INCOMPETÊNCIA RELATIVA
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
CASO JULGADO FORMAL
Sumário

I - Nos termos do nº2 do artigo 111 do Código de Processo Civil, a decisão transitada quanto à competência territorial, resolvendo definitivamente a questão, deve ser acatada pelo tribunal ao qual aquela decisão atribuiu essa competência, não podendo este último, por isso, declarar-se incompetente em razão do território.
II - Se este tribunal, todavia, por despacho também transitado em julgado, não acatar aquela decisão, prevalecerá - independentemente do mérito - a decisão que transite em primeiro lugar, nos termos do nº1 do artigo 675 do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


No processo tutelar - posteriormente convertido em processo de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo (Lei 147/99, de 1 de Setembro) - instaurado a favor das menores A e B no tribunal judicial da comarca de Nelas, foi proferido despacho judicial, em 26/11/2002, a ordenar a remessa dos autos ao tribunal judicial da comarca de Lamego, considerado territorialmente competente, ao abrigo do nº4 do artigo 79 da supra citada Lei, para continuar a respectiva tramitação, uma vez que as menores se encontravam acolhidas, há mais de três meses, no Lar de Infância Nossa Senhora dos Remédios, da cidade de Lamego
No entanto, o Mmº Juiz do 1º juízo do tribunal judicial da comarca de Lamego, por despacho de fls.132, declinou essa competência, com o fundamento de que, nos termos do artigo 85 do Código Civil, a residência das menores é a dos respectivos progenitores, sendo certo que o pai daquelas continua a residir em Nelas.
Ambos os despachos transitaram em julgado (primeiramente o do tribunal de Nelas), pelo que o Ministério Público requereu a resolução do presente conflito negativo de competência, invocando os artigos 117 e 121 do Código de Processo Civil e 36, alínea e) da LOFTJ.
Efectuadas as notificações previstas na lei, apenas respondeu o Mmº Juiz do 1º Juízo do tribunal de Lamego, limitando-se, no entanto, a remeter, com o envio da respectiva cópia, para a decisão do referido tribunal constante já dos autos.
De seguida, pronunciou-se o digno representante do Ministério Público junto do Supremo, propondo que a competência seja atribuída ao 1º Juízo do tribunal judicial da Comarca de Lamego, por força do disposto no nº2 do artigo 111 do Código de Processo Civil, uma vez que foi a decisão proferida pelo tribunal de Nelas a que primeiramente transitou em julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Nos termos da alínea e) do artigo 36 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei 3/99, de 3 de Janeiro, compete às secções do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a sua especialização, conhecer dos conflitos entre - além de outras situações previstas na norma - tribunais de 1ª instância de diferentes distritos judiciais.
In casu, o tribunal judicial de Lamego pertence ao distrito judicial do Porto e o tribunal judicial de Nelas pertence ao distrito judicial de Coimbra.

Apesar disso, vejamos se estamos perante um conflito de competência, que deva ser dirimido por este Supremo, atento ainda o disposto na 2ª parte do nº1 do artigo 116 do Código de Processo Civil.

Para que essa situação se verifique é necessário que, em princípio, estejamos perante duas decisões transitadas e que uma e outra constituam caso julgado formal, ou seja, que cada uma se imponha no processo em que foi proferida, mas que não tenha força de caso julgado material, de sorte a poder impor-se fora do processo da sua prolação.

As duas decisões em conflito incidem sobre a competência em razão do território.

Nos termos do nº2 do artigo 111 do Código de Processo Civil, a decisão (sobre esta matéria) transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada.
Assim, enquanto, nos termos do artigo 106 do mesmo Código, a decisão sobre a incompetência absoluta (internacional, em razão da matéria e em razão do território), embora transitada, não tem, por regra, valor algum fora do processo em que foi proferida, a decisão sobre a incompetência relativa em razão do território vale fora do processo em que foi proferida, ou seja, tem força de caso julgado material.

Já assim era na vigência do Código de Processo Civil de 1939, como salienta o Professor Alberto dos Reis, no seu CPCivil Anotado, I, 3ª ed., Coimbra, 1948, página 247:
«...há uma diferença profunda entre o valor do julgamento da incompetência absoluta e o julgamento da incompetência relativa: o primeiro só tem força de caso julgado formal; o segundo tem força de caso julgado material; o primeiro não ultrapassa os limites do processo em que foi proferido; o segundo ultrapassa-os, ou melhor, tem de ser acatado pelo novo tribunal a que a causa seja afecta...
...Ora bem, por virtude do artigo 111º o julgamento proferido sobre a incompetência relativa vale nos dois aspectos, no negativo e no positivo, de sorte que remetido o processo ao outro tribunal, este não pode declarar-se incompetente;...».

Perante isto, é de concluir - conforme concluiu, numa hipótese idêntica, o acórdão do STJ, de 2 de Julho de 1992, BMJ 419º-626, o qual temos vindo a seguir muito de perto - que, no caso sob recurso, estamos perante um conflito, não de decisões que conduzem a casos julgados formais, mas perante um conflito aparente, entre uma decisão que constitui caso julgado material (a proferida pelo tribunal de Nelas) e outra que nem sequer deveria ter sido proferida (a proferida pelo tribunal de Lamego).

Porém, como foi proferida e transitou em julgado, estamos perante um conflito que tem de ser resolvido.

Mas não da mesma maneira, conforme adverte o acórdão citado, que, logo a seguir, justifica esta advertência, dando a solução:
«De facto, se estivéssemos perante duas decisões que constituíssem casos julgados formais, cada uma no seu processo, a decisão que este Supremo Tribunal teria de proferir, seria verificar qual das duas decisões correspondia à melhor ou mais correcta interpretação da lei, aplicável em matéria de competência.
Mas como não é esta a situação no caso em apreço, o que este Tribunal terá de fazer, não é o que acaba de ser apontado, mas o de verificar e acentuar apenas, que a segunda decisão que foi proferida - contivesse ela ou não a razão do seu lado - tem de ceder face à outra, sua anterior, nos termos do artigo 675º do Código de Processo Civil.».

Cremos ser esta a solução adequada, precisando apenas que o que releva, conforme o disposto no artigo 675 do CPC, é a anterioridade do trânsito em julgado, que não a da data da prolação das decisões (muito embora se verifique, no caso que nos ocupa, coincidência entre os dois factos, uma vez que a decisão do tribunal de Nelas foi proferida e transitou em julgado antes da decisão do 1º juízo do tribunal de Lamego).
DECISÃO
Pelo exposto decide-se o conflito no sentido de se declarar territorialmente competente para conhecer do presente processo o 1º juízo do tribunal judicial de Lamego.
Sem custas.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho