MATÉRIA DE FACTO
EMPREITADA
CLÁUSULA PENAL
RESTITUIÇÃO
Sumário

I - Sempre que para a fixação da realidade dum facto é necessário, para além dos restantes critérios legais, o da convicção do julgador, estamos perante matéria de facto.
II - Se o dono da obra desistiu da empreitada, nos termos do artº 1229º do C. Civil, o empreiteiro tem direito a ser indemnizado pelos prejuízos que lhe advieram dessa desistência, mas entre estes não se encontram os derivados da sua própria mora, como o pagamento da correspondente multa.
III - Se as partes voltarem a manter a cláusula penal no aditamento ao contrato e quando já se punha a questão da mora, é contrário aos ditames da boa fé vir a responsável pelo seu pagamento alegar, posteriormente, a iniquidade dessa cláusula, no momento da sua efectiva aplicação.
IV - As percentagens dos pagamentos ao empreiteiro retidas pelo dono da obra, como garantia integral da empreitada, têm de ser restituídas, se este último fez cessar o contrato nos termos do artº 1229º do C. Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

"A" intentou contra B a presente acção ordinária, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 12.746.738$00, acrescida dos respectivos juros moratórios, desde 31.10.96, sendo 3.752.775$00, correspondentes a uma factura relativa a um contrato de empreitada celebrado entre ambas e a parte restante correspondente à retenção de 10% por aquela efectuada sobre os pagamentos efectuadas à autora, no âmbito do referido contrato.
Na sua contestação alega a ré que o quantitativo retido o foi em conformidade com o acordado no contrato celebrado, destinando-se a garantir a correcta e pontual execução da empreitada, só podendo ser levantado após a recepção provisória da obra e contra garantia bancária, tendo, em virtude do abandono da obra pela autora, rescindido o contrato em 27.01.97, peticionando, reconvencionalmente, a quantia de 23.827.160$85, correspondente ao excesso dos pagamentos efectuados, em relação aos trabalhos executados pela autora e à multa contratualmente convencionada para o atraso na execução da obra.
Na réplica, a autora, reiterando o alegado na petição inicial, veio dizer que abandonou a obra por falta de pagamento. Quanto ao pedido reconvencional alegou que o atraso na obra foi devido única e exclusivamente à ré, dado que só pode iniciar a obra em 31.12.95, porque ali se encontravam outros empreiteiros, sendo que, por outro lado, a sanção cominada para o atraso é manifestamente ilegal, pela sua desproporcionalidade, representando a sua aplicação um abuso de direito.
O processo seguiu os seus trâmites legais, posto o que se realizou o julgamento. Neste. foi reduzido o pedido respeitante à referida factura, em transacção devidamente homologada.
Na sentença foram julgados improcedentes o pedido e o pedido reconvencional.
Apelaram ambas as partes, tendo o Tribunal da Relação julgado parcialmente procedente o pedido da autora, condenando a ré no pagamentos dos juros moratórios da factura em causa e à restituição das quantias retidas e totalmente procedente o da ré, condenando a autora no pagamento da referida multa..

Voltam, agora, a recorrer as duas partes, as quais, nas suas alegações de recurso, apresentam as seguintes conclusões:

revista da autora

1 Não houve mora por parte da autora, pois o atraso no cumprimento da obrigação no tempo devido não ocorreu por causa que lhe fosse imputável, mas sim à ré, uma vez que os trabalhos da autora atrasaram-se por se encontrarem mais empresários em obra.
2 Além dos trabalhos constantes do contrato inicial (datado de 27 de Setembro de 1995, pelo preço de 56.740.567$00) e do contrato adicional (datado de 3 de Maio de 1996, pelo preço de 36.130.357$00), a ré solicitou à autora, por ajuste verbal, a execução de outros trabalhos não previstos (pelo preço de 8.624.850$00) - cf. artºs 15º, 16º e 17º da p. i. e nos artºs 8º, 9º e 10º da réplica.
3 A factura nº 6045, datada de 31.10.96, no montante de 3.752.775$00, de fls. 23, em tudo respeita a estes trabalhos não previstos e adjudicados pela ré à autora, verbalmente, como resulta do seu teor, quando aí se refere.
4 O que é confirmado pelas cartas da autora de fls. 168, 171 e 172 e no confessado pela ré no documento de fls. 76 e 77 (análise de contas), onde esta reconhece o valor dos trabalhos extra-contratuais realizados, no valor de 6.645.160$00.
5 E tal factualidade foi aceite pela ré na cláusula 1ª da transacção de fls. 178, na qual a ré reconheceu dever o montante de 3.148.816$00, no que respeita à aludida factura nº 6045, mencionada em J) dos factos assentes.
6 Ora, esta factualidade alegada pela autora, não foi levada à base instrutória, mas tem que ser considerada assente, nos termos do disposto no artº 646º nº 4 do C. P. Civil, por este Supremo Tribunal, que aprecia o resultado interpretativo das declarações negociais, nos termos dos artºs 236º nº 1 e 238º nº 1 do C. Civil.
7 Ora, se ocorreu a execução de trabalhos não previstos para além do contrato inicial e do aditamento, é patente que o prazo inicialmente acordado não poderia ser cumprido.
8 O prazo contratual nunca poderia ser cumprido pela autora, desde logo, porque o início dos trabalhos ocorreu mais de dois meses depois do previsto contratualmente por culpa do dono da obra (ré).
9 Depois, o prazo contratual não poderia continuar a ser cumprido, porque os trabalhos se atrasaram, em virtude de se encontrarem mais empreiteiros na obra.
10 A ré dona da obra desistiu da empreitada.
11 Ora, havendo desistência por parte do dono da obra (ré), esta é que teria de indemnizar a autora, nos termos do artº 1229º.
12 A desistência por parte do dono da obra é uma faculdade discricionária, não carece de fundamento, apresenta-se como insusceptível de apreciação judicial, e não carece de qualquer pré-aviso.
13 A desistência faz extinguir a empreitada e, em face da desistência, a ré não pode exigir qualquer indemnização ao empreiteiro (autora) nem o pagamento de qualquer causa penal porventura fixada.
14 A simples mora do empreiteiro na execução não confere ao dono da obra o direito a resolver o contrato.
15 Não houve incumprimento definitivo do empreiteiro.
16 O empreiteiro a exceptio non adimplenti contractus não entra em mora.
17 A ré não pagou à autora parte do valor da factura nº 6045 de 31.10.96, que esta lhe enviou, no montante de 3.148.816$00, como ficou reconhecido e confessado pela ré, em sede de transacção de fls. 178, pelo que não houve lugar a mora por parte da autora.
18 Mas, mesmo que se entendesse que tinha havido mora por parte da autora - o que não se aceita - , a verdade é que nunca o montante das multas relativas aos três meses reclamados pela ré (artºs 46º a 50º da contestação - reconvenção), poderia ascender a 22.500.000$00.
19 O dono da obra (ré) não alegou nem provou que atraso se verificou em cada uma das fases da obra, nem a qual das fases é que se reporta tal eventual atraso.
20 Enquanto a obra estava a decorrer, a ré nunca imputou à autora a responsabilidade desta nas penalidades de multas contratuais e, nos pagamentos que fez à autora, nunca efectuou a dedução das multas, em referência, como o previa o contrato.
21 Pelo que, também a ré entende, pelo menos tacitamente, justificadas as causas de tais atrasos, nos termos da alínea d) da cláusula 5ª anexo I - fls. 17 - precludindo o seu alegado direito a aplicar penalidades.
22 Interpretando convenientemente essa cláusula contratual, à luz do artº 236º e 238º do C. Civil, o montante global nunca poderia ascender à quantia de 22.500 contos que a ré reclama.
23 Na data de 27.01.97, em que a ré comunica a rescisão unilateral do contrato, a ré já havia pago à autora 89.939.630$00, faltando apenas realizar obra no valor de 3.167.937$00.
24 Pelo que a cláusula penal fixada no contrato é manifestamente desproporcional (artº 812º do C. Civil) e deve ser reduzida de acordo com a equidade.
25 O douto acórdão recorrido fez incorrectas interpretação e aplicação e violou as normas dos artºs 236º, 238º, 801º nº 1 e 2, 810º nº 3, 812º nºs 1 e 2 e 1229º do C. Civil.
Com o que se deve manter a procedência a acção e julgar improcedente a reconvenção.

