ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUESTÃO NOVA
Sumário


▪ As indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral assentam cada uma em critérios distintos e com a sua funcionalidade própria.

▪ Tais indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento integral do dano/prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.

▪ A responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, assumindo, assim, a responsabilidade da entidade patronal ou da respectiva segurador caracter subsidiário ou transitório.

▪. Consequentemente não é permitido ao responsável civil opor ao lesado/sinistrado, como verdadeira excepção peremptória, o anterior pagamento de indemnização laboral, reportada precisamente aos mesmos danos que suportam a pretensão indemnizatória formulada na acção que visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual.

Texto Integral


- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I. RELATÓRIO

Nestes autos de acção de processo comum em que é autor José a ré “Seguradoras X SA” apresenta recurso da seguinte decisão proferida em sede de audiência prévia:
Veio a Ré B. invocar a excepção peremptória inominada de
"renúncia ao direito de opção pela vertente viária do acidente".

Para tal, alegou em síntese que, conforme reconheceu a Autora, o acidente em causa configura, simultaneamente, um acidente de viação e de trabalho, sendo
que, no âmbito do processo relativo ao acidente de trabalho, recebeu já da
Companhia de Seguros A, bem como da sua entidade patronal, o valor total de
€ 6.372,51, a título de indemnização pela sua incapacidade permanente.

Declarou, ainda, que o Autor peticionou o pagamento de € 25.000,00 nestes autos para ressarcimento dos danos relativos à sua perda de capacidade de ganho,
correspondendo tais danos, precisamente, àqueles por que já foi indemnizado a
título de acidente de trabalho.

Conclui, por conseguinte, que tendo o Autor aceite, como indemnização dos
danos aqui petícionados, tal valor, não pode no presente momento vir peticionar
novo valor, por tal corresponder a duplicação de indemnizações.

Em resposta, o Autor referiu, por um lado, que não pode a Ré desvincular-se unilateralmente do pagamento de uma indemnização, já que a relação entre os
responsáveis civis assume uma natureza de obrigação solidária imperfeita e, por
outro lado, que os danos peticionados nos presentes autos não coincidem com os
fixados no processo laboral.

Apreciando.

Antes de mais, é curial salientar que, conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Dezembro de 2012, proc, n.º
40/0S.1TBMMV.C1. S1, disponível in www.dgsLpt(entre muitos outros), a cuja
argumentação integralmente se adere, que as indemnizações decorrentes,
simultaneamente, de acidente de viação e de trabalho, não são cumuláveis, mas sim complementares.

Resulta do exposto que, nos casos de acidente de viação causado por terceiro, que seja cumulável com acidente de trabalho, deverá a indemnização pelos
danos causados ao lesado/trabalhador recair integralmente, no final, sobre o
causador do acidente automóvel (entenda-se, sobre a respectiva companhia de seguros).

Tal situação não impede que, tratando-se o acidente em causa
simultaneamente de acidente de trabalho, possa a entidade empregadora (e
respectiva seguradora) ser responsável pelo pagamento, a título provisório, de
quantias que venham a ser peticionadas pelo trabalhador acidentado. Neste último
caso, porém, nunca poderá a totalidade da indemnização a atribuir ao trabalhador
exceder aquela que efectivamente resultar do acidente de viação.
Do exposto resulta que o trabalhador pode peticionar da entidade patronal o
pagamento parcial de uma indemnização e o remanescente ao causador do
acidente. O que o trabalhador não pode é ser indemnizado pela entidade patronal e
pelo lesante, quanto aos mesmos danos, por tal corresponder a uma duplicação de indemnizações.

No caso em apreço, importa ter em conta que o Autor distingue a causa da
indemnização a receber nos presentes autos, daquela que já recebeu no âmbito do
processo laboral. De facto, nos presentes autos, os € 25.000,00 não se relacionam
com perdas salariais futuras, nem com a atribuição de IPP, mas sim com a perda de
funcionalidade física e psíquica, com repercussão na sua actividade profissional e
pessoal, o que lhe irá causar danos futuros.

Como se refere no já mencionado Acórdão, "São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de
incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela
atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas
incapacitantes do lesado que - embora não determinem perda de rendimento laboral
- envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços
acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as
actividades da vida pessoal e corrente."

Da leitura da petição inicial resulta, precisamente, que o valor de € 25.000,00 funda-se, precisamente, em tais danos, distintos por isso daqueles já ressarcidos ao
Autor em sede laboral.

Face ao exposto, julga-se improcedente a excepção peremptória deduzida pela Ré B..
Notifique.

Recurso que termina com as seguintes conclusões:

1- Na sua petição inicial e para fundamentar o pedido indemnizatório que formula no valor de 25.000,00€ pelos danos conexos com a incapacidade permanente, o A alega que as sequelas o afectam a nível laboral, sendo que apenas tem preparação técnico-profissional no âmbito de actividades que implicam esforços acrescidos (artigos 45 º, 52º a 55 º da PI)
II- A indemnização que o A pede a esse título destina-se a ressarcir, segundo as suas próprias palavras, a sua "perda de capacidade de ganho"(cf. artigo 55 ºda PI).
III- Ora, assim sendo, não há dúvidas de que a indemnização de 25.000,00€ que o A reclama nesta acção se destina (mesmo que não seja exclusivamente, o que não se concede), a ressarcir as alegadas consequências patrimoniais da sua incapacidade permanente, isto é, a perda de rendimentos futuros decorrente da incapacidade permanente de que ficou portador, a qual afirma que ocorrerá dada a repercussão profissional das sequelas.
IV- Interpretando o texto da PI, o dano cuja indemnização o A reclama não é diferente do que já foi indemnizado na vertente laboral, mas sim o mesmo.
V- As indemnizações por acidente de viação e de trabalho (ou serviço) não são cumuláveis (e nesse sentido militam, além de dezