USUCAPIÃO DE IMÓVEL
PRESUNÇÃO DA POSSE
PRESUNÇÃO DO REGISTO DE PROPRIEDADE
Sumário

I - Autores sucedem na posse da antepossuidora, independentemente da apreensão material da coisa, conforme dispõe o artº 1255º CC, com referência ao artº. 2050º, nº do CC, não se tratando, pois, de um posse nova, antes mantendo as características da posse anterior.
II - A antepossuidora, desde os anos setenta praticou actos materiais em relação imóvel, na convicção de ser sua dona, decorrendo, pois, mais de 20 anos, sendo facultada a possibilidade de, nos termos, do artigo 1287 CC, adquirir o correspondente direito de propriedade, conforme peticionado.
III - Por esta via, adquiriram os AA a propriedade do imóvel, sendo as pessoas a quem aproveita a invocação da usucapião, cujos efeitos, nos termos do artigo 1288 CC, retroagem ao inicio da posse.
IV - 4- A esta declaração não obsta o facto de o R ter registado o prédio em seu nome. A publicidade registal não é constitutiva de direitos, pois nos direitos reais está em causa uma publicidade espontânea que “resulta do mero funcionamento social do direito real”.

Texto Integral

Recurso 68
Processo nº 373/05tbcdr.p1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Relatório
B…, C… e D…, instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra E… e F….
Alegam, em síntese e no essencial, que a sua irmã G…, casada que foi com H…, irmão do réu, faleceu no dia 18 de Maio de 1999 e deixou em testamento todos os seus bens existentes à data da sua morte em favor dos herdeiros, aqui autores.
No processo de inventário que se lhe seguiu foi relacionado o artigo predial 2660, o qual em vida, alegam, foi durante 40 anos usufruído pelo casal G… e H…, á vista de todos, como seus proprietários, adjudicado que lhes foi por acordo extra-judicial efectuado entre os autores e H….
Em Outubro de 1999 o réu, que reside no Brasil, tomou posse do imóvel, mudando as fechaduras, efectuando obras e permanecendo nessa casa sempre que retorna ou se encontra em Portugal.
Concluem pedindo que se declare que:
- Os autores são donos e legítimos proprietários, com exclusão de outrem, do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 2.660 da Freguesia de Castro Daire.
- Em consequência condenar os réus a absterem-se de fazer uso do dito imóvel, não permanecendo no mesmo quando se encontrarem de férias em Portugal.
O R. contestou, invocando a ineptidão da petição inicial e a sua legitimidade, e ainda que existe uma duplicação de inscrições matriciais relativamente ao imóvel reivindicado, o qual, desde 1937 tem estado, ininterruptamente, na sua posse e dos seus ante-possuidores até aos dias de hoje, tendo G… e H… zelado pela conservação do imóvel em seu nome e por sua solicitação, razão pela qual excepciona a sua aquisição por usucapião e invoca a descrição no registo predial sem determinação de parte em seu favor e da sua filha.
As excepções foram julgadas improcedentes e o processo prosseguiu os seus trâmites, sendo proferida sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo os RR dos pedidos.

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Inconformados, os AA interpõem o presente recurso, alegando, em síntese e no essencial, que os factos provados permitem afirmar que os AA adquiriram o imóvel por usucapião, enfermando a sentença dos vícios enunciados no art. 668 b), c) e d) do CPC e concluindo:
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O recorrida não apresentou contra-alegações.
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Fundamentação
São os seguintes os factos provados:
1. Em 18 de Maio de 1999, faleceu G… no estado de divorciada de H….
2. Os autores são irmãos de G….
3. Em 13 de Maio de 1996, no Cartório Notarial de Castro Daire, G… outorgou testamento, mediante o qual instituiu herdeiros de todos os bens de que pudesse dispor livremente à data da morte os três irmãos, ora Autores.
4. Encontra-se inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Castro Daire, no …, desde 1973, sob o artigo 2660, em nome de H…, uma casa de habitação com rés-do-chão amplo e andar com duas divisões, com superfície coberta de 24m² e as seguintes confrontações: do norte com I…; do sul com J…; nascente com caminho e do poente com I….
5. Na Conservatória do Registo Predial de Castro Daire está descrito um prédio urbano sob o n.º 2703/061099; casa de habitação e lojas com superfície coberta de 18m², correspondente ao artigo matricial n.º 927 da freguesia de Castro Daire, …, com as seguintes confrontações: do norte com K…; do sul com K…; do nascente com J… e do poente: I….
6. O prédio referido em 5) está registado em nome de E… e F…, em comum e sem determinação de parte ou de direito, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão de L…, casada com o primeiro no regime de comunhão geral.
7. Correu no Tribunal Judicial de Castro Daire sob o n.º 25/2000, processo de inventário para partilha de bens da herança de G…, no âmbito do qual foram os interessados remetidos para os meios judiciais comuns, a fim de discutirem aí a titularidade do imóvel composto pelo artigo matricial 2660 referido em 4).
8. Em inícios dos anos setenta, G… e H… acrescentaram um andar com duas divisões à casa referida em 3).
9. Onde chegaram a dormir, cozinhar e a receber amigos.
10. Á vista de toda a gente.
11. Na convicção de que eram os seus legítimos donos.
12. Posteriormente, o casal foi trabalhar e morar para Lisboa.
13. Deram autorização a alguns noivos de … para passarem aí a noite de núpcias.
14. E… trabalha e reside no Brasil e vinha a Portugal “de vez em quando”
15. Começando a residir na casa descrita em 3) nas suas deslocações a Portugal, após o decesso de G…, contra a vontade dos autores, ficando na posse das suas chaves.
16. As inscrições matriciais referidas em 4) e 5) referem-se á mesma parcela de terreno e casa de habitação sita no n.º .. da rua …, em Castro Daire.
17. Desde o decesso de G… que o réu e o seu agregado familiar têm habitado aquela casa de habitação, sempre que se deslocam a Portugal.
18. Quando se ausenta para o Brasil, o réu encarregou uma terceira pessoa de lhe guardar a casa.
19. Totalmente mobilada, mas em mau estado de conservação.
20. Nela ficando estacionado um automóvel da marca Fiat, modelo …, de cor cinzenta.
21. Há mais de 20, 30 ou 40 anos que a casa de habitação integra o património dos pais do réu e de H…, e que após o seu decesso a correspondente herança ilíquida e indivisa.
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Cumpre decidir
1 - Circunscrito o âmbito do recurso, nos termos dos arts. 684 nº3, 685-A, com referência ao art. 660 nº 2, do CPC, importa decidir se os factos provados permitem concluir que os AA sucederam na posse da sua irmã G… e se o prédio reivindicado foi adquirido pela via da usucapião.
Previamente, porém, impõe-se apreciar a invocada nulidade da sentença, por violação do art. 668 nº 1 b), c) e d) do CPC.
Face à sequência lógica das doutas alegações e conclusões afigura-se-nos que a invocação desta nulidade é atinente ao mérito da questão, traduzida no entendimento aí expresso e nos fundamentos a que apela, e não propriamente aos vícios, stricto sensu, previstos na referida norma.
Com efeito, o apelo a estas omissões e incoerências surge no âmbito da diversa interpretação dos factos, expressa pelos recorrentes com referência à sentença, e não de omissões ou contradições da própria sentença e que sejam relevantes nos termos do citado artigo 668 do CPC.
De tal sorte que os recorrentes, sem embargo da discordância que expressam, não concretizam quais os factos que o tribunal não especifica, quais as contradições que constataram ou quais as questões que o tribunal não analisou, limitando-se a apelar a estes conceitos, sem os converter casuisticamente, antes se traduzindo em mais um argumento de discordância quanto ao mérito da questão.
