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SOCIEDADE COMERCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
ASSEMBLEIA GERAL
SÓCIO
SÓCIO GERENTE
GERENTE
RENÚNCIA
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
Sumário
I- Assembleia geral de uma sociedade e sócios não se confundem. II- A sociedade tem vontade e interesse próprios, a ela que compete deliberar sobre a sua vida (societária), o que, naturalmente, compreende sobre a vida e exercício dos seus órgãos sociais. III- A comunicação de renúncia à gerência não dispensa interpretação da declaração nada impedindo que nela haja 2 declarações autónomas - uma (de renúncia) dirigida à sociedade e outra (de disponibilidade para um acordo sobre a data em que a renúncia operavas) dirigida aos sócios. IV- À sociedade competia deliberar sobre o momento a partir do qual e no respeito da lei operava a declaração unilateral receptícia de renúncia do autor à gerência.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
"A" propôs contra B, acção pedindo se declare nula a deliberação social tomada em assembleia geral de 97.12.15 que determinou a cessação pelo autor das funções de gerente da ré, antecipando a data em que a renúncia por si apresentada, em 97.10.13, produzia efeitos com o que, através do expediente da renúncia, protagonizou uma efectiva destituição do autor daquelas funções.
Contestando, impugnou a ré os factos concluindo pela improcedência da acção.
Prosseguindo até final, procedeu a acção por sentença que a Relação confirmou salvo quanto à declaração de nulidade por decretar a sua anulação.
De novo inconformada, a autora pediu revista concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -
- em assembleia geral, a ré, destinatária dessa declaração de renúncia, deliberou (voto favorável da sócia maioritária e contrário do autor, respectivamente, 99,5% e 0,5% do capital social) aceitar a data de 97.10.13, proposta pelo autor na carta, como data da eficácia da renúncia;
- entendendo que a deliberação estava dependente também da vontade do autor, a 1ª instância declarou-a nula (CSC- 56,1), e a Relação, entendendo que a eventual antecipação da renúncia dependia do acordo dos sócios da ré que não da deliberação da sociedade, decretou a sua anulação (CSC- 58,1 a);
- competia à assembleia geral decidir e não aos sócios individualmente considerados,
- pois a destinatária da declaração era a ré cujas capacidades de gozo e de exercício de direitos se manifesta através dos seus órgãos, que exprimem a vontade da pessoa colectiva;
- a renúncia dos gerentes, por analogia com o estatuído para a sua destituição, depende da deliberação dos sócios;
- a renúncia deve ser comunicada à sociedade e torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação;
- violado o disposto nos arts. 250-3 CSC e 394-1 CC.
Contraalegando, o autor defendeu a confirmação do acórdão não sem antes ter como prolixas e excessivas as conclusões do recurso da ré caindo na alçada de previsão do art. 690-1 e 4 CPC.
Colhidos os vistos.
Matéria de facto que as instâncias consideraram provada -
a)- a ré B, é uma sociedade comercial por quotas com sede na Av. da República, nº ...., 1°, freguesia de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, com o capital social de 300.000.000$00, dividido em 2 quotas, uma pertencente ao ora autor no valor nominal de 1.488.750$00, e outra no valor nominal de 298.511.250$00, titulada em nome da sociedade D, inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n° 22353;
b)- em 97.10.13 o autor dirigiu à ré a carta reproduzida a fls. 22/23 e traduzida a fls. 24 dos autos de providência cautelar apensos, na qual o autor declara a sua demissão como gerente da sociedade ré com efeitos a partir de 30 de Junho de 1998 ou em qualquer altura antes, desde que os sócios da B., o desejassem;
c)- na sobredita carta de renúncia, o autor fixou que a mesma só pode-ria produzir efeitos em data anterior, desde que os sócios da ré assim o desejassem e acordassem;
d)- em 97.11.11, foi remetida ao autor, e por este recebida, uma convocatória para uma assembleia geral da sociedade ré, dela constando o seguinte:
«Convocatória
Nos termos do Código das Sociedades Comerciais e demais legislação aplicável, convocam-se todos os sócios da sociedade comercial por quotas denominada B, com sede na Avenida da República, nº ...., 1° andar, em Lisboa, com o capital social de 300.000.000$00, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, sob o nº 22,353, para reunirem em Assembleia. Geral Extraordinária, no próximo dia 15 de Dezembro de 1997, peIas 17H30 na sede da sociedade, com a seguinte ordem de trabalhos:
l- Analisar, deliberar e votar sobre a renúncia à gerência da sociedade apresentada pelo gerente único, Sr. A, e sobre a data da eficácia da renúncia;
2- Deliberar e votar sobre a nomeação do novo gerente da sociedade, Sr. C».
