BALDIOS
APROPRIAÇÃO PRIVADA
Sumário

I - No domínio do actual Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que os baldios eram susceptíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva).
II - Situação que foi radicalmente alterada com a entrada em vigor do Decreto-Lei n° 39/76, de 19 de Janeiro que, no seu art° 2°, estatuiu: «Os terrenos baldios, encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião».
III - A partir do advento deste diploma legal, aliás em consonância com o texto da Lei Fundamental na altura (art° 89° da CRP/76) e até hoje, os baldios são insusceptíveis de .apropriação privada.

Texto Integral

Processo n.º 260/05.0TBMTR. – Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B… e cônjuge, C…, agricultores, residentes na R. …, n.° ., …, …, Montalegre, propuseram contra D… e mulher, E…, agricultores, residentes no mesmo local, a presente acção com processo comum na forma sumária, pedindo que se declare que são proprietários de um prédio rústico denominado "…", composto de lameiro, mata mista e pastagem, com 13.220 m2, sito nos limites do …, freguesia de …, inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o art.º 413, bem como das águas, poça e rego referidos nos art.ºs 10.° a 21.°, da petição inicial, e que se condenem os réus a pagar-lhes uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que calculam em € 1.950,00, acrescida da verba de € 500,00 por cada ano de privação da água, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação. Em ampliação do pedido posteriormente deduzida e admitida, pedem ainda a condenação dos réus a reporem as coisas no estado anterior à sua obra de 22 de Outubro de 2005, restabelecendo a ligação do lençol de água que deriva para a nascente da poça dos autores, por forma a restabelecer o caudal que tal nascente teve até à referida data. Alegam para tanto, no essencial, que são proprietários daquele prédio rústico por o terem adquirido por escritura pública de compra e venda outorgada no Cartório Notarial de Montalegre em 7 de Outubro de 2003, tendo já os seus antepossuidores dele vindo a fruir há mais de 200 anos, na convicção de que utilizam bem próprio sem lesarem direito de outrem, como se fossem proprietários. Existe uma poça e rego sitos em terreno baldio, os quais retêm e conduzem para o terreno dos AA. águas originariamente públicas que os antecessores dos autores exploraram, desde tempos imemoriais, muito antes de 21 de Março de 1968, tendo construído tal poça e rego e procedido à sua manutenção, pelo que adquiriram por preocupação o direito de propriedade sobre tais águas. Sucede que os réus construíram em terreno seu, que confina com o mencionado baldio, a cerca de seis metros de distância da extremidade nascente daquela poça, uma estrutura de captação de águas que atingiu o lençol freático que alimentava a aludida poça, fazendo secar completamente a nascente que a alimentava e assim causando prejuízos aos AA. de natureza patrimonial e não patrimonial.
Citados os réus contestaram, impugnando a tese da aquisição da propriedade das águas pelos dos AA., sustentando que a poça e o rego em questão, por se encontrarem em terreno baldio, não podem ser objecto de apropriação. Sustentam ainda que as obras de prospecção de água efectuadas no seu terreno cabem nos limites do seu direito de propriedade, concluindo pela improcedência da acção.
Realizada audiência de julgamento e decidida a matéria de facto, com referência aos articulados, por não ter sido organizada base instrutória, foi, a final, proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e provada em consequência do que:
A) declarou que os autores são proprietários do prédio rústico denominado "…", composto de lameiro, mata mista e pastagem, com 13.220 m2, sito nos limites do …, freguesia de …, que confronta do norte com F…, do sul com G…, do nascente com H… e poente com o baldio, está inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o art.° 413, bem como da poça e rego referidos em 7) a 10); e
B) absolveu os réus dos demais pedidos contra si formulados pelos autores.
Inconformados com o assim decidido, dele interpuseram os AA. o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1ª- Resultou provado que os AA. apelantes são proprietários do prédio rústico identificado no artigo 1º da p.i. - …, … e …, que adquiriram quer por contrato de compra e venda (1255° e 1316° do C. Civil), quer pela via originária -usucapião (Arts 1287° e 1296° do C. Civil);
2ª- Que desde tempos imemoriais, há mais de cento e oitenta anos, (antes de 21 de Março de 1868!), os seus antepossuidores, em terreno do domínio comunitário, construíram a poça e o rego, para captar, acumular e conduzir as águas que brotam na nascente situada no interior da "…", que vêm destinando para rega exclusiva do seu prédio identificado no artigo 1º da petição, para o qual são canalizadas;
3ª- Que desde a construção daquelas estruturas (poça e rego) até hoje, primeiro aqueles (antepossuidores - a …) depois os AA., sem qualquer interrupção temporal e sem oposição de alguém que nisso mostrasse interesse, à vista de toda a gente, convictos de que exercitam direito próprio sem lesarem interesses alheios, têm reparado, limpo e zelado pela manutenção das ditas estruturas e utilizado as águas, com carácter exclusivo, naquele seu prédio.
4º- Porque aquelas águas, que brotam em terreno sob o domínio comunitário - originariamente públicas, produzidas na nascente que bota na poça, acumuladas neste reservatório, e conduzidas no rego supra ditos, foram apropriadas pelos antecessores dos AA. apelantes antes de 21 de Março de 1868, estes adquiriram-nas por preocupação, por força do disposto no Art. 1386° n° 1-d) do C. Civil vigente.
5º- Os AA. apelantes, lograram provar todos os factos conducentes à aquisição por preocupação, ou seja:
- que as águas entraram no domínio privado antes de 21 de Março de 1868 e que antes desta data foram construídas obras permanentes de captação e acumulação (poça) e condução (rego), utilizadas para rega do prédio dos AA.; e
- que não houve perda do direito adquirido, isto é, que este perdurou, pelo menos desde aquela data até hoje, no domínio dos AA, e antes dos seus antecessores,
6º- Em face da factualidade apurada e do direito aplicável, supra referidos, o direito de propriedade dos apelantes sobre as ditas águas e estruturas de captação, acumulação e condução, adquirido por preocupação, tem que ser declarado e, consequentemente, condenados os RR. a reconhece-lo e respeita-lo.
7º- As obras permanentes de captação, acumulação e derivação das águas, construídas pelos antecessores dos AA. antes de 21 de Março de 1868, são um acessório do direito à água captada, acumulada e conduzida e a sua constituição pressupõe o direito à água captada e acumulada na poça e conduzida no rego;
8º- Por força do disposto no nº 1-a) do Art. 1387° do C. Civil vigente, são particulares as obras permanentes -poços, galerias (minas), canais, levadas, aquedutos, reservatórios e outras, destinadas à captação, derivação ou armazenamento de águas públicas ou particulares.
9º- As obras visíveis e permanentes construídas pelos antepossuidores dos AA. - a poça e o rego, destinadas à captação, acumulação e condução da água para o seu prédio aludido na conclusão Ia, que aqueles e depois de adquirirem o seu domínio os AA., sempre utilizaram, repararam e limparam, são propriedade destes.
10º- Porque os RR. apelados ofenderam o direito de propriedade dos AA. sobre aquelas águas, conforme se descreve nos pontos 22) a 28), 31) e 32) da douta sentença recorrida, fazendo extinguir (secar) a nascente que botava dentro da aludida poça dos autores, causando aos apelantes danos patrimoniais e não patrimoniais,
11º- deverão os apelados ser condenados a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre aquelas águas, poça e rego, a absterem-se de por qualquer forma ou modo violarem este direito dos apelantes, a reporem as coisas no estado anterior à sua obra de 22 de Outubro de 2005, restabelecendo a ligação do lençol (veia) de água à nascente da poça dos AA. (…), por forma que esta continue a produzir (brotar) água com o caudal idêntico ao que teve até àquela data (22.10.2005), e ainda e a indemnizarem-nos por todos os danos sofridos pelos recorrentes e a que os apelados deram causa.
12º- Do processo constam todos os elementos que serviram de base à decisão recorrida, pelo que o Tribunal de recurso pode alterar a matéria de facto fixada em Ia instância - Arts 712º nºl-a) e 690°-A do C. P. Civil.