Ora, os vícios elencados no art. 668 nº 1 b) a d) do CPC, respeitam à estrutura e aos limites da sentença[1], à sua lógica intrínseca, sendo percepcionáveis em face do texto da decisão, com referencia aos fundamentos de facto e à sua articulação com a subsequente subsunção normativa.
In casu, o tribunal julgou assentes factos que os recorrentes não questionam.
Impunha-se decidir se esses factos permitiam afirmar que os AA são proprietários do prédio reivindicado, traduzindo-se, afinal, na aplicação do direito.
É esta aplicação que os recorrentes repudiam, pois, em seu entender, aqueles factos permitiam conclusão diversa.
O tribunal, independentemente, agora, da bondade dos argumentos, analisou o regime jurídico aplicável ao caso ao caso concreto, circunscrevendo as normas legais, em seu entender, aplicáveis e apresentou a sua conclusão de forma lógica e coerente com os fundamentos invocados, assinalando quais os factos e os específicos fundamentos de direito em que se alicerçou.
Nos limites objectivos da acção, e balizado pelo inquisitório, não omitiu a apreciação de qualquer facto relevante, conhecendo toda a matéria considerada provada e aplicando a lei, na forma que a interpretou, de forma coerente.
Na verdade, o tribunal analisou os factos e as questões suscitadas como fundamento da acção – a aquisição pela via da usucapião – e da defesa e, conforme a sua interpretação das normas jurídicas aplicadas, não existe contradição entre os fundamentos e a decisão.
É, pois, manifesto que a questão se reconduz à discordância dos recorrentes no que à aplicação do Direito respeita, que não se confunde com qualquer das apontadas nulidades, só assim se compreendendo a omissão na sua concretização.
Não existe, pois, qualquer dos enunciados vícios, pelo que cumpre apreciar o mérito do recurso.
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2 -O Direito
Apurou-se que o prédio reivindicado se encontra inscrito na matriz predial em dois artigos distintos, um deles, com o nº 2660, onde figura como titular H…, que foi casado com a irmã dos AA, G…. O nº 927 está registado em nome dos Réus, E… e F…, por comunhão conjugal e sucessão de L…, que foi casada com o primeiro no regime da comunhão geral.
Trata-se do mesmo prédio.
O referido H… e o Réu E… são irmãos.
A G… e o H… divorciaram-se no ano de 1997.
A G… era irmã dos AA e instituiu-os seus herdeiros, pelo que, com o seu decesso, pretendem os AA haver o seu património, alegando que o acervo hereditário integra o referido imóvel.
Para tanto, invocam que a G… adquiriu esse imóvel pela via da usucapião.
Na falta de outro modo de aquisição, pois não dispõem de qualquer título donde possa emergir o direito de propriedade, submetido ao principio da tipicidade expresso no art. 1316 do CC, incumbia-lhes demonstrar os factos tendentes a integrar esta forma de aquisição.
Provou-se que a G… e o seu marido H…, nos anos setenta, acrescentaram um andar à casa, onde dormiam, cozinhavam e recebiam amigos, autorizando alguns noivos a aí passarem a noite de núpcias.
Praticaram estes actos à vista de toda a gente e na convicção de que eram os legítimos donos do imóvel.
Em 1973, o H… inscreveu o imóvel em seu nome.
Posteriormente, o casal foi trabalhar e morar para Lisboa.
Dos enunciados factos conclui-se que este casal actuou em relação ao imóvel, não só realizando obras relevantes – acrescentaram um andar – mas dispondo e fruindo das suas potencialidades económicas como se verdadeiros proprietários fossem, pois aí habitavam e conviviam.
Por isso, o tribunal a quo apelou ao “apossamento em nome próprio” que, na sua perspectiva, justificou ainda a demonstração que aqueles actos praticados pela G… e pelo H… o foram na convicção de que eram legítimos donos.