e)- realizada a assembleia geral na data e hora indicadas, foi lavrada acta reproduzida no documento junto a fls. 17/18 dos autos de providência cautelar em apenso;
f)- da sobredita acta consta designadamente, que, a propósito do ponto único da ordem de trabalhos, a sócia D apresentou uma proposta para, «aceitar o pedido de renúncia à gerência da sociedade apresentado pelo gerente Sr. A, o qual deverá produzir todos os seus efeitos a partir de 13 de Outubro de 1997, data da apresentação da sua renúncia, porquanto a assembleia entende que a sua permanência naquelas funções não convém à sociedade»;
g)- aquela proposta foi admitida, discutida aprovada pela assembleia, por maioria, com o voto favorável da sócia De o voto contra do sócio A, pelas razões constantes da declaração anexa à referida acta e que dela faz parte integrante.
Decidindo:
1.- Falece razão ao autor na questão prévia que suscita.
Com efeito, é acusar-se de excessivas as conclusões porquanto deveriam sintetizar mais e melhor - e nisso assiste-lhe razão, outra é tê-las como prolixas - e não o são.
Inteligíveis e sintetizando, sem prejuízo do que no nº seguinte se dirá, o conteúdo das alegações.
2.- Conquanto indique como uma das normas jurídicas violadas a do art. 394-1 CC, ao concluir a ré não formulou qualquer proposição sintetizando o que alegara nos pontos 28 a 33 (fls. 178/9).
Entre o alegado e as conclusões tem de haver correspondência (aliás, recíproca) sob pena de o tribunal de recurso cujos poderes de cognição são limitados, em princípio, pelas conclusões da recorrente.
Nada se tendo concluído sobre a (in)admissibilidade da prova testemunhal, não pode o STJ conhecer da suposta violação.
In casu, e como resultará do que no nº seguinte será discutido e desenvolvido, também isso seria irrelevante.
3.- O escrito em que o autor renuncia ao exercício das funções de gerência continha 2 declarações distintas - uma, a de renúncia, dirigida à sociedade ré; a outra, dirigida ao outro sócio.
A primeira, declaração de renúncia, tinha correctamente como destinatária a sociedade ré.
Na segunda, o autor dirige-se não à sociedade mas aos sócios, neste caso, ao sócio D oferecendo a sua disponibilidade para um acordo sobre a data em que a renúncia operava.
A segunda não foi enviada ao destinatário, tornou-se dele conhecida, pelo menos, no momento em que a assembleia geral teve lugar.
Isto e esta autonomia das duas declarações é evidenciada, confirmando-a, ainda pelo teor do último segmento do ponto 1 da convocatória, convocatória essa de autoria do único gerente da ré, o autor.
Na convocatória, a sociedade ré expressa a sua compreensão da declaração do autor - renúncia (embora fale em demissão) à gerência deixando à sociedade estabelecer o momento a partir do qual ela operará (se demissão, operaria desde logo), por um lado (daí o teor do último segmento do ponto 1 da convocatória), e disponibilidade para negociar com o outro sócio (acordo - ‘desde que os sócios da ré o desejassem’) a possibilidade de permanecer (ou não) no exercício das funções de gerência tendo por limite temporal máximo 98.06.30, por outro (daí a convocatória omitir qualquer referência a negociação que a não envolvia mas apenas a um e outro sócio, a negociação a que, portanto, seria uma extranea).
Esta a compreensão, o sentido que se apresentava a um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, tanto mais que a convocatória emanava do próprio declarante, o autor, enquanto titular - e único titular - de um órgão social da ré (a gerência); isto é, através da convocatória evidenciava que o escrito continha duas declarações distintas cada qual com o seu destinatário próprio.
