Civil.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido reconvencional, bem como a condenação da ré no seu pedido.
Em contra alegações, a ré pugnou pela confirmação daquele acórdão.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos provados, dados por assentes pelas instâncias, nomeadamente pela Relação após decidir pela improcedência, no acórdão recorrido, de impugnação da matéria de facto lá apresentada pelo apelante nas respectivas alegações, são os seguintes:
1º - O autor exerce a actividade de construtor civil e empreiteiro de obras públicas;
2º - No exercício da sua actividade, o autor celebrou com a ré quatro contratos de empreitada para a construção de 134 fogos, correspondentes à primeira fase da construção de 410 fogos e ainda um edifício para equipamento colectivo, tudo a ser construído nos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Lagos respectivamente sob os nºs. 2.307, 23.009 a 23.011, 23.013, 23.015 a 23.023, 23.025 a 23.029, 23.031 a 23.047, todos no Livro B-61, e 23.048 a 23.065, todos no Livro B-62;
3º - Através de tais contratos, o autor comprometeu-se a construir 28 fogos em Santa Maria de Lagos, denominado conjunto A, constituído por dois blocos de apartamentos tipo B e um bloco de apartamentos tipo C, 28 fogos em Santo Amaro de Lagos, denominado conjunto B, constituído por dois blocos de apartamentos tipo B e um bloco de apartamentos tipo C, 28 fogos em Santo Amaro de Lagos, denominado conjunto C, constituído por dois blocos de apartamentos tipo B e um bloco de apartamentos tipo C, e 50 fogos na Luz - Lagos, sendo dez apartamentos tipo T2, trinta e seis apartamentos tipo T3, e quatro apartamentos tipo T4;
4º - Após diversas vicissitudes e aturadas negociações entre autor e ré, durante o ano de 1986, ambas as partes acordaram e reconheceram serem ainda necessários 130.000.000$00 para a conclusão dos aludidos 134 fogos, objecto do contrato de empreitada, datado de 14 de Dezembro de 1984;
5º - Na sequência de tal acordo e para o formalizar, foi celebrado entre autor e ré um aditamento aos aludidos contratos de empreitada iniciais, que veio a ser assinado por ambas as partes em 16 de Janeiro de 1987;
6º - De acordo com tal aditamento, o preço global para a conclusão das obras passou a ser de 130 milhões de escudos, o qual acrescerá às quantias já recebidas pelo empreiteiro, o autor;
7º - Por força deste novo ajuste de preços, o valor total das empreitadas para a construção de 134 fogos passou a ser, agora, de 281.995.983$00, sendo 61.098.661$00 para cada um dos conjuntos A, B e C de 28 fogos cada um, na cidade de Lagos, 98.700.000$00 pela construção dos blocos A, B, C, D e E, com um total de 50 fogos, na Luz;
8º - O autor recebeu da ré a quantia de 21.838.926$00;
9º - De acordo com o ponto V daquele aditamento, os prazos acordados para a conclusão das obras contam-se a partir do décimo dia após o recebimento da quantia de 21.838.926$00;
10º - Por cartas de 28 de Maio e 12 de Junho de 1987, a ré rescindiu todos os contratos de empreitada;
11º - A ré pagou à D uma dívida do autor no valor de 1.014.000$00;
12º - As obras deviam desenvolver-se de acordo com o plano de trabalhos apresentado e o cronograma financeiro que faz parte do citado aditamento;
13º - O pagamento mencionado no nº. 8º verificou-se em 9 de Março de 1987;
14º - Após a celebração do aditamento, o autor reiniciou as obras;
15º - Em 21/4/87 foi elaborado e subscrito o documento de fls. 129 dos autos de arresto apensos;
16º - O bloco A1 do conjunto A foi recebido nos termos que constam do mesmo documento;
17º - A percentagem prevista para o primeiro mês era de 9,59%;
18º - As medições da obra deveriam ser executadas mensalmente;
19º - O pagamento deveria ser feito no prazo máximo de trinta dias a contar da data da entrega do auto de medição pelo ora autor;
20º - O pagamento dos trabalhos, nos valores resultantes dos autos de medição feitos mensalmente com a participação dos técnicos do I.N.H., em data por estes fixada, após rubricados pelas partes e entregues pelo empreiteiro ao dono da obra no prazo de 48 horas, seriam por este pagos no prazo máximo de trinta dias a contar da data da entrega;
21º - O cronograma financeiro não é mais do que uma mera previsão do valor dos trabalhos executados;
22º - O valor das medições era calculado aos preços iniciais de 1984;
23º - E não a preços actualizados de 1987;
24º - Nos contratos iniciais o valor para cada um dos conjuntos A, B e C era de 54.598.661$00;
25º - No contrato inicial consta 88.200.000$00 para a empreitada da Luz;
26º - Só foi medida a obra constante dos autos de medição em 30 de Abril e 21 de Maio, respectivamente;
27º - A que se referem as facturas nº. 17/15A/STN/87, 18/15A/RP/87, 16/15B/STN/87, 17/15B/RP/87, 18/15B/STN/87, 19/15B/RP/87, 19/15A/STN/87, 20/15A/RB/87, 18/14/STN/87, e 19/14/RP/87;
28º - O preço da obra medida foi calculado a preços iniciais;
29º - As facturas totalizavam 8.630.768$70;
30º - A ré fez medições, através do I.N.H., mas não elaborou auto porque, no entender dos técnicos do I.N.H., o resultado da medição era negativo;
31º - A ré não procedeu ao pagamento das facturas relativas aos autos de medição;
32º - Em Junho de 1987, o autor deixou de pagar os salários aos trabalhadores;
33º - O autor suspendeu os trabalhos;
34º - A quantia mencionada no nº. 8º constitui o primeiro pagamento da verba de 130.000.000$00 mencionada no nº. 6º;
35º A 28 de Maio de 1987, o autor não tinha entregue o bloco B1 de Lagos;
36º - Nem tinha entregue o bloco A2 de Lagos;
37º - A 2 de Junho de 1987, o autor não tinha entregue o bloco B da Luz.