Reforçando a prática destes actos materiais, em 1973, o H… inscreveu na matriz predial a casa em seu nome, declarando à entidades fiscais que era o seu proprietário, assumindo, inequivocamente, não só a detenção material da coisa mas também a sua intenção e a sua convicção.
Nos termos do art. 1252 nº 2 do CC, este poder de facto exercido pelo casal G… e H… gera a presunção da posse.
Mas, independentemente desta presunção, a prática reiterada daqueles actos materiais enforma o verdadeiro corpus possessório, relevante para efeitos do art. 1263 nº 1 a) do CC, sendo de presumir o animus, conforme o disposto no art. 1252 nº 2 do CC e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996.
Não obstante, também se demonstrou, expressamente, que a G… e H… actuaram na convicção de que eram legítimos donos do imóvel.
Assim, contrariamente à fundamentação da sentença recorrida, estão reunidos os pressupostos objectivos e o elemento subjectivo susceptíveis de facultar a aquisição do direito correspondente.
Concretizemos.
Dispõe o art. 1287 CC que a aquisição por usucapião do direito de propriedade, para o que ao caso importa, pressupõe a existência da posse correspondente a esse direito, mantida por certo lapso de tempo.
E, nos termos do art. 1251 CC a posse corresponde ao poder de facto e este poder material sobre as coisas define o corpus.
A G… e o marido H… exerceram esse poder de facto, realizando obras na habitação, aí vivendo e recebendo amigos, convictos de serem seus donos, pelo que, no que a esta actuação respeita, e contrariamente ao que se refere na sentença, demonstrou-se também o elemento subjectivo, o animus que, conforme salientamos, se presume, nos termos do art. 1252 nº 2 do CC.
Esses actos de posse iniciaram-se nos anos setenta.
Dispõe o art. 1257 nº 1 do CC que “A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”, estabelecendo o nº 2 que “Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”.
Beneficiam, pois, os possuidores desta presunção de continuidade, que não foi elidida.
Assim, no que concerne à conservação da posse “É o exercício efectivo dos poderes correspondentes ao direito que marca a existência e a duração da posse. Porém, para que a posse se conserve não é necessária a continuidade do exercício; basta que, uma vez principiada a actuação correspondente ao exercício do direito haja a possibilidade de a continuar ”[2]
Ou seja, iniciada aquela posse da G… e do H…, a sua conservação era possível e nenhum facto se provou que perturbasse essa continuidade, daí a irrelevância de terem ido viver para Lisboa.
Até ao decesso da G… e ao regresso do R E… não ocorreram quaisquer factos impeditivos dessa continuação.
Esta posse faz presumir que o possuidor é o titular do direito, apenas cedendo quando um terceiro se afirme verdadeiro titular do direito, conforme o disposto no art. 1278 CC, pelo que não é qualquer acto isolado e descontextualizado que assume essa virtualidade.
Não se demonstrou que, neste período, desde os anos setenta até à morte da G…, em 1999, esta posse ofendesse quaisquer direitos ou que existisse qualquer outro justo título que obstaculizasse o seu exercício.
Os factos provados integram, pois, o corpus e o animus, susceptíveis de conduzir ao exercício do direito correspondente, sendo certo que foi exercida publicamente, à vista dos interessados e de forma pacífica, tal como a natureza dos actos evidencia, sendo essa posse adquirida nos termos previstos no art. 1263 nº 1 a) do CC, através da prática reiterada de actos materiais correspondentes ao exercício do direito.
Desde os anos setenta até 1999, data da morte da G…, decorreram mais de 20 anos, pelo que se verificam todos os pressupostos para a aquisição pela via da usucapião na esfera jurídica da G… e do H….
A G… faleceu em Maio de 1999 e tinha-se divorciado do H… em 1997.
Só após a morte da G…, o R, com a oposição dos AA, ocupou a casa e registou-a em seu nome e da sua filha, sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão de L…, sua mulher.
Assim, contrariamente ao que parece fluir da fundamentação da sentença, é o próprio R que afasta ter sucedido na posse dos seus pais – antes invoca a sucessão da sua mulher que, tanto quanto se provou, nenhuma relação mantinha com o prédio reivindicado.
Nem se compreende que, advindo da herança dos pais, o H… e o Réu, seus sucessores, tivessem, ambos, com a diferença de mais de 20 anos, inscrito e registado a mesma casa, cada um deles, em seu próprio nome, em artigos matriciais diferentes.
Mas cumpre apreciar melhor a matéria que, na perspectiva do tribunal a quo, obstaculizou a procedência do reconhecimento das consequências daquela posse, assumindo contradição esta fundamentação, jurídica, note-se, com aquela que foi expendida aquando da fundamentação da matéria de facto.
Questionava-se – quesito 24 – se há mais de 20 anos o R, e antes dele, os seus pais, guardaram gado, palha, feno, lenha e alfaias agrícolas no prédio.
O tribunal não julgou provada esta matéria.
E, a este quesito respondeu que Há mais de 20, 30 ou 40 anos que a casa de habitação integra o património dos pais do réu e de H…, e que após o seu decesso a correspondente herança ilíquida e indivisa.
Fundamentou esta conclusão nos depoimentos das testemunhas que declaram que a casa sempre foi da mãe do R.
Salvo o devido respeito, o tribunal, para além de não se circunscrever aos factos, julgou demonstrada uma conclusão, que encerra já uma declaração de domínio e de propriedade, avessa ao que deve considerar-se um facto, stricto sensu, enquanto realidade da vida e, como tal, perceptível e atingível.
E as testemunhas depõem sobre factos e não sobre a sua conceptualização.
O tribunal, ao afirmar que a casa integrou o património e a herança, está já a definir e a atribuir a propriedade da coisa, ou seja, a reproduzir o que a lei quer, a aplicar as normas e os conceitos.
Não estamos, por isso, no domínio dos factos, pelo que esta matéria não pode, enquanto tal, ser atendida.
Acresce que a fundamentação para se alcançar esta conclusão é precária, pois assenta exclusivamente na prova testemunhal, que não versou sobre os factos concretos questionados, pois, de outro modo, teriam sido demonstrados, e também não apela a qualquer título ou acto translativo da propriedade.
E os factos concretos questionados quanto à actuação do R, tendentes a demonstrar a aquisição pela via originária da usucapião, resultaram não provados, sendo certo que é nesta perspectiva que alicerça a sua defesa.
Mas ainda que se tivesse demonstrado o facto efectivamente questionado, (relativo aos pais do R, pois, quanto a este, os factos, inequivocamente, não se provaram), ou seja que os pais do R guardaram gado, palha, feno, lenha e alfaias agrícolas no prédio, este acto isolado e descaracterizado, desconhecendo-se a que título e em que circunstâncias, pois, com esta actividade, até poderiam ser os arrendatários do prédio, apresenta-se manifestamente insuficiente, pelo que não pode, perante actuação tão singela, afirmar-se a existência de uma posse que se exige substancial e reveladora de um controle duradouro e consequente.
Inexistindo título impunha-se a demonstração do apossamento, que demanda “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa (…) não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela “[3]
Por outro lado, a situação questionada contende com a que ficou demonstrada relativamente à G… e ao H…, pois, quanto a estes, inequivocamente, demonstrou-se que nos anos setenta fizeram obras, habitaram a casa, dela dispuseram, o H… inscreveu-a em seu nome, actuando na convicção de serem seus donos.
Por isso, o tribunal não poderia considerar provados aqueles factos porque, neste caso, existiria contradição insanável entre os próprios factos.
Assim, julgou demonstrada uma conclusão e, na aplicação do direito, desvalorizou totalmente os factos demonstrados no que à actuação da G… e do H… respeitam.
Já salientamos que são estes actos materiais, esta relação física com a coisa, que traduzem o “corpus”, elemento essencial para se caracterizar a posse, a “actuação” a que se refere o art. 1251 CC.
Para conduzir à aquisição pela via da usucapião, nos limites do caso concreto, relevante é a posse pacífica e pública, exercida durante certo tempo, sendo seguro que o art. 1254 nº 1 CC faz presumir a posse no tempo intermédio.
A posse pacífica é aquela que foi adquirida sem violência, nos termos do art. 1261 nº 1 do CC, prescrevendo o legislador em que consiste a violência, no nº 2 deste preceito, ou seja, a posse conseguida através de coação física ou coação moral, seja sobre as pessoas, seja sobre as coisas.
A posse pública, nos termos do art. 1262 do CC é aquela que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., 24 e 25, por contraponto à posse oculta, esta traduz-se em os “actos possessórios serem praticados em termos que não possibilitem o seu conhecimento pelos interessados”.
A boa fé consiste, essencialmente, na convicção de que não se lesam direitos alheios, conforme dispõe o art. 1260 do CC.
Já concluímos a relevância dos factos conducentes a esta aquisição pela via da usucapião, pelo que não pode ser acolhido o entendimento expresso na sentença.
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Os factos provados conduzem-nos para uma situação de composse, ou seja, quer a G…, quer o H…, exerceram actos de posse sobre a coisa, convictos de serem seus donos, sendo certo que, conforme o disposto no artigo 1286 CC, cada um dos possuidores pode usar contra terceiros de todos os meios para defesa, não só da própria posse, mas também da posse comum.
Por outro lado, a aquisição pela via da usucapião carece de ser invocada, pois a posse faculta a aquisição do direito, nos termos do art. 1287 CC, sendo seguro, conforme o disposto no art. 303 CC, ex vi art. 1292 CC, que a invocação por um compossuidor aproveita aos demais compossuidores, nos termos do art. 1291 CC.
O prédio integrava, assim, e por esta via, o património comum desse casal não constituindo coisa exclusiva da G….
Nestas circunstâncias, a plenitude da posse na esfera jurídica da G…, e, por via sucessória, na esfera jurídica dos AA, só seria possível pela inversão do título de posse.
Embora o artigo 1265 CC não defina em que consiste esta inversão, “torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o oponente possuía (…) o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial quer extrajudicialmente), a sua intenção de actuar como titular do direito”,[4] ou seja, essa manifestação tem de ser inequívoca.
Esta interversio possessionis pressupõe uma vontade expressa e declarada em possuir em nome próprio.
Ora, o H… e a G… divorciaram-se em 1997.
A G… faleceu em Maio de 1999 e, no ano de 2000, correu termos inventário onde os seus herdeiros relacionaram o imóvel como pertencente à sua herança, manifestando vontade inequívoca, perante o próprio H…, no sentido de incluírem na herança daquela todo o identificado prédio.
Mas os factos concernentes ao comportamento do H… em relação à coisa afastam a necessidade desta inversão.
Com efeito, no processo de inventário, o H… apresentou reclamação afirmando expressamente que o referido imóvel não pertence nem á autora da herança nem a ele próprio, devendo ser excluído do inventário.
Por não haver elementos suficientes para proferir decisão, no processo de inventário, foram os interessados remetidos para os meios comuns, facto que originou a presente acção.
Importa realçar que, apesar de ter demonstrado a descrita actuação conjunta e convergente do H… e da G… em relação à casa, esta declaração no inventario ocorreu depois de o Réu ter registado o mesmo imóvel em seu nome, embora com outro artigo matricial, no ano de 1999, alguns meses após o decesso da G…, indiciando uma actuação convergente do H… e do Réu, seu irmão, a que não será alheia esta rejeição do imóvel pelo primeiro.
Ora, apreciando esta conduta superveniente do H…, é evidente o seu desinteresse em relação ao prédio, tal como o seu depoimento também revelou, tanto quanto resulta da fundamentação da matéria de facto, afirmando expressamente que não é seu proprietário, reiterando, afinal, a declaração efectuada no processo de inventário.
Esta conduta, aliada aos factos que se demonstraram, e que contrariam essa afirmação, consubstancia um verdadeiro abandono, traduzido na rejeição expressa e inequívoca da coisa e, consequentemente, na supressão do corpus e do animus.
E, por força deste abandono, o referido H… perdeu a posse, conforme dispõe imperativamente o artigo 1267 nº 1 a) do CC e, concomitantemente, a possibilidade de actuar conforme o direito correspondente e de poder adquirir o imóvel por usucapião.
Ainda que assim não fosse, os sucessores da G…, sucedendo na sua posse, expressaram de forma inequívoca, ao relacionarem o bem, que era a herança a titular desse imóvel, pelo que ainda que a G… possuísse uma quota ideal e indivisa em nome do marido, os seus sucessores, inequivocamente, inverteram o título de posse, nos termos previstos no art. 1265 do CC.
Inversão de que não careciam, face à perda da posse em função do abandono do compossuidor.
Os AA sucedem na posse da antepossuidora, independentemente da apreensão material da coisa, conforme dispõe o artigo 1255 CC, com referencia ao art. 2050 nº 1 do CC, não se tratando, pois, de um posse nova, antes mantendo as características da posse antiga.
Da articulação do enunciado regime jurídico, com referencia aos factos provados, conclui-se que a G… desde os anos setenta praticou actos materiais em relação ao imóvel, na convicção de ser sua dona, decorrendo, pois, mais de 20 anos, sendo facultada a possibilidade de, nos termos, do artigo 1287 CC, adquirir o correspondente direito de propriedade, conforme peticionado.
O bem integra, pois, a sua herança e a G…, conforme o disposto no art. 2179 nº 1 CC, dispôs do seu património, instituindo os AA herdeiros dos seus bens.
Por esta via, adquiriram os AA a propriedade do imóvel, sendo as pessoas a quem aproveita a invocação da usucapião, cujos efeitos, nos termos do artigo 1288 CC, retroagem ao inicio da posse.
Finalmente, impõe-se salientar que a esta declaração não obsta o facto de o R ter registado o prédio em seu nome.
A publicidade registal não é constitutiva de direitos, pois nos direitos reais está em causa uma publicidade espontânea que “resulta do mero funcionamento social do direito real”.[5]
Como se decidiu no douto Acórdão do STJ de 19.11.2004 (in http://www.dgsi/pt), “ A base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião, e, por isso, o que se fixou no registo predial passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião”.
Assim, aquele registo não colide com a aquisição do prédio na forma descrita.
O artigo 1305º do Código Civil atribui ao proprietário o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, sempre com respeito, no entanto, pelos limites definidos na lei e pelas restrições por ela impostas.
O direito de propriedade é, assim, na sua essência, um direito exclusivo - ius excludendi omnes alios - pelo que o seu titular pode exigir que terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu livre exercício.
Consequentemente, podem os AA reagir contra qualquer perturbação aos uis utendi, fruendi e abutendi, nomeadamente, que o Réu não ocupe ou habite o prédio reivindicado, consequência natural e intrínseca ao reconhecimento propriedade e à restituição da coisa.
Pelas razões expostas, impõe-se a procedência do recurso.
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Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente e declarar os autores proprietários do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Castro Daire, no …, sob o artigo 2660, constituído por uma casa de habitação com rés-do-chão amplo e andar com duas divisões, com superfície coberta de 24m² e as seguintes confrontações: do norte com I…; do sul com J…; nascente com caminho e do poente com I…, condenando os RR a abster-se de usar ou permanecer nesse prédio.
Custas, da acção e do recurso, a cargo dos recorridos.
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Porto, 4 de Abril de 2011
Ana Paula Vasques de Carvalho
António de Sampaio Gomes
Rui de Sousa Pinto Ferreira
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[1] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2, 703
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., III, 15
[3] Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 297
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., 30
[5] – Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, 2649.