13º- Os elementos de prova fornecidos pelo processo, supra enunciados, impõem decisão diversa da que foi proferida pelo M.mo Juiz a quo, que julgou incorrectamente a matéria inserta nos artigos 17°, 19 °, 20°, 34° e 39° da petição inicial, aos quais este Venerando Tribunal deverá responder do modo seguinte:
a)-artigo 17° da p. i.: Provado
b)- Artigo 19° da p. i.: Provado.
c)- Artigo 20° da p.i.: Provado que os AA. as águas, poça e rego vêm sendo utilizados pelos demandantes e seus antepossuidores desde data anterior a 21 de Março de 1868.
d)-Artigo 34° da p. i.: Provado".
14º- Os AA. e seus antecessores no domínio apropriaram e possuem as águas captadas e acumuladas na poça e conduzidas no rego em causa na presente lide, desde tempos imemoriais, antiquíssimos, há mais de 180 anos, que se situam nos primórdios do povoamento da localidade de …, muito mais de trinta anos antes de 21 de Março de 1868.
15º- Em face desta factualidade e à luz do disposto no Art. 529° do C. C. de 1867, o direito de propriedade sobre as águas em litígio nesta acção já se havia integrado na esfera jurídica dos antecessores dos AA., antes de 21 de Março de 1868, por prescrição.
16º- Se o Tribunal entender que dos autos não resultam elementos suficientes para permitir concluir que os tempos imemoriais, há mais de 180 anos, se situam antes de 1868, então deverá o processo baixar à 1a instância para ser apurado este facto, vertido nos artigos 17° e 20° da petição inicial.
17º- A entender-se que as águas que brotam nos baldios são águas comuns, seguindo a natureza destes terrenos, serão aquelas prescritíveis na mesma medida em que historicamente estes o sejam.
18º- Parece pacífico que até há entrada em vigor do Dec. Lei 39/76, os baldios sempre foram considerados prescritíveis, susceptíveis de entrar no domínio privado por via da usucapião.
19º- Em face da factualidade provada, numa visão mais restritiva, a partir de 31 de Dezembro de 1940, com a entrada em vigor do C. Administrativo - Art. 388° § único, os AA. teriam usucapido as ditas águas, porque em 1976 já teriam pelo menos 47 anos de posse, pelo que também teriam adquirido o direito sobre as águas por via da usucapião.
20°-A douta sentença recorrida viola, entre outras normas, o disposto na alínea c) do nº 1 do Art. 668° do C. P. Civil, Arts 1386° nº 1-d), 1387° nº 1-a), 1390° nºs 1 e 2,1394° e 483° nºl do C. Civil vigente, Art. 529° do C. Civil de 1967 e Art. 388° do C, Administrativo.

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Os RR. apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Os AA. começam por impugnar a decisão sobre matéria de facto considerada provada pela 1.a instância, que recortou do seguinte modo a factualidade a atender:
1) Os autores são proprietários de um prédio rústico denominado "…", composto de lameiro, mata mista e pastagem, com 13.220 m2, sito nos limites do …, freguesia de …, que confronta do norte com F…, do sul com G…, do nascente com H… e ponte com o baldio, está inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o art.º 413.
2) Este imóvel está descrito na CRP de Montalegre sob o n.º 00888/030604 - …, e registado a favor dos autores pela inscrição G-2.
3) Veio ao domínio dos autores através de aquisição derivada, por compra a I… e mulher, J…, formalizada por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Montalegre no dia 07 de Outubro de 2003, exarada a fls. 36/37 do Livro 895-A.
4) Os autores, por si e antecessores, vêm, há mais de 200 anos, zelando por este terreno, retirando dele feno, pasto para os animais, mato lenha e madeira.
5) Sempre à vista de toda a gente, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem qualquer oposição, estorvo, incómodo ou turbação de quem quer que fosse, na convicção de que utilizam bem próprio sem lesarem direito de outrem, como se fossem proprietários.
6) Em terreno baldio estão situados uma poça e um rego.
7) A poça, conhecida por "…", localiza-se a nascente do Caminho do …, via pública, e é ligada ao imóvel referido em 1) por um rego a céu aberto com cerca de 105 metros de comprimento.
8) A poça tem cerca de 10 metros de diâmetro norte/sul e 8,60 metros nascente/poente, e de profundidade 1,20 metros, e o talude é formado por blocos de granito e terra compacta.
9) O dito rego, que parte daquela poça no sentido sul-norte, ao longo da margem direita (nascente) do caminho, atravessando esta via para poente a cerca de cinco metros da extremidade nordeste do prédio dos autores, no qual entra através de uma "gateira" feita no muro de vedação.
10) O rego tem a profundidade de 25 cms e a largura de 30 cms.
11) No interior da referida poça, junto ao bordo do lado nascente, brota uma nascente de água, que se acumula naquele reservatório.
12) Estas estruturas de produção (nascente), acumulação (poça), e condução (rego) de água, e esta, destinam-se exclusivamente à irrigação do prédio dos autores.
13) Os autores vêm possuindo, por si e antecessores, as águas acumuladas na poça e rego há mais de 70 anos.
14) Eram águas originariamente públicas, que brotavam e corriam em terreno do domínio comunitário, logradouro comum aos compartes da localidade de ….
16) A poça e o rego eram explorados pelos antecessores dos autores.
17) A poça e rego vêm sendo utilizados pelos autores e seus antecessores há mais de 70 anos.
18) Os autores e os seus antecessores operaram a construção, reparação e limpeza daquelas estruturas (poça e rego) sempre que destas obras careceram, mantendo a sua funcionalidade ininterruptamente.
19) Tudo sempre de forma e ânimo mencionados em 5).
20) Os gados (bovino, ovino e caprino) dos compartes da povoação de … sempre beberam naquela poça quando sedentos passavam no "caminho do …".
21) Até Outubro de 2005, jamais alguém perturbou os demandantes em relação às águas em causa e estruturas que as produzem, acumulam e conduzem até ao seu "…".
22) No dia 22 de Outubro de 2005, os réus fizeram obra num seu prédio cuja extremidade poente se situa a 6 metros da ….
23) A 15,40 metros de distância da extremidade nascente daquela poça, utilizando meios mecânicos (máquina rectro-escavadora), os réus fizeram escavação no seu prédio, até atingirem o lençol de água que alimentava a "nascente de água" que brotava na poça do ….
24) Construíram uma estrutura de captação de águas, abriram uma vala que serviu de leito a um tubo de polietileno, que as canaliza para um prédio dos réus, também denominado "…".
25) A descrita obra executada pelos réus fez extinguir (secar) completamente a nascente de água que brotava na supradita poça dos autores.
26) No prédio dos réus, acima mencionado em 22) não brotava água à superfície.
27) A obra dos réus foi planeada e executada com o propósito de interromper o lençol freático que alimenta a nascente da poça dos autores, desiderato que realizaram em absoluto.
28) A obra dos réus causa prejuízos aos autores que ficam privados da água que irrigava o seu prédio.
29) Os autores, directamente no dia 22/10/2005, e através do seu advogado em 24/10/2005, interpelaram os réus, instando-os a restabelecerem o normal curso das águas.
30) Os réus são residentes na localidade de ….
31) O aludido em 28) implica a diminuição de produtividade de feno, erva e pasto.
32) Os autores tiveram despesas com o presente processo e com deslocações a Montalegre.
33) O prédio dos réus situa-se a seis metros da poça mencionada em 7), e a exploração e a captação da água feita pelos réus está afastada da mesma poça em 15,40 metros.
34) O prédio dos réus situa-se num nível superior relativamente ao local onde se encontra a poça referida em 7).
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A discordância que os AA. exprimem relativamente à decisão sobre matéria de facto proferida na 1.a instância prende-se com os seguintes pontos da petição inicial:
17° - Os quais (AA.), por si e antecessores na dominialidade, vêm possuindo as águas nelas produzidas e acumuladas, desde há mais de cento e oitenta anos.
19° - (Eram águas) Que os antecessores dos AA. exploraram, construindo a expensas suas a poça e o rego que as liga ao seu prédio supra identificado.
20° - Vêm sendo utilizadas pelos demandantes e seus antepossuidores desde tempos imemoriais, muito antes de 21 de Março de 1968.
34° - Mas também afecta os compartes do …, que se vêem privados da água que alimentava a "…", que sempre foi bebedouro para os respectivos gados que por ali transitavam de e para o pasto.
39° - A obra e conduta dos RR. causaram aos demandantes danos não patrimoniais, traduzidos na inquietação, nervosismo, intranquilidade, desgosto, que a privação do uso da água e a necessidade do recurso à via judicial lhes provocam, para cujo ressarcimento estimam adequada a quantia de 500,00 €.
Tal matéria mereceu do tribunal “a quo” respostas negativas, quanto aos itens 34.º e 39.º, e respostas restritivas quanto aos itens 17.º, 19.º e 20.º, reproduzidas nos pontos 13.º, 16.º e 17.º da factualidade supra enunciada. Pretendem os recorrentes ver todas essas respostas invertidas em sentido inteiramente afirmativo, com fundamento em contradição lógica quanto ao item 34.º, e em deficiente valoração da prova, quanto aos restantes.
Refira-se, desde já que o vício previsto na alínea c) do n° 1 do art. 668° CPCiv. não se prende com deficiências ou contradições que inquinem a fundamentação de facto. Naquela hipótese, haverá lugar a nulidade da própria sentença. Aqui, a ocorrer contradição, só afecta resposta sobre que recai, dando a resposta anulada lugar a repetição do julgamento se estiver em questão facto essencial para o julgamento da causa (art.º 712.º, n.ºs 1 al. a), 4 e 5 do CPCiv.).
Entendem os apelantes que o facto n.º 20 da factualidade supra (correspondente ao item 24.º da p.i.) está em contradição com a circunstância de a decisão recorrida ter considerado como não provado que “(a obra dos RR.) também afecta os compartes do …, que se vêem privados da água que alimentava a "…", que sempre foi bebedouro para os respectivos gados que por ali transitavam de e para o pasto”. De facto, a contradição só existiria se a decisão recorrida tivesse considerado o mesmo facto como provado e, ao mesmo tempo, como não provado. Mas, não foi isso que aconteceu. Com efeito, aquilo que ficou provado – sob o n.º 20 – foi que “os gados (bovino, ovino e caprino) dos compartes da povoação de … sempre beberam naquela poça quando sedentos passavam no "caminho do …" e aquilo que não ficou provado foi que os compartes tivessem ficado privados de água para as necessidades do gado. Como se escreveu no Ac. STJ de 20-05-2010, Proc. 2655/04.8TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, a contradição entre factos não provados e factos provados poderá existir, excepcionalmente, se as respostas negativas não acolheram facto que constitui ou integra antecedente lógico necessário de resposta afirmativa. Mas, no caso vertente, a matéria daquele n.º 20 não constitui antecedente lógico do item 34.º, uma vez que não se encontra pressuposto que a poça em questão fosse o único ponto disponível para proporcionar água ao gado dos compartes. Nada a alterar, por isso, por via da invocada contradição.
Quanto aos restantes pontos transcritos, pretendem os apelantes vê-los alterados com base nos depoimentos das testemunhas F…, K…, L… e M…, inquiridas em audiência. Cumprido o ónus estabelecido nos termos do art.º 685.º-B do CPC, conhecer-se-á do recurso, também nessa parte, procedendo à reapreciação da prova quanto à matéria de facto contida nos pontos mencionados.
Sendo certo que na reapreciação da prova as Relações têm a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição, não é menos sabido que o sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos comporta várias insuficiências, que o impedem de reproduzir comportamentos gestuais ou certas reacções dos depoentes, reveladoras do modo como são prestadas as declarações, as hesitações e embaraços que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o enfraquecimento da memória (sobre a questão, v. Antunes Varela, RLJ, Ano 129º, pág. 295., e António Abrantes Geraldes In, "Temas da Reforma do Processo Civil", vol. II, 3ª ed. pág. 273). Tais aspectos da prestação dos depoimentos gravados só podem ser percepcionados e valorados por quem os presencia, sendo insusceptíveis de posterior valoração por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do ou dos julgadores. Sem o apoio de tais elementos comportamentais, é maior o risco de valoração é superior nas Relações que na 1.a instância. Por outro lado, no que concerne à valoração da força probatória dos depoimentos das testemunhas, a regra é a da livre apreciação pelo tribunal, conforme o disposto nos artigos 396º do C. Civil e 655º, do C. P. Civil, traduzindo-se em "prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei" (Alberto dos Reis Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 569.). Tal julgamento, obtido com imediação de todas as provas só deverá ser sindicado pela Relação, no uso dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, em caso de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, tal como decidiu o Acórdão da Relação de Lisboa, de 19.9.2000 (CJ, Tomo IV, pág. 186). Em caso de desconformidade tal que as regras da ciência, da lógica ou da experiência, inequivocamente afastem a razoabilidade da convicção formulada.