Para além da impugnação da matéria de facto feita na apelação, a qual agora não está em causa por ter sido definitivamente decidida no acórdão recorrido, as conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente na presente revista coincidem com as conclusões das suas alegações na apelação.
O mesmo é dizer que as questões agora suscitadas são as mesmas, e com os mesmos fundamentos, que as que foram suscitadas perante a Relação, excepção feita ao fundamento consistente na alteração da matéria de facto assente, visto essa alteração não ter sido admitida. Tal só não implica necessariamente e desde já a negação da revista por a Relação ter decidido em parte mediante remissão operada nos termos do artº. 713º, nº. 5, do Cód. Proc. Civil.
As questões a decidir, são, assim, fora a da mencionada pretensão da alteração de matéria de facto, já decidida, a de determinar se houve incumprimento, e por parte de quem, dos aludidos contratos de empreitada e seu aditamento, e se a cláusula penal devia ser reduzida.
Ora, mesmo sem ter em conta a contradição latente entre as conclusões 1ª e 4ª das alegações do recorrente (naquela diz que não se apurou que as obras não estivessem concluídas à data da rescisão, mas nesta já refere que nessa data se encontrava impossibilitado de as concluir), à luz dos factos dados por assentes pela 1ª instância e confirmados pela Relação, - factos esses cuja alteração era necessária para que o autor tivesse podido conseguir o êxito da pretensão que apresentara na apelação no sentido de tentar convencer da existência de cumprimento por sua parte e de incumprimento por parte da ré -, não pode senão entender-se que o acórdão recorrido, e, por força da remissão nele feita, a sentença da 1ª instância, entenderam acertadamente que tais factos apenas permitem concluir que foi o autor quem não cumpriu, deles não resultando incumprimento da ré. Acresce que, no tocante à arguição de abuso de direito feita pelo recorrente, a faz ele depender do incumprimento da ré, incumprimento esse que, como se referiu, não se mostra demonstrado, pelo que não lhe pode ser reconhecida razão.
Sobre tal assunto, pois, entende-se ser de confirmar inteiramente o acórdão recorrido, concordando-se, quer com o nele decidido a tal respeito, quer com os respectivos fundamentos, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto nos artºs. 726º e 713º, nº. 5, do Cód. Proc. Civil.
Por outro lado, porém, no tocante à cláusula penal, a redução equitativa desta depende de ser ela considerada manifestamente excessiva ou de a obrigação ter sido parcialmente cumprida (artº. 812º, nºs. 1 e 2 respectivamente, do Cód. Civil).
Aquela excessiva onerosidade não é de conhecimento oficioso, tendo de ser expressamente articulada e provada pelo devedor que pretenda a redução da cláusula penal, nomeadamente demonstrando que a outra parte não sofreu qualquer prejuízo com a rescisão dos contratos, coisa que não foi oportunamente feita pelo autor.
Já quanto à hipótese prevista naquele nº. 2, não restam dúvidas de que a obrigação do autor foi satisfeita em parte, mediante a execução não total das obras de que pelos contratos se incumbira. Houve, assim, cumprimento parcial, o que implica o recurso a um critério de proporcionalidade para determinar se e em que medida deve o montante da cláusula penal ser reduzido, uma vez que esta cláusula é, por via de regra, estabelecida em vista de um incumprimento integral: donde que, em caso de inexecução apenas parcial, se justifique que a cláusula não deva ser aplicada na íntegra, tendo de sofrer uma redução, a fazer, em princípio, segundo aquele critério.
Mas, na falta, que aqui se verifica, de outros elementos que permitam determinar com exactidão a proporção entre o valor das obras realizadas e o montante da cláusula, entende-se que, perante as circunstâncias de facto apontadas, o recurso à equidade aponta para a redução do montante desta para 50.000.000$00, correspondente a 249.398,95 euros.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista quanto à pretensão do autor constante da petição inicial, mas em concedê-la parcialmente no tocante à matéria da reconvenção, reduzindo para 249.398,95 euros o montante que fica obrigado a pagar à ré a título de cláusula penal e confirmando o acórdão recorrido em tudo o mais.
Custas por autor e ré na proporção em que respectivamente decaíram, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhes foi concedido.

Lisboa, 20 de Novembro de 2003
Silva Salazar
Ponce de Leão
Afonso Correia