revista da ré

1 Por transacção entende-se o contrato processual que encerra um conjunto de declarações de vontade livremente prestadas por que tem legitimidade e interesse nos autos; as obrigações assim assumidas são, apenas, as que constam de termo, de acta ou de documento particular.
2 "A sentença que aprecia uma transacção, conforme o artº 300º , nº 3 do C.P.Civil, não pode alterar os precisos termos, que foram objecto do acordo das partes" (sic) - AC RL de 20.07.79, CJ 1979 4 1180 -.
3 Homologada a transacção judicial por sentença, forma-se caso julgado sobre a relação material - cf. AC STJ de 11.10.92 BMJ 430 431 -.
4 Por força da sentença homologatória, extingue-se o poder jurisdicional do tribunal sobre o processo (ut artº 666º do CPC), pelo que só por via da acção de nulidade ou de anulação é possível impugnar a transacção, consoante estatui o artº 301ºdo CPC - cf. ACs do STJ de 16.07.81, BMJ 309 291 e RLJ 116 69 e de 11.13.92, BMJ 420 431, ACRP de 15.01.81, BMJ 303 272, ACRL de 25.05.95, CJ 1995 3 120 - .
5 Na transacção judicial de fls., autora e ré apenas declararam que, pela factura nº 6045, era devida quantia de 3.148.816$00, montante a que chegaram depois de efectuarem um encontro de contas - cf. cláusula 1ª do termo de transacção de fls.- , sendo certo que a autora havia reduzido o pedido relativamente aos juros de mora (cf, sentença homologatória da 1ª instância a fls. 175).
6 Nada ficou consignado relativamente à obrigação de pagamento de juros de mora sobre a quantia referida na anterior conclusão, designadamente, a partir de 20.2.97, porque nenhuns juros moratórios havia que pagar, fossem vencidos, fossem vincendos.
7 Apenas foi acordado que a data de vencimento da factura em apreço ocorreu em 20.02.97, porque a factura nada referia a esse propósito e, até aí, não tinha sido alcançado qualquer consenso na sua determinação.
8 Era defeso ao tribunal a quo alterar o teor expresso do termo de transacção celebrado entre a autora e a ré, seja porque essa alteração vai ao arrepio, quer das vontades declaradas livremente, quer dos fundamentos que estiveram na sua base, seja porque, com o trânsito em julgado da relação material disciplinada pelo termo de transacção, ficaram esgotados os poderes jurisdicionais do tribunal.
9 Correctamente interpretadas, as cláusulas 6ª do contrato de empreitada, celebrado em 27.09.95 e 3ª do aditamento, alcança-se que as contratantes tiveram em vista a consagração de um mecanismo que compelisse a autora a concluir a obra nas condições e prazo acordados.
10 Por via dessas cláusulas, a autora ficou vinculada a entregar uma garantia como contrapartida do cumprimento pontual da obrigação de realizar a obra; tal garantia, num primeiro momento seria prestada através da retenção pela ré de 10% do valor das medições mensais e, num segundo momento - verificada que fosse a recepção provisória da obra - , pela sua substituição por garantia bancária.
11 Quer isto significar, que na hipótese da autora não terminar a obra no prazo acordado, ou, terminado-a, a tivesse executado com defeitos, assistia à ré o direito de fazer suas essas quantias, a título de indemnização pelo incumprimento definitivo - cf., neste sentido, Pedro Romano Martinez Contrato de Empreitada 1994 186 - .
12 Porque de cláusula penal se trata, verificado o incumprimento definitivo da autora, não só a ré não está obrigada a restituir a garantia prestada pela autora, como lhe assiste o direito de integrar a correspondente quantia no seu património, a título de ressarcimento dos prejuízos sofridos em consequência desse inadimplemento,
13 Para a hipótese de se entender - o que apenas se figura a benefício de demonstração de raciocínio - que a ré não tem direito a fazer suas as referidas importâncias, deverá manter-se acolhida na 1ª instância , no sentido que a devolução desses montantes não é exigível, por estar submetida a uma condição suspensiva (ut artº 270º do CC), rectius, a verificação do facto futuro e incerto da recepção da obra.
14 Com efeito, fixado prazo admonitório, e resolvido que foi o contrato de empreitada, - in casu disciplinador de relações contratuais duradouras - , os efeitos retroactivos da resolução deixam de operar, quando a tal se opõe a finalidade do contrato (ut artº 434º nº 1, segundo trecho do CC).
15 Uma vez que a obra não se encontrava concluída, à data da resolução, razão por que foi confiada a terceiro, não podia a parte edificada pela autora deixar de ficar garantida pela retenção de 10% efectuada sobre as mediações mensais, pois que, tal garantia não podia ser transferida para quem não teve qualquer intervenção e responsabilidade na execução dessa parte da obra.
16 Dito de outro modo, tal parte da obra só podia ficar garantida à custa de quem a edificou, a autora, sob pena da ré ficar sem qualquer possibilidade de se ressarcir dos prejuízos emergentes dos sucessivos atrasos e, bem assim, dos defeitos que a obra eventualmente pudesse vir a revelar.
17 Esta, por conseguinte, a razão de ser da garantia prestada pela autora e que deverá, em derradeira alternativa, manter-se, até que a ré recebe provisória e, depois definitivamente, a obra, agora já não pela autora, mas pelo terceiro contratado para a finalizar.
18 Nessa conformidade, a declaração resolutória não pode nesta parte produzir efeitos retroactivos, sob pena da própria finalidade da resolução ficar prejudicada.
19 Dado que a execução do contrato foi continuada, sempre lhe seria aplicável à resolução a disciplina do nº 2 do artº 434º do CC, pelo que só a título excepcional é que haveria lugar à restituição das prestações efectuadas, devendo então existir entre elas e a causa resolutória um vínculo que legitimasse a resolução de todas elas.
20 No caso que nos ocupa, a função garantística, por um lado, e ressarcitória, por outro, das retenções efectuadas pela ré manteve-se para além da resolução; por conseguinte, entre a resolução e as quantias retidas pela ré não se verifica qualquer tipo de vínculo que legitime que os efeitos retroactivos da resolução lhe sejam extensíveis.
21 O acórdão recorrido violou as disposições legais supra citadas, devendo ser revogado na parte em que condenou a ré no pagamento de juros de mora calculados sobre a quantia de 3.148.816$00 e, bem assim, na restituição da quantia de 8.993.963$00 e respectivos juros moratórios.

Corridos os vistos legais cumpre decidir.

II

As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

A - A autora dedica-se à actividade de construção civil e empreitadas de obras públicas e privadas.
B - No dia 27.9.95, autora e ré celebraram o contrato denominado de empreitada - fls. 5 a 18 - , tendo por objecto a execução da obra de arranjos exteriores do edifício designado por Les Palaces, na Rua Júlio Dinis no Porto.
C - Por força do referido contrato, a autora obrigou-se a iniciar, executar e concluir a obra de arranjos exteriores de arruamentos, execução de lajes, tudo em betão armado, colocação de lajeta e forros de pregaia do referido do referido empreendimento.
D - De acordo com o inicialmente acordado, a autora deveria iniciar a obra, em 01.10.95 e conclui-la até Dezembro de 1995.
E - Em 03.05.96, a autora e a ré subscreveram o aditamento de fls. 37 a 58, comprometendo-se a autora a executar a alteração aos arranjos exteriores do edifício, decorrentes da alteração ao projecto que a ré efectuou, montagem da rede eléctrica e de água para os arranjos exteriores inicialmente feitos e montagem electromecânica (água e luz dos lagos estéticos), conforme anexos de fls. 44 e 46, sendo o prazo para efectuar a obra de 6 semanas.
F - De acordo com o contrato (inicial e aditamento), o pagamento do preço deveria ser feito no prazo de 30 dias, após a data de emissão de cada factura.
G - A ré não pagou à autora o valor da factura nº 6045, de 31.10.96, que esta lhe enviou, no montante de 3.752.775$00.
H - Nos termos das cláusula 6ª do contrato celebrado e 3ª do aditamento, nos autos mensais serão retidos 10%, correspondentes à garantia exigida pela ré, para efeitos de correcta e pontual execução da empreitada, totalizando tais décimos 5.074056$00 e 9.287.093$40, respectivamente, que serão libertados após a recepção provisória, contra garantias bancárias no mesmo valor, válidas por um e dois anos, respectivamente, até à recepção definitiva.
I - A ré procedeu à retenção de 10% sobre todos os pagamentos, no valor total de 8.993.963$00.
J - A recepção provisória não foi feita e a autora não apresentou a garantia bancária.
L - A autora parou os trabalhos na obra, tendo a ré enviado àquela a carta de fls. 65, datada de 27.01.97, na qual lhe comunicou a rescisão unilateral do contrato, com efeitos a partir daquela data, em consequência do incumprimento continuado do mesmo e do aditamento.
M - Em Janeiro de 1997, os trabalhos ainda não estavam totalmente executados.
N - De acordo com a cláusula 5ª do contrato e 4ª do aditamento, por cada dia de atraso em cada uma das fases, o dono da obra aplicará ao empreiteiro uma multa de 100.000$00/dia, duplicando o seu valor sempre que passem períodos de 15 dias, sendo as multas cumuláveis.
O - A autora iniciou a obra no fim de Dezembro de 1995, já que só em 31.12.95, a obra e o local estavam em condições de se poder iniciar os trabalhos contratados com a autora.
P - Mesmo após aquela data, os trabalhos da autora atrasaram por se encontrarem mais empreiteiros em obra.

III

Apreciando

Antes de nos debruçarmos sobre as pretensões de cada um dos recorrentes, é conveniente fazer uma análise dos termos do contrato e das vissicitudes da sua execução.
O contrato
A autora e a ré celebraram um contrato, mediante o qual a primeira se obrigava a realizar para a segunda determinada obra, mediante uma contrapartida monetária. Essa obra foi definida no contrato e num seu aditamento, que fixou a data de 18.05.96, para a conclusão dos trabalhos.
Os pagamentos seriam efectuados pela ré no prazo de 30 dias, a partir da emissão da respectiva factura. Deles, reteria a ré 10%, correspondentes à garantia exigida pela ré do pontual cumprimento por parte da autora, os quais seriam libertados após a recepção provisória e substituídos por garantia bancária.
Mais convencionaram a aplicação duma multa por cada dia de atraso da autora em cada uma das fases da obra.
A sua execução
Por parte da autora
Em Janeiro de 1997, os trabalhos ainda não estavam totalmente executados.
Por parte da ré
Não procedeu ao pagamento da factura nº 6045.
E reteve 10% nos pagamentos que efectuou.
Em 27.01.97, rescindiu o contrato invocando o incumprimento por parte da autora.
Em julgamento, as partes fizeram uma transacção que foi devidamente homologada, pela qual acordaram :
- que o montante da factura nº 6045 era o de 3.148.816$00 (2º);
- que o seu vencimento ocorrera em 20.02.97 (3º);
- que a autora reduz o seu pedido de juros, que pede apenas após a citação, no que respeita à quantia de 8.993.963$00 (4º).

recurso da autora

1 Pretende a autora que, para além dos trabalhos ajustados no contrato inicial e no seu aditamento, acordou oralmente com a ré a feitura de outros trabalhos, o que atrasou ainda mais a obra e impedia que a mesma fosse realizada no prazo acordado.
Este facto foi alegado na petição inicial, impugnado na contestação, mas não foi levado à base instrutória. Quando reclamou desta, a autora, contudo, não o referiu. Aceitou, assim, que o mesmo deixasse de fazer parte do âmbito factual do litígio. Não pode, por isso, agora, querer ressuscitá-lo pela via de documentos que, na sua óptica, o provam integralmente. Ainda que o provassem.
O que, aliás, não acontece. Nem o facto da ré reconhecer a dívida da factura nº 6045, cujo valor, em parte não determinada, derivaria de trabalhos sem contrato, implica a confissão por esta da existência de tal tipo de trabalhos, uma vez que o valor reconhecido é inferior ao ali constante. Portanto, poderia acontecer que o valor excluído dissesse respeito, precisamente, a esses trabalhos. Como também, não o implica o documento de fls. 68 e segs., que não é, formalmente, um documento emitido pela ré.
Sendo, deste modo, documentos cujo valor probatório é de livre apreciação, constituem matéria de facto, cuja apreciação está excluída da competência deste Tribunal..
Recordemos que o critério da distinção entre matéria de facto e matéria de direito é a seguinte:
Sempre que para a fixação da realidade dum facto é necessário, para além dos restantes critérios legais, o da convicção do julgador, estamos perante matéria de facto.
2 Por outro lado, pretende que o atraso foi devido também à existência de mais empreiteiros na obra, facto que impediu o início dos trabalhos e a sua posterior continuação.
Cabe dizer que os problemas iniciais não podem ser tidos em conta, uma vez que toda a questão foi reequacionada pelas partes, ao celebrarem um adicional ao contrato e onde reformularam o prazo para a obra. O atraso relevante é aquele que ocorreu depois de 03.5.96, data da celebração do aditamento.
O Tribunal da Relação apreciou devidamente o caso ao considerar que a autora não demonstrou, como era seu ónus, que o atraso posterior a esta última data não lhe fosse imputável: "Temos portanto que a provada existência de outros empreiteiros na obra... em nada esclarece se, efectivamente, à data do início da empreitada a que se refere aquele aludido aditamento, aqueles profissionais da construção civil se encontravam ainda a executar trabalhos."; "...constituía ónus da A, para seu inquestionável benefício, clarificar devidamente a situação que se terá efectivamente verificado, nomeadamente quanto ao concreto período temporal em que teve lugar a eventual impossibilidade de proceder à efectivação dos trabalhos na obra, no sentido de poder ser excluída a sua responsabilidade pelo ocorrido incumprimento do contrato celebrado - artº 792º do C. Civil...".
Improcedem, pois, as conclusões 8 e 9.

3 Pretende igualmente a autora retirar efeitos da desistência da empreitada por parte da ré, alegando que o artº 1229º do C. Civil determina a obrigação do dono da obra indemnizar o empreiteiro pelos prejuízos que sofreu, se desistir da empreitada. Conclui que esta norma acaba por excluir o eventual pagamento da multa pelo atraso nos trabalhos.
Esta interpretação do preceito iria contra a regra da solução mais equilibrada - artº 9º nº 3 do C. Civil - . A desistência da empreitada é livre, mas há que assegurar as legítimas expectactivas económicas do empreiteiro. Mas só as legítimas. E entre estas certamente que não se encontram as consequências da sua própria mora., como seja o pagamento da multa.. Sendo certo também que, ao contrário dos restantes prejuízos, este não teve por causa a desistência do dono da obra.
Improcedem, assim, as conclusões 10 a 13.

4 Invoca igualmente a recorrente a excepção do não cumprimento pela outra parte, pelo que não teria entrado em mora.
Esta questão apresenta-se como questão nova. E daí que não possa ser apreciada. A autora nunca afirmou de forma válida nos autos que não cumpriu a sua obrigação porque a ré também não cumpria a dela. Certamente que a excepção foi invocada no artº 15º da réplica, mas esta alegação não pode ser tido em conta, por ter ficado definitivamente decidido pelo despacho de fls.108, que os primeiros 17 artigos da réplica não poderiam ser considerados.
Apesar de constar das conclusões do recurso de apelação, o Tribunal da Relação decidiu e bem, que o trânsito em julgado do mesmo despacho impedia o conhecimento da "veracidade" da alegação.
Tese esta que, aliás, é contraditória com a da justificação da impossibilidade de realizar os trabalhos por razões independentes da vontade da autora.
Improcedem, assim, as conclusões 14 a 17.

5 Alega a autora que a ré não referiu a que fases da obra se reportavam os atrasos.
Sendo, de acordo com o fixado no contrato, igual para qualquer das fases o sistema de determinação do quantitativo da multa, era irrelevante a pretendida especificação para achar o valor daquela multa.
Refira-se também que na contestação à reconvenção a autora não impugnou o montante da multa indicada no pedido reconvencional e, consequentemente, o modo como a ré o calculou, pois, aí, apenas defendeu-se por excepção: justificação dos atrasos, desproporcionalidade da cláusula penal, abuso de direito.
Improcedem as conclusões 18 e 19.

6 Prevendo o contrato que a ré fizesse a dedução da multa nos pagamentos que efectuava e como isso nunca aconteceu, entende a recorrente que os atrasos devem-se ter por justificados, nos termos da alínea d) da cláusula 5ª do Anexo I.
Estipula-se nesta alínea que o dono da obra não aplicará as penalidades pela sua não conclusão, sempre que considerar os atrasos do empreiteiro justificados.
São possíveis duas interpretações desta cláusula: a)o dono da obra só exercerá o seu direito de aplicar multas se o quiser; b)se o dono da obra não exercer esse direito no modo e tempo previsto, considera-se justificado o atraso.
A primeira, embora mais de acordo com a letra da cláusula, é inócua.
A segunda satisfaz o princípio do equilíbrio nas prestações, que nos deve nortear na interpretação dos negócios jurídicos onerosos, conforme o artº 237º do C. Civil - e por ela optaremos.
Ora, aquilo que é referido na alínea c) da citada cláusula é que a efectivação da multa far-se-á mediante dedução na facturação imediatamente posterior à comunicação.
Para fazer valer a tese da justificação, teria a ré de alegar e provar, ou que não houve comunicação, ou que, havendo-a, não foi deduzido o valor da multa na facturação imediatamente posterior. Não o fazendo, não pode ser atendida esta sua pretensão.
Improcedem as conclusões 20, 21 e 22.