Não vincula a sociedade a ré nem perante ela condiciona a vontade de quem produziu a declaração (o autor).
Não sendo a vontade de uma sociedade um somatório de vontades dos sócios, ela só poderia, in casu, deliberar sobre a declaração que lhe fora dirigida (a renúncia é um acto receptício que só pela recepção da comunicação se torna eficaz para com o destinatário - cfr. Raúl Ventura in Comentário ao CSC - Sociedade por Quotas, III/122).
Daí que a acção poderia ter sido decidida, com segurança, no saneador. A matéria do quesito único (a al. c)) respeitava à segunda declaração, à que não tinha a ré como destinatária.
Acresce que o interesse que preside ao estabelecimento da data a partir da qual opera a renúncia à gerência é o da sociedade, aqui tanto mais notório quanto esse órgão social apenas dispunha de um titular. Este pode ter o seu interesse particular, é natural que o tenha, mas o interesse da sociedade não tem de se conformar com aquele nem mesmo de a ele se subordinar.
Tal como foi apresentada, a acção tinha de improceder.
4.- Na sua petição inicial, o autor articulou que a ré procurou, através do expediente da renúncia, protagonizar uma efectiva destituição daquele das suas funções de gerente (art. 16).
A par da presente acção corria outra em que o ora autor demandava da ré o pagamento de uma certa quantia por os autos revelarem que a declaração de 97.10.13 (precisamente a mesma que ora invoca para estruturar a presente acção) foi abusivamente utilizada pela ora ré para o destituir da gerência e fazer, sem que aquela o autorizasse a tanto, retroagir os efeitos da sua deliberação (a que agora se quer ver declarada nula).
Essa acção improcedeu, tendo o STJ negado, por douto acórdão de 03.04.08, in rec. 77/03 (fls. 187 a 195), a revista do ora autor. Expressamente aí se considerou, como fundamento lógico e estruturante da decisão, que o autor «através da renúncia, por manifestação unilateral da sua vontade assumiu, voluntariamente, a perda de um direito» «podendo a vontade da sociedade impor uma data anterior» àquela que ele referia como limite temporal máximo, e que a ré o não destituiu da gerência.
O voto do autor tinha como pilar dois elementos - a sua (dele) interpretação do escrito e o estar a ser de facto destituído da gerência. Quanto ao primeiro, esqueceu-se da natureza receptícia da declaração de renúncia, de que no momento da recepção a ré não conhecia que o sentido pretendido não era o expressado no escrito mas o que no voto veio a declarar, do sentido que um declaratário normal podia compreender e de que o escrito continha as duas referidas declarações. O segundo pilar não existe como o acórdão demonstrou e afastou.
Este acórdão, lavrado na mesma data que o aqui recorrido, transitou em momento bem anterior (de meses) à apresentação das contraalegações (03.09.15) nesta revista, mas o autor preferiu aí ignorá-lo (era-lhe totalmente desfavorável mesmo para efeitos da presente acção; aliás, a litigância que ao longo do tempo vem desenvolvendo tomando como ponto de partida aquele seu escrito também o tem sido).
5.- A renúncia de gerente torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação (CSC- 258,1).
Não podendo o autor desconhecer o que a lei dispõe nem se confundindo ‘assembleia geral’ com ‘sócios’, mais razão assistia à ré para ver e compreender que no escrito daquele se continham duas declarações cada qual com o seu destinatário e cada qual com um sentido próprio.
E porque a sociedade tem vontade e interesse próprios a ela que compete deliberar sobre a sua vida (societária), o que, naturalmente, compreende sobre a vida e exercício dos seus órgãos sociais. Aplicando ao caso, à sociedade competia deliberar sobre o momento a partir do qual e no respeito da lei operava a declaração unilateral receptícia de renúncia do autor à gerência. E a convocatória, na realidade, é isso que expressa e a deliberação da assembleia geral conformou-se exactamente com ela.
Válida e eficaz a deliberação.
Termos em que, revogando-se o acórdão, se julga improcedente a acção.
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2003
Lopes Pinto
Pinto Monteiro
Reis Figueira