Revertendo ao caso vertente, e ouvida a gravação sonora de todos os depoimentos prestados sobre os pontos impugnados, temos, desde logo, que o depoimento de parte prestado pelo réu é inócuo para o fim visado, não tendo ele confessado os factos sob impugnação. Tanto o réu como F…, K… e L… referem que tanto quanto se lembram, aquela poça era da “N…”, tendo K… respondido que achava que sim, mas não podia explicar à pergunta sobre se “terão sido os antepassados do Sr. O… que construíram a poça”. O sentido de tais depoimentos não é o que os recorrentes deles pretendem retirar, de que têm absoluta certeza, e ainda a inteira certeza de que os seus avós já tinham absoluta certeza, de que a poça já vinha sendo utilizada pelos pelos antepossuidores do referido O… muito antes de 21 de Março de 1868. Mais: partindo do pressuposto dos recorrentes, segundo o qual os avós das duas testemunhas mais idosas (que contavam 72 e 73 anos) terão nascido há pelo menos cento e trinta anos, a reconstituição histórica dos factos através da tradição oral só seria possível, na melhor das hipóteses, a partir do (também muito longínquo) ano de 1880. Pretender, a partir de tais meios de prova, uma resposta afirmativa, com requintes de precisão à data de 21 de Março de 1868 – excluindo, assim o dia 22 de Março de 1868 e os demais que se lhe seguiram – é algo que se afigura manifestamente desapoiado.
Sobre os danos não patrimoniais alegados no n.º 39.º nenhuma testemunha adiantou algo de útil, dificilmente se concebendo resposta diversa, apesar da plausibilidade do “estado de alma” dos recorrentes.
Vão, assim, inteiramente confirmadas as respostas dadas aos pontos impugnados, mantendo-se inalterada a matéria de facto considerada provada pela 1.a instância. No mais, de todo impensável seria a solução propugnada pelos recorrentes na conclusão 16.º, de repetição do julgamento para serem apurados os factos dos artigos 17° e 20° da petição inicial. Tais pontos foram objecto de decisão pela 1.a instância que não se mostra deficiente, obscura ou contraditória, não podendo ser objecto de anulação de acordo com o disposto no n.º 4 do art.º 712.º CPCiv. E a falta de elementos probatórios suficientes para a demonstração de todo o alegado pelos recorrentes apenas justifica a resposta restritiva que mereceram, e não que o julgamento seja repetido tantas vezes quantas as necessárias para produzir o resultado que lhes convém.
Em face de tal matéria, arredada fica a tese dos recorrentes, da aquisição da propriedade das águas por preocupação, nos termos do art.º 1386.º, n.º 1, al. c), do CCivil, pelas precisas razões já expendidas na douta sentença recorrida, indemonstrado que está que as águas em disputa tivessem entrado no domínio particular em data anterior a 21 de Março de 1868.
Não podem igualmente os recorrentes invocar a aquisição de tais águas por usucapião. Com efeito, a poça onde as águas brotavam está situada em terreno baldio. Ora, nos termos do art.º 1.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 68/93, de 4-9-1993, são baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, como tal se considerando o universo dos moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio. Dispõe, igualmente, o artigo 3.° da mesma Lei que "os baldios constituem, em regra, logradouro comum, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola". Por onde se vê que os baldios são prédios rústicos, e enquanto tal, uma subespécie da categoria das coisas imóveis - art.º 204.º, n.º 1, al. a), do CCivil. A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico, conforme expressamente dispõe o n.º 1 do art.º 1.344.º do CCiv.. Daqui se infere que as águas nascentes ou existentes à superfície ou no subsolo do baldio são parte integrante do prédio rústico, Ora, sobre a propriedade das águas rege o art.ºs 1.385.º do CCiv., que as classifica como águas públicas ou particulares, ficando estas sujeitas às disposições dos artigos seguintes. E dispõe n.º 1, als. a) e b) o art.º a) que são particulares as águas que nascerem em prédio e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio e as águas subterrâneas existentes em prédios particulares. Como se escreveu no Ac. STJ de 25-02-2010, Proc. 782/2001.S1, “O Código Administrativo de 1940 definia no artº 388º os baldios como «os terrenos não individualmente apropriados dos quais só é permitido tirar proveito, guardados os regulamentos, aos indivíduos residentes em certa circunscrição ou parte dela». (…) Porém, o regime jurídico dos baldios sofreu consideráveis mudanças, sendo tais terrenos considerados como bens colectivos (propriedade comunal ou comunitária) desde a Idade Média, mas variando a sua consideração como sendo do domínio público ou privado, não obstante, sempre do domínio colectivo. Na vigência do Código Civil de 1867 (Código de Seabra), os baldios eram tidos pela doutrina civilista da época, como integrando a propriedade pública das autarquias locais, podendo entrar no domínio privado por desafectação, erguendo-se, no entanto, algumas vozes contrárias a este entendimento, como a de Marcello Caetano e Rogério E. Soares. Porém, o Código de Seabra havia criado, no seu artº 379º, a figura de coisas comuns (restaurando a trilogia romana de coisas comuns, coisas públicas e coisas privadas), pelo que, no seu domínio, o eminente civilista Luís da Cunha Gonçalves, acompanhado pela jurisprudência coetânea, considerava os baldios municipais (que se contrapunham dos baldios paroquiais) alienáveis e prescritíveis acentuando que essa era a tendência da legislação da época «para se favorecer o incremento da produção agrícola». Por isso, no domínio daquele Código, muitas vozes se inclinavam no sentido de considerar que também os baldios podiam ser adquiridos mediante a prescrição aquisitiva ou positiva que era regulada nos artºs 517º e segs. do citado compêndio legal. No domínio do actual Código Civil, foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender genericamente que tais bens eram susceptíveis de apropriação e de usucapião (antiga prescrição aquisitiva), não obstante a existência de algumas vozes discordantes. Isto até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro que, no seu artº 2º, estatuiu: «Os terrenos baldios, encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião». A partir do advento deste diploma legal, aliás em consonância com o texto da Lei Fundamental na altura (artº 89º da CRP/76) e até hoje, os baldios são insusceptíveis de apropriação privada. Por isso, como resumidamente se sumariou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 20-6-2000, «o baldio é uma figura específica, em que é a própria comunidade, enquanto colectividade de pessoas que é titular da propriedade dos bens, e da unidade produtiva, bem como da respectiva gestão, no quadro do artº 82º, nº 4, alínea b) da CRP» acrescentando que «os actos ou negócios jurídicos de apossamento ou apropriação, tendo por objecto terrenos baldios, são nulos nos termos gerais, excepto nos casos expressamente previstos na própria lei, nas fronteiras do artigo 4º, nº 1, da Lei 68/93» (Relator, o Exmº Conselheiro Pinto Monteiro, Pº 00A342, in www.dgsi.pt)”. De acordo com a doutrina perfilhada em tal aresto, a que ora se adere, só entre o início de vigência do actual Código Civil, em 1 de Junho de 1967, e a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 39/76, de 19.1, os baldios eram bens susceptíveis de apropriação e de usucapião. Por ser assim, a posse exercida pelos recorrentes que perdurou por tal período é, em qualquer caso, insuficiente para lhes facultar a aquisição por usucapião da propriedade das águas da poça, nos termos do art.º 1296.º do C.Civil. Presentemente, embora o n.º 1 do art.º 4.º da Lei n.° 68/93, exclua que os terrenos baldios possam, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião, sobre eles só podem constituir-se servidões, como expressamente dispõe o artigo 30.° da mesma Lei.
Não demonstram, pois, os recorrentes, a aquisição, por qualquer título da propriedade das águas que reivindicam, improcedendo, em conformidade, in totum, as conclusões do recurso.
Impõe-se, pelo exposto, a confirmação da sentença recorrida.

Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em função do que confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

Porto, 2011/03/29
João Carlos Proença de Oliveira Costa
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Francisco Martins