7 Pretende a recorrente a redução do montante da cláusula penal, de acordo com a equidade.
O artº 812º nº 1 do C. Civil determina que a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva.
A jurisprudência deste Tribunal vai no sentido de que o uso da faculdade prevista no preceito em apreço tem uma natureza excepcional:
"A intervenção judicial para a redução duma cláusula (penal), de acordo com a equidade, apenas deve ter lugar em casos-limite de manifesta ou ostensiva excessividade, desproporção ou onerosidade, em ordem a não saírem frustrados os objectivos do instituto." - AC STJ de 05.12.02 Sumários 2002 379 - .
"A faculdade concedida ao tribunal pelo artº 812º nº 1, do CC, de reduzir, de acordo com a equidade, a cláusula penal acordada pelas partes, mediante contrato, é uma aplicação concreta da regra do artº 762º nº 2, do mesmo código, e que impõe às partes que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, procedam de boa-fé." - AC STJ de 12.12.02 Sumários 2002 384 - .
Ora, tendo em conta os valores do negócio em causa (os montantes elevados da empreitada), o seu objecto (a considerável dimensão da obra) e a natureza das partes (grandes empresas), a referida cláusula penal, sem bem que "pesada", não pode ser considerada fora do aceitável.
E sendo esta regra da redução pela equidade um afloramento do principio da boa-fé no cumprimento das obrigações, há que assinalar que as partes confirmaram a cláusula penal no aditamento ao contrato, quando já se punham problemas de atrasos na execução dos trabalhos. Ou seja, a autora teve ocasião de ponderar em concreto a possibilidade do pagamento da multa ajustada e o encargo que isso significava e mesmo assim, aceitou tal encargo.
Seria contrário aos ditames da boa-fé vir, agora, opor-se ao montante da multa, no momento da sua efectiva aplicação.
Desta forma, improcedem as restantes conclusões do recurso.

recurso da ré

1 A ré veio invocar que a transacção que as partes celebraram no decurso do processo a que se reportava à factura nº 6045, excluía a obrigação de juros, inicialmente peticionados pela autora.
Mais refere que o tribunal recorrido já não tinha jurisdição para alterar o conteúdo da transacção, cuja sentença homologatória transitara em julgado, o que, porém, aconteceu, com a condenação da ré no pagamento de tais juros.
Com efeito, não é possível a reapreciação duma questão já decidida em transacção homologada por sentença transitada, como a própria decisão recorrida reconhece, ao abster-se de proferir nova decisão condenatória sobre a obrigação de capital que nessa transacção foi assumida pela ré.
Mas o que é verdade para a obrigação de capital é-o também para a obrigação de juros. Se o tribunal entendia que na transacção fora igualmente assumida ou afastada esta última obrigação, então, do mesmo modo, devia abster-se em condenar.
Ao fazê-lo, tem de se entender que considerou que a matéria dos juros moratórios não fazia parte do objecto da transacção. E, na verdade, a decisão recorrida perfilha expressamente este entendimento ao consignar a fls. 294, que "tal matéria (a obrigação de juros respeitante à factura nº 6045) não foi vertida na aludida transacção, não pode considerar-se abrangida pela decisão judicial homologatória.". Para concluir pela omissão de pronúncia do tribunal de 1ª instância em relação ao pedido de juros moratórios sobre a quantia da dita factura.
Há, por isso, que ver se esta posição da 2ª instância foi correcta.
O Tribunal da Relação considerou que o facto de se ter fixado na transacção a data de vencimento da factura significava que as partes não haviam excluído o vencimento dos respectivos juros.
Diz a recorrente que essa data foi estabelecida apenas para determinar uma data que antes não era consensual. Esta explicação, sem outros elementos, para além dos indicados para demonstrar que não havia acordo, não nos diz qual seria o interesse em consignar uma data, que não produziria quaisquer efeitos jurídicos.
O conteúdo útil da fixação por acordo duma data de vencimento anterior para um crédito só pode querer significar, conforme a regra da impressão do declaratário do artº 236º nº 1 do C. Civil, que se quis e se aceitou o vencimento dos respectivos juros moratórios. Sobretudo quando esses juros já foram pedidos.
Mas para além disto, há que ver que, conjugando a determinação dessa data com os restantes termos da transacção, esta é expressa na vontade de manter o pedido de juros em relação à factura nº 6045.
Depois de na cláusula 3ª fixar-se a data de vencimento da factura, na cláusula seguinte, consigna-se que o pedido de juros é reduzido, mediante o pedido apenas daqueles que se vencerem após a citação, no que respeita à quantia de 8.993.963$00.
A redução do pedido de juros respeita a outro capital que não o da factura.
Por outras palavras, o pedido de juros globalmente considerado mantém-se, e é reduzido em relação a uma outra quantia que não a da factura em causa.
Portanto, o pedido de juros quanto a esta mantém-se e não foi objecto da transacção, que, assim, os não excluiu.
Não merece censura o decidido pela Relação.
Tendo, pois, de improceder as conclusões 1 a 8.

