ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Sumário

I - A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume no tipo legal do artigo 473.º do Código Civil a natureza de elemento constitutivo do direito, devendo os respectivos factos integradores ser, pois, qualificados como constitutivos do direito à restituição, mesmo em caso de dúvida, e cabendo por consequência ao autor deste pedido o concernente ónus probatório, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor (artigo 342.º, n.os 1 e 3);
II - No plano da interpretação e aplicação do direito envolvido na repartição do ónus da prova não relevam as dificuldades probatórias dos factos negativos;
III - Competindo ao autor do pedido de restituição o ónus da prova da falta de causa do enriquecimento, à prova que neste sentido seja lograda pode o réu opor contraprova destinada a tornar essa falta duvidosa, de forma que, alcançando sucesso, a questão é decidida contra o autor (artigo 346.º);
IV - No quadro das proposições antecedentes, a alegação pelo réu de factos integradores de uma causa justificativa do enriquecimento compreende-se unicamente como exercício de contraprova, e a falta de prova dos factos neste sentido alegados apenas surte consequentemente efeitos jurídico-processuais desfavoráveis ao réu caso seja cumprido pelo autor o correspectivo ónus probatório.
V - Não é do ónus de alegação que se infere o ónus da prova, mas justamente o inverso.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal da Justiça:

I
"A", residente em Carslile, Reino Unido, intentou em 18 de Dezembro de 1997, no tribunal de Faro, contra B, e C, ambos residentes nessa cidade, acção ordinária fundada em negócio jurídico consubstanciando promessa unilateral de venda, pelo preço de 495 000 000$00, de terreno constituído por três prédios dos réus sitos na freguesia de Almancil, concelho de Loulé.
Alegando o incumprimento dos promitentes vendedores, pede a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 400 000 libras esterlinas, correspondente ao dobro do sinal, de 100 000 libras a cada um dos réus, que adrede lhes entregara por cheques de 25 de Novembro de 1988, ou o valor equivalente em escudos - 104 800 000$00, ao câmbio dessa data -, acrescendo os juros de mora à taxa legal desde a citação.
Contestada a acção e prosseguindo esta os legais trâmites, veio o autor na fase do saneador formular o pedido subsidiário de restituição, por enriquecimento sem causa, das 200 000 libras entregues aos réus, para a hipótese de improceder a pretensão de pagamento do sinal em dobro, reduzindo neste caso o pedido a 52 400 000$00, equivalente ao referido valor em libras.
Arguiram os demandados a prescrição relativamente a este pedido (artigo 482.º do Código Civil), mas a excepção improcedeu na sentença final, proferida em 15 de Outubro de 2001, a qual, no insucesso também do pedido principal por falta de prova da promessa, condenou aqueles no pedido subsidiário de 200 000 libras esterlinas.
A apelação dos réus obteve parcial provimento na Relação de Évora, que, pronunciando-se desfavoravelmente quanto a outras questões, revogou, todavia, a condenação devido a falta de prova pelo autor de requisitos do enriquecimento sem causa.
Do acórdão a propósito proferido, em 26 de Setembro de 2002, traz o autor a presente revista, cujo objecto, considerando a alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação do aresto recorrido, se cinge à questão da prova da falta de causa do enriquecimento.
II
A Relação considerou assente, sem impugnação nem alteração, a factualidade já dada como provada na 1.ª instância, para a qual, mantendo-se inalterada, no presente ensejo se remete ao abrigo do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das alusões pertinentes.
1. Observando essa matéria de facto, o tribunal de Faro constatou que o autor não lograra provar os factos integradores do negócio jurídico alegado como causa de pedir - a promessa de venda -, vertidos no quesito 2.º, considerando por consequência improcedente o pedido principal de restituição de sinal em dobro.
Atendendo, porém, ao facto de se demonstrar que o autor entregara a cada um dos réus 100 000 libras, por estes não devolvidas [alínea I) da especificação], julgou verificados os requisitos do enriquecimento sem causa tipificados no artigo 473.º do Código Civil, conducentes à procedência do pedido subsidiário e à condenação dos réus a restituírem ao autor as 200 000 libras com que, à custa dele, estavam enriquecidos sem causa justificativa.
No sentido desta decisão relevou primacialmente o entendimento da 1.ª instância, segundo o qual competia aos réus a prova, não alcançada, de relação ou facto que «legitimasse a deslocação patrimonial verificada (excepção peremptória inominada)» - cfr. a nota 1 da sentença.
2. Diferente foi, no entanto, a concepção e o juízo emitido pela Relação de Évora.
Ponderando os requisitos da obrigação de restituir delineados em abstracto no artigo 473.º do Código Civil, concluiu o acórdão sob recurso, nuclearmente, não se verificar o elemento típico da ausência de causa justificativa do enriquecimento, por falta de prova dos respectivos factos integradores, cujo ónus probatório impendia sobre o autor (artigo 342.º do Código Civil) (1), absolvendo consequentemente os réus da condenação no pedido subsidiário plasmada na sentença.
De facto, provando embora o autor que entregara aos réus 200 000 libras, não conseguiu, todavia, provar a existência da promessa de venda alegada como causa petendi e, por conseguinte, que a entrega se operara a título de sinal.
No entanto, provou-se ademais que os prédios alegadamente objecto da promessa vieram a figurar inscritos no registo a favor da sociedade "D, Lda." [alíneas B) e C), da especificação], de que os réus eram sócios [alínea F)], vindo ainda a revelar-se nos autos a celebração de um cessão onerosa das suas quotas às sociedades E, F, G [alíneas F), G) e H)], intervindo nos tratos negociais, nomeadamente, os réus, o autor e o Sr. H [alíneas L) a BB)].
Os réus alegaram inclusive que não existiu qualquer contrato entre eles e o autor, e que este compareceu acompanhado do Sr. H com vista à cessão das quotas a uma sociedade para a qual seria transmitida a propriedade dos prédios, e que o Sr. H passara os cheques que o autor assinou, tendo o seu valor sido levado em conta no pagamento final do preço da cessão.
Provou-se contudo apenas - escreve-se no acórdão sub iudicio - que «em Novembro de 1988, na sequência de contactos anteriores, deslocaram-se a Portugal o autor e o Sr. H, tendo--se encontrado com os réus para discussão da aquisição da urbanização, que estes tinham projectada e aprovada para ser levada a cabo em terrenos seus, e que o autor entregou a cada um dos réus a quantia de 100 000 libras esterlinas através de cheques sacados sobre a sua conta no Midland Bank Plc., quantias que até hoje não lhe foram devolvidas» [cfr. as alíneas I) e O) da especificação].
Nos termos expostos, considerou a Relação recorrida que, não se tendo provado a causa alegada pelo autor para a entrega das 200 000 libras, nem por isso se podia concluir nas condições descritas pela falta de qualquer outra causa.
E cabendo ao autor, ex vi do artigo 342.º, provar os factos reveladores da ausência de causa, mesmo que negativos, a falta de cumprimento desse ónus redundava no não reconhecimento da pretensão formulada a título subsidiário.
2. Da decisão dissente, porém, o recorrente mediante a presente revista, sintetizando a sua alegação nas conclusões seguintes:
2.1. «O Mt° Juiz do tribunal de 1ª instância, na douta sentença, tendo em consideração a factualidade alegada pelas partes e considerada provada, procedeu à correcta aplicação do direito, devendo por isso ser mantida a decisão da 1.ª instância revogando-se a decisão recorrida;
2.2. «Efectivamente, os réus receberam do autor a quantia de 200 000€ sem entrega de qualquer prestação correspectiva;
2.3. «Não se tratando de negócio gratuito e atendendo ao princípio geral de direito do não locupletamento à custa alheia, sempre ofenderia a nossa ordem jurídica o facto de os réus não restituírem ao autor a quantia de 200 000£, que dele receberam, e que, dados os factos por provados não lhes era nem é devida.»
Os réus recorridos contra-alegam sustentando a confirmação do acórdão sub iudicio.
III
Nos termos expostos, coligidos os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. Propendemos a pensar, tudo ponderado, que a boa doutrina flui do acórdão sob recurso.
A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume no tipo legal do artigo 473.º a natureza de elemento constitutivo do direito, devendo os respectivos factos integradores ser, pois, qualificados como constitutivos do direito à restituição, mesmo em caso de dúvida (artigo 342.º, n.º 3), e cabendo, por consequência, na presente lide ao autor o concernente ónus probatório (n.º 1 desse artigo), cujo incumprimento se resolve em seu desfavor.
Neste sentido se pronunciam, aliás, os autores e a jurisprudência (2), salientando-se inclusive não relevar senão no plano político-legislativo a dificuldade emergente da prova dos factos negativos, que leva o legislador em regra a dispensá-la, sem que faltem, aliás, exemplos em contrário, (3).
2. Não é, todavia, neste ponto se bem se interpreta que o recorrente centra a sua impugnação.
O cerne da alegação e suas conclusões desenvolve-se, em primeiro lugar, em torno da tese segundo a qual da matéria de facto dada como assente resultam já suficientemente «os factos integrativos do enriquecimento sem causa».
Este plano factual escapa em todo o caso aos poderes de cognição do Supremo Tribunal, que se restringem, segundo o artigo 729.º do Código de Processo Civil, à aplicação do regime jurídico adequado aos factos fixados pelo tribunal recorrido (n.º 1), sem que os possa alterar (n.º 2), ou sindicar erros de apreciação das provas e de fixação dos factos materiais da causa - tão-pouco ingerir-se na elaboração factual desenvolvida pelas instâncias sobre a matéria de facto -, salvo nas hipóteses previstas na segunda parte do n.º 2 do artigo 722.º, que aqui não se verificam.
Em segundo lugar, aduz o autor recorrente que os réus alegaram factos integradores de uma causa de justificação do enriquecimento, em suma, a imputação das 200 000 libras no preço do negócio com as sociedades E e F, de que o autor também teria beneficiado. E, no entanto, não lograram a prova desses factos, que só a eles competia.
Neste pendor trata-se, porém, de uma questão diferente, acerca da qual se oferecem duas observações.
Por um lado, cabendo ao autor o ónus da prova da falta de causa do enriquecimento, caso este fosse cumprido podiam os réus opor contraprova, destinada a tornar duvidosa a sua verificação, de forma que, alcançando sucesso, a questão seria decidida contra o autor (artigo 346.º do Código Civil).
Pois bem. Os factos alegados pelos réus não devem ser apreciados senão como decorrentes do exercício do ónus da contraprova, cujo relevo jurídico-processual apenas surgiria se o autor houvesse cumprido o ónus probatório concernente à aludida questão.
Por outro lado, não é o ónus da prova que se deduz do ónus de alegação, mas justamente o inverso (4).
3. Na improcedência por todo o exposto das conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo autor recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 22 de Janeiro de 2004
Lucas Coelho
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria
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(1) Nesse sentido evoca na sua nota 7 diversos arestos das Relações e deste Supremo Tribunal
(2) Assim, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª edição, revista e actualizada (Reimpressão), Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2003, págs. 482/483, nota 1, afirma, citando com aplauso um acórdão deste Supremo, «ser a quem exige a restituição da quantia voluntariamente entregue a outrem que cabe o ónus da prova da falta de causa justificativa da atribuição patrimonial; na mesma linha, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, Outubro de 2001, pág. 458, nota 2, recenseando igualmente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando escreve: «de harmonia com o princípio geral do art. 342.º, cabe à pessoa que pede a restituição do indevido não só alegar, mas também provar a falta de causa da atribuição patrimonial»; na doutrina alemã evoque-se, grosso modo em sintonia, Palandt/Thomas, Bürgerliches Gesetzbuch, C. H. Beck, 44. neubearb. Auf., München, 1985, pág. 842, 8), alínea c)
(3) Assim, Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil (4.º Volume), coligidas e publicadas por J. Simões Patrício/J. Formosinho Sanches/Jorge Ponce de Leão e revistas pelo Professor, Atlântida, Coimbra, s/d, pág. 122, referenciando precisamente a hipótese da «repetição do indevido» (artigo 476.º, n.º 1, do Código Civil), em que «o autor terá de provar a inexistência da dívida», não havendo assim «lugar à aplicação do aforismo negativa non sunt probanda».
(4) Anselmo de Castro, op. cit., pág.123/124.