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APREENSÃO DE VEÍCULO
RESERVA DE PROPRIEDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Sumário
I- Apreendido um veículo automóvel em processo-crime, por fazer o transporte de produto estupefaciente para entrega aos consumidores, deve ser logo requisitada e junta certidão do registo automóvel, a fim de que, após notificação dos titulares que se encontrem inscritos no registo, estes possam defender os seus direitos como terceiros de boa fé, nos termos do artº 36º-A do DL nº 15/93, de 22/1, aditado pelo artº 2º da Lei nº 45/96, de 3/9. II- Estando um veículo automóvel registado em nome da firma compradora, mas com o ónus da reserva da propriedade inscrito a favor da firma vendedora, é esta a verdadeira proprietária até integral pagamento do preço, condição suspensiva da transferência da propriedade. III- Se esse veículo foi apreendido em processo-crime por transportar droga para ser entregue aos consumidores, e depois foi declarado perdido a favor do Estado Português sem conhecimento da firma vendedora, que não foi notificada da apreensão por não ter sido junta certidão do registo automóvel, pode esta firma demandar o Estado Português com base em responsabilidade aquiliana ou extracontratual, por se verificarem todos os pressupostos dessa responsabilidade, inclusive a culpa uma vez que houve uma negligente instrução do processo por não ter sido junta atempadamente a certidão do registo automóvel que possibilitaria a notificação da daquela firma para que pudesse defender os seus direitos, enquanto terceira de boa fé, antes da declaração de perda do veículo a favor do Estado.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A" em Portugal e B instauraram acção ordinária contra o Estado Português pedindo a sua condenação a restituir o veículo que discriminaram, ou o seu valor à data da apreensão, Esc. 2.620.000$00, acrescido dos respectivos juros vencidos, Esc. 488.756$00, e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Alegaram que o veículo em causa foi apreendido e declarado perdido a favor do Estado, no âmbito de um processo crime, mas que havia sido vendido pela 2ª A. com reserva de propriedade a favor da vendedora, constante do registo automóvel, e mediante financiamento da 1ª A.
Após regular processamento dos autos foi a acção julgada improcedente na 1ª instância, decisão que a Relação de Lisboa confirmou no recurso de apelação que para ela interpuseram as demandantes, condenando ainda cada uma destas, como litigantes de má fé, na multa de 10 Ucs, na sequência de requerimento do Ministério Público feito nas contra-alegações da apelação, a que elas responderam em peça autónoma tentando desmontar a alegação de litigância maliciosa.
Novamente inconformadas, recorrem as AA agora de revista, tirando as seguintes
Conclusões:
1ª- A 2ª e 1ª Recorrentes, respectivamente, venderam com reserva de propriedade e financiaram a aquisição pela C, do automóvel Ford Transit 120, matrícula IO;
2ª- Posteriormente, no processo crime referido nos autos, aquele veículo foi apreendido e declarado perdido a favor do Estado;
3ª- Porém nunca foram notificadas para se pronunciarem no referido processo crime, omissão que lhes gerou um prejuízo na proporção em que gerou um enriquecimento do Estado;
4ª- Pretendem obter a restituição do veículo ou, em alternativa, o pagamento de uma indemnização no valor que ele tinha à data da sua apreensão - 28 de Abril de 1998 - acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, até integral pagamento;
5ª- A acção foi julgada improcedente, tendo as instâncias considerado que, embora se devesse aplicar o regime da responsabilidade civil extra-contratual do Estado por factos ilícitos, regulamentado no Decreto-Lei nº 48.051, de 21.11.67, não se encontram preenchidos os seus pressupostos, a saber: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante - vulgo culpa -, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano;
6º- Mas ainda que se entenda, apesar de se não aceitar, que este seria um caso de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ilícitos, encontram-se preenchidos todos os pressupostos:
7ª- Assim, o facto, que se consubstanciou numa omissão, consistiu na apreensão pelo R. Estado Português do veículo automóvel e subsequente declaração de perda a favor do Estado sem se ter dado conhecimento de tais actos ao legítimo proprietário do veiculo;
8ª- Sendo inadmissível que a omissão de um acto, que cabia única e exclusivamente ao poder judicial, continue a servir de "escudo" e de justificação para que não se responsabilize o Estado por actos negligentes ou culposos de uma das suas funções - a função judicial;
9ª- Relativamente à ilicitude, tendo em conta que se pode consubstanciar na violação do direito subjectivo de outrem, ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ambas as situações de verificam;
10ª- A omissão do Estado impediu que a 2ª Recorrente, à data titular da reserva de propriedade, exercesse um direito que lhe é legalmente reconhecido no artº 36º-A do Decreto Lei nº 15/93 de 22/1, ou seja, a defesa dos seus direitos enquanto terceira de boa fé;
11ª- Relativamente à culpa, não foram cumpridos no processo crime todos os trâmites legais, tendo ocorrido uma nítida e grosseira negligência da função judicial, sendo que, como ensina A. Varela na Rev. de Leg. e de Jur., ano 102º, págs. 58 e segs. "age com culpa (...) o lesante que pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação podia e devia ter agido de outro modo";
12ª- O dano mede-se pela diferença entre a situação real e actual do lesado e a situação hipotética em que se encontraria, se não tivesse ocorrido a lesão;
13ª- As recorrentes consideraram, em virtude do incumprimento da C, o contrato de financiamento para aquisição do veículo a crédito antecipadamente vencido, nos termos da alínea D) do referido contrato;
14ª- Todavia, apenas optaram pelo vencimento antecipado do contrato pelo facto do veículo financiado ter sido apreendido em 28.04.98 e declarado perdido a favor do Estado;
15ª- Caso tal não tivesse ocorrido, poderiam ter optado pela resolução do contrato, retomado o veículo e, através da sua venda, minorar os prejuízos sofridos;
16ª- No que diz respeito ao nexo de causalidade existente entre a perda da viatura a favor do Estado e o prejuízo das Recorrentes, embora tenha sido afirmado pelo Mmº Juiz que "na data do trânsito em julgado do Acórdão que declarou o veículo perdido a favor do Estado - 18.11.99 - não existia qualquer reserva de propriedade a favor da segunda A., a onerar o referido veículo", em 20.09.2001 as Recorrentes juntaram aos autos certidão da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa da qual consta todo o historial do veículo e a identificação do actual proprietário (fls. 174 e segs.) com identificação das datas em que foram alterados os registos de propriedade e levantado o registo de reserva de propriedade;
17ª- Sendo que, à data da propositura da acção e até 24.10.2000, esteve sempre registada a reserva de propriedade do veículo a favor da 2ª Recorrente, aliás como se retirava já da certidão junta aos autos a fls. 150 e dos requerimentos de extinção de fls. 151 a 154;
18ª- Pelo exposto, também neste aspecto não assiste razão ao Mmº. Juiz ao afirmar que não existe qualquer nexo de causalidade entre o prejuízo que resultou para as Recorrentes e a declaração de perda a favor do Estado, uma vez que na data em que transitou o Acórdão proferido pelo STJ no processo crime - 18.11.99 - a reserva de propriedade que impendia sobre o veículo ainda se encontrava registada a favor da 2ª Recorrente, facto que se manteve até 24.10.00;
19ª- Assim, ao contrário do defendido nas instâncias, encontram-se preenchidos todos os pressupostos de que depende a aplicação do Decreto-Lei nº 48.051, de 21.11.1967, não se compreendendo como é possível reconhecer a existência de uma omissão do Estado no âmbito da função judicial, e concluir pela falta de responsabilização do mesmo na esfera indemnizatória pelos prejuízos causados;
20ª- As instâncias também não admitiram que as Recorrentes tivessem direito a uma indemnização alicerçada no instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que este é direito subsidiário que só pode ser exercido quando a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, e que a defesa de terceiros de boa fé em situações de perda de veículo de terceiro em processo crime respeitante ao tráfico de droga, se encontra prevista e acautelado no art. 36º-A da Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, pelo que, neste caso concreto, não poderia ser aplicada a lei geral;
21ª- Todavia, o Estado enriqueceu à custa das Recorrentes, e estas empobreceram à custa daquele e, mais importante porque fundamenta a aplicação no caso concreto do regime do enriquecimento sem causa, as Recorrentes não possuem outra forma de demandar o Estado;
22ª- As Recorrentes foram condenadas como litigantes de má fé pela Relação, pelo facto de antes de intentarem a presente acção - onde em alternativa à entrega do veículo apreendido, peticionam o seu valor à data da apreensão - terem instaurado outra contra a sociedade compradora do veículo em questão e respectivo fiador para pagamento da quantia de Esc. 1.305.808$00 e, por terem, alegadamente, ocultado esse facto no presente processo;
23ª- Ora, essa condenação como litigantes de má-fé ultrapassa o plano da anti-juridicidade para arribar no patamar da amoralidade, uma vez que a presente acção e o seu pedido são distintos e independentes da acção e do pedido deduzidos contra a C (compradora do veículo) e respectivo fiador;
24ª- De facto, nos presentes autos o que se discute é se o Estado tinha direito a fazer seu um bem sobre o qual recaía um direito legítimo e registado de um terceiro, ou seja a reserva de propriedade a favor da 2ª Recorrente - facto que o Estado não podia desconhecer, atentas as certidões da Conservatória do Registo Automóvel juntas aos autos - que servia de garantia ao pagamento das prestações devidas à 1ª Recorrente e cuja recuperação repararia, ou pelo menos minoraria, os prejuízos que esta suportou e suporta com o incumprimento do contrato de financiamento;
25ª- Ao passo que na acção intentada contra a C e D as Recorrentes, uma vez que não sabem se alguma vez irão reaver a viatura ou o seu valor à data da apreensão, visam garantir o ressarcimento do seu crédito, caso o Estado Português não venha a ser condenado conforme peticionado;
26ª- Todavia, se o Estado for condenado no pagamento da indemnização requerida na presente acção, o montante recebido será descontado na íntegra ao valor da dívida, assim como, se a C e D forem condenados e procederem ao pagamento integral do débito na acção que as Recorrentes movem contra aqueles, esse montante será deduzido ao pedido formulado na presente acção; 27ª- Pelo que não pretendem as Recorrentes, com a propositura das acções, a obtenção de uma dupla indemnização, mas o justo pagamento do montante que despenderam com o financiamento para aquisição a crédito e a que têm direito em resultado da apreensão e perda do veículo a favor do Estado Português sem que, ao arrepio da lei, fosse facultado ao verdadeiro proprietário a possibilidade de fazer valer os seus direitos;
28ª- O Acórdão recorrido violou, por ter interpretado erradamente os pressupostos e a eventual aplicabilidade, o Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, e ainda os artºs 473º e segs. do Código Civil, que regulam o regime de aplicação do enriquecimento sem causa, bem como o artº 456º do Código de Processo Civil,
Devendo ser revogado, condenado-se o Recorrido a restituir às Recorrentes o veículo declarado perdido a favor do Estado ou, em alternativa, a pagar-lhes, a título de indemnização, o valor da referida viatura à data da apreensão, com juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Contra-alegou o Ministério Público, pedindo a confirmação do Acórdão recorrido.
Com os vistos legais, cumpre decidir.
Foram dados como provados os seguintes factos:
O veículo Ford Transit 120, com a matrícula IO foi apreendido em 28.4.98 e declarado perdido a favor do Estado na sequência de um processo crime em que era arguido D;
As AA. tomaram conhecimento de que o veículo tinha sido declarado perdido a favor do Estado, apresentaram um requerimento no referido processo invocando a titularidade da reserva de propriedade a favor da segunda A. e requerendo a entrega do veículo;
As AA. apresentaram, então, um requerimento no STJ que, entretanto, já tinha proferido acórdão, solicitando a reforma do mesmo quanto à questão da perda do veículo a favor do Estado;
Sobre esse requerimento foi proferida decisão pelo STJ nos termos que constam da certidão junta aos autos (fls. 20 a 29);
As AA nunca foram notificadas para se pronunciarem no âmbito do processo crime contra D e que correu termos pela 1ª Secção do Tribunal de Círculo de Santo Tirso, sob o nº 93/98.9;
A primeira A. dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de automóveis;
A segunda A. dedica-se à venda de automóveis da marca "Ford";
O veículo em causa teve, sucessivamente, os registos que constam, respectivamente, até 4.12.98, os que constam de fls. 10 e até 14.9.2000, os certificados a fls. 58, bem como até 6.11.00 a certificação de fls. 150, e os requerimentos para extinção de fls. 151 a 154;
A 2ª A. vendeu à confeitaria "C" o veículo automóvel Ford Transit 120, com matrícula IO;
A primeira A. financiou a "C" na aquisição do referido veículo;
O preço total da viatura foi de Esc. 3.240.000$00, tendo a "C, efectuado um desembolso inicial de Esc. 1.100.000$00;
A primeira A. prestou à "C" um financiamento de Esc. 2.140.000$00;
O contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado entre a 1ª A. e a C estipulou na cláusula 8ª das condições particulares que o valor total do reembolso pelo financiamento era de Esc. 2.799.984$00;
Para garantia do pagamento do valor financiado, a reserva de propriedade sobre o identificado veículo ficou registada a favor da 2ª A., conforme Certidão da Conservatória do Registo Automóvel;
A partir da 28ª prestação, com vencimento em 01.11.99, a "C" deixou de pagar as prestações a que se obrigara;
Devido à falta de pagamento das prestações contratuais, a primeira A. considerou antecipadamente vencido o contrato de financiamento, disso tendo dado conhecimento à "C".
O veículo foi declarado perdido a favor do Estado, que o mantém na sua posse;
O veículo tinha à data da apreensão o valor de Esc. 2.620.000$00;
Conforme consta da certidão de fls 10, o veículo IO, com propriedade registada em nome da C, tinha desde 21.7.97 e até 4.12.98, registo de reserva de propriedade a favor da Autora B;
Na certidão de fls 58, emitida em 20.11.00, a propriedade desse mesmo veículo continua registada em nome da C, desde 21.7.97, mas até 14.9.00 não incide qualquer ónus ou encargo sobre o mesmo veículo;
Igual certificação decorre do doc. de fls. 150, quer dizer: registo da propriedade de veículo IO, desde 21.7.97, em nome da C (Confeitaria), sem quaisquer ónus ou encargos incidentes sobre o mesmo veículo até 6.11.00;
A acção "sub judice" deu entrada em Juízo em 11.8.00 (fls. 1);
Em 28.4.00 a 1ª A. instaurou contra a C e D, acção em que pede a condenação solidária dos RR a pagarem-lhe 1.305.808$00, com juros sobre este montante por incumprimento do contrato de fls. 13 (fls. 272 e segs.).
Postos os factos, vejamos de que lado está a razão.
Como se vê do pedido formulado na petição inicial, e mormente dos seus itens 25º e 26º (onde se invocam os artºs 476º e 479º do CC), a pretensão deduzida pelas AA foi a de restituição do articulado veículo, pelo Réu, com base no enriquecimento sem causa, ou o valor do veículo à data da apreensão, acrescido de juros, caso a restituição já não seja possível.
A 1ª instância considerou que, estribando-se embora a pretensão das AA no instituto do enriquecimento sem causa, a causa petendi, atentos os termos em que a acção foi estruturada, tem antes a ver com a responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto pretensamente ilícito, devendo por isso ser aplicadas as normas da responsabilidade aquiliana, visto o julgador se não encontrar subordinado à qualificação jurídica dada pelas partes.
Escalpelizou seguidamente o Mmº Juiz os pressupostos de que depende aquela responsabilidade, julgando-os não preenchidos no caso vertente.
Finalmente, debruçando-se sobre o instituto do enriquecimento sem causa, não viu igualmente, com base nele, qualquer virtualidade na pretensão deduzida nos autos.
A Relação de Lisboa confirmou a sentença em todos os seus fundamentos, para eles remetendo a coberto do nº 5 do artº 713º do CPC.
Pois bem.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública rege-se, em tudo o que não esteja previsto em leis especiais, pelo Decreto-Lei nº 48.051, de 21.11.1967, como deflui do seu artº 1º.
Nos termos do artº 2º, nº 1, ibidem, o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício (o sublinhado é intencionalmente da nossa lavra).
Nos termos do artº 4º, nº 1, ainda do mesmo diploma, a culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artº 487º do Código Civil, dispositivo segundo o qual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (nº 1), sendo a culpa apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (nº 2).
O Ford Transit foi declarado perdido a favor do Estado no processo crime referido nos autos, por decisão de 2.10.98, transitada em julgado em 18.11.99 (fls. 155 e segs.).
Na altura da decisão o Ford Transit estava registado em nome da C, com o ónus da reserva de propriedade a favor da 2ª A.
Só que, tendo sido dado como provado no acórdão que o citado veículo fazia o transporte do produto estupefaciente para entrega aos consumidores pelo arguido D (gerente da C e fiador na aquisição, financiada pela 1ª A., daquele veículo) não foi dada a conhecer ao Tribunal a sobredita reserva de propriedade.
A Autora B não foi ao processo crime defender os seus direitos, como terceira de boa fé, nos termos do artº 36º-A do DL nº 15/93, de 22/1 (aditado pelo artº 2º da Lei nº 45/96, de 3/9), antes da decisão que declarou o veículo em referência perdido para o Estado.
Apenas deu a conhecer a cláusula da reserva da propriedade e seu registo quando o poder jurisdicional da 1ª instância estava já esgotado, no entendimento do Mmº Juiz (fls. 14 a 16), e do STJ, para onde o processo subiu em recurso, e onde ambas as AA pediram a reforma da decisão de perda do veículo para o Estado, pretensão que foi indeferida por acórdão do STJ transitado em julgado, no qual se decidiu que as AA não tinham legitimidade para pedir a reforma do acórdão/crime, que a certidão da Conservatória do Registo Automóvel não tinha o valor probatório com o alcance pretendido pelas AA, e que o meio próprio para estas recuperarem o veículo teria sido o incidente contemplado no artº 36º-A do Dec. Lei nº 15/93, de 22/1, porém a instaurar necessariamente antes da prolação da decisão da 1ª instância nesse processo crime (fls. 17 a 30).
A apreensão e declaração da perda do veículo a favor do Estado ocorreu sem ter sido dado conhecimento à 2ª A., verdadeira proprietária até integral pagamento do preço, condição suspensiva da transferência da propriedade, constando o ónus da reserva da propriedade, do registo automóvel.
Todavia, como verdadeira proprietária que era ainda daquele veículo, a 2ª A. devia ter tido conhecimento da apreensão e da eventual futura declaração de perda a favor do Estado, para assim poder exercer os seus direitos de terceira de boa fé, no processo crime.
Sem culpa por não ter tido conhecimento da apreensão do veículo anteriormente à declaração da perda a favor do Estado, logo se apressou a Autora B quando disso se apercebeu extra-processo, a tentar inverter a decisão lesiva dos seus direitos de proprietária.
Ingloriamente o fez, como se viu...
O artº 36º-A do Dec. Lei nº 15/93, de 22/1 (aditado pelo artº 2º da Lei nº 45/96, de 3/9), textua no seu nº 1 que o terceiro que invoque titularidade de coisas, direitos ou objectos sujeitos a apreensão ou outras medidas legalmente previstas aplicadas a arguidos por infracções previstas no diploma (tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas) pode deduzir no processo a defesa dos seus direitos, através de requerimento em que alegue a sua boa fé, indicando logo todos os elementos de prova.
Esta possibilidade de defesa pressupõe, relativamente aos bens que obrigatoriamente se encontrem inscritos no registo, que seja dada conhecimento da apreensão aos seus titulares e aos titulares de direitos que sobre eles incidam, os quais podem inocentemente ignorar a apreensão.
Sem indicar expressamente a necessidade dessa notificação, o referido artigo pressupõe-na, atenta a possibilidade de defesa que prevê e a obrigatoriedade e publicidade do registo automóvel.
A falta de declaração expressa da obrigatoriedade de notificação ter-se-á ficado a dever a manifesto lapso.
Com efeito, na situação análoga do artº 17º, nº 1 do Dec. Lei nº 325/95, de 2/12 - anterior ao preceito legal em referência - determinou-se que se os bens apreendidos a arguidos em processo crime por infracção relativa ao branqueamento de capitais se encontrarem inscritos em registo público em nome de terceiros, os titulares de tais registos são notificados para deduzirem a defesa dos seus direitos e fazerem prova sumária da sua boa-fé, podendo-lhes ser de imediato restituído o bem.
Portanto, no processo crime onde se deu a apreensão e declaração de perda do Ford Transit a favor do Estado devia ter havido o cuidado de fazer juntar uma certidão do registo automóvel, após a apreensão do Ford Transit, e, uma vez junta, deviam ter sido notificadas quer a Autora B, quer a C, para, se fosse caso disso, virem defender os seus direitos na qualidade de terceiros de boa fé.
Houve portanto uma deficiente instrução do processo crime, uma culpa por omissão na instrução do processo e na função jurisdicional.
Como a Autora B tem a reserva de propriedade registada a seu favor, a declaração de perda do veículo a favor do Estado foi lesiva do seu direito de propriedade, e culposa por deficiente instrução do processo crime e falta de notificação para defesa daquele seu direito.
Mostram-se destarte preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado para com a 2º autora.
Por outro lado, a Relação condenou cada uma das AA, por litigância maliciosa - a requerimento do Ministério Público na contra-minuta recursória, a que as AA responderam em peça autónoma - na multa de 10 Uc.
Ponderou, para tanto, que: a 1ª A. instaurou contra a C e o gerente e fiador D, uma acção em que pediu a condenação solidária destes a pagar-lhe 1.305.808$00, acrescidos de juros de mora, por incumprimento do contrato de financiamento em referência; essa acção foi instaurada antes da presente demanda; as AA não deram conhecimento na presente acção da pendência daqueloutra e das razões da propositura da presente demanda, como lhes era imposto perlo artº 266º-A do CPC; esse escamoteamento integra uma conduta dolosa de litigante de má fé, prevista nas alíneas a) e c) do nº 2 do artº 456º do CPC; tanto mais que as AA pedem na presente acção, em alternativa da restituição do veículo declarado perdido para o Estado, o seu valor, quantificado em 2.620.000$00, quando a quantia em dívida pela C, pelo aludido financiamento, era a de 1.305.808$00, conforme o impetrado na referida 1ª demanda.
Vejamos.
As AA reagiram à mencionada condenação por má fé, pela forma constante das 22ª e seguintes conclusões recursórias.
Ora elas pediram nos presentes autos a devolução do Ford Transit, ou, na impossibilidade, o valor dele à data da apreensão, que alegaram ser de 2.620.000$00, valor que se veio a provar.
O artº 266º-A da lei adjectiva determina que as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artº 266º.
Todavia, não se afigura, ao menos claramente e de forma inequívoca, que a alegada ocultação da acção proposta contra a C e o D constitua litigância dolosa ou gravemente negligente.
Atentas as razões expostas nas conclusões 22ª e seguintes da minuta de recurso, as AA podiam estar plenamente convencidas da lisura do seu procedimento, do bem fundado das suas razões, pretendendo tão-só garantir os seus direitos, por um ou outro meio, precavendo-se contra o possível insucesso numa das demandas, e não obter uma dupla indemnização, sendo na perspectiva delas distintos e independentes os pedidos formulados nos dois processos.
Considerando que não deve manter-se a condenação das AA por litigância maliciosa, e que há condições legais para condenar o Estado a repor o status quo ante à apreensão do Ford Transit (podendo mais tarde haver um encontro de contas entre as demandantes e a compradora desse veículo e, porventura, o seu fiador), acordam em revogar o acórdão recorrido, condenando o Estado Português a devolver à autora B o aludido Ford Transit, de que esta é proprietária, ou, na impossibilidade de o fazer, a entregar-lhe a quantia de 13.068,50 euros (equivalente aos 2.620.000$00 que aquela viatura valia à data da apreensão), com juros legais a contar desde a citação - e não também os peticionados juros caídos de 488.756$00, atendo o disposto no artº 805º, nº 3 do CC - e até integral pagamento, concedendo deste modo em parte a revista.
Custas pelas AA, na proporção do decaimento, delas estando isento o Estado Português (artº 2º, nº 1, a) do CCJ).
Lisboa, 2 de Dezembro de 2003
Faria Antunes
Moreira Alves
Alves Velho