2 A ré pretende que não está obrigada a restituir as percentagens dos pagamentos efectuados à autora que, nos termos contratuais reteve, como garantia do pontual cumprimento pela autora da empreitada.
Fundamenta a sua posição no incumprimento definitivo por parte da autora.
A verdade é que, aquando da rescisão unilateral do contrato pela ré, a autora encontrava-se apenas em mora, não existindo factos demonstradores da intenção definitiva de não cumprir, ou da perda de interesse por parte da ré - cf. artº 808º do C. Civil - . Logo, não poderiam ser accionados os mecanismos de garantia pelo incumprimento definitivo. Nomeadamente, a ré fazer suas as quantias retidas.
O fim do contrato tem de ser considerado como tendo ocorrido ao abrigo do artº 1229º do C. Civil.
A Relação analisou bem esta questão ao decidir: "E uma vez que não foi alegado pela Ré, quer o desaparecimento da necessidade que a prestação se destinava a satisfazer, quer a ocorrência da interpelação admonitória da A., tendente à conversão da sua mora em incumprimento definitivo - artº 808º nº 1 do CC e "Obra Dispersa do Prof. Baptista Machado, vol I, pág. 163 e segs. - , não se poderá considerar que a rescisão do contrato levada a cabo pela Ré revista natureza equiparável à resolução do mesmo por incumprimento do empreiteiro, nos termos do citado artº 801º do da codificação substantiva.".
Diz a ré que, a não se entender que houve incumprimento definitivo, então, dever-se-á adoptar a solução apontada pela 1ª instância, que foi a de fazer depender a exigibilidade dos montantes da verificação dum facto futuro e incerto, a recepção provisória da obra, como previa o contrato.
A sua tese é a de que, só depois de ocorrer essa recepção, é que a ré poderá verificar se existe cumprimento defeituoso na parte realizada pela autora, sendo certo que esta parte não pode deixar de estar coberta pela garantia, contratualmente prevista.
A garantia representada pela quantias em discussão existe na perspectiva da normal execução do contrato, com a total feitura da obra e a consequente recepção provisória. A sua lógica dentro do programa contratual é clara. Não pode valer para "meia-obra". Ou seja, para cobrir defeitos que não se sabe se a final ainda ocorreriam, se a autora continuasse os trabalhos. A apreciação do seu pontual cumprimento não pode ficar dependente da actividade dum terceiro ao contrato, o empreiteiro que terminará a obra, sendo-lhe, por outro lado, vedado desenvolver qualquer conduta no sentido do integral cumprimento da sua obrigação. Consequentemente, não pode ficar obrigado a garantir uma recepção impossível da "sua" obra.
Extinta a empreitada pelo dono da obra, ao abrigo do artº 1229º do C. Civil, cessam todas as obrigações do empreiteiro.
Tem razão a recorrente quando alega que, desta maneira, não fica garantida a porção dos trabalhos realizados pela autora. Mas só a si é de imputar a diminuição das garantias. Foi ela que decidiu por fim ao contrato, de forma lícita, é certo, mas não justificada pelo incumprimento definitivo da outra parte. Portanto, tem de suportar as consequências da sua conduta dentro do princípio de ubi commoda, ibi incommoda.
Pelo que é correcta a tese da Relação de que, extinto o contrato, pela forma como o foi, tem a ré de restituir as quantias retidas.
Improcedendo as restantes conclusões dos recursos.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes, na proporção do vencido.

Lisboa, 20 de Novembro de 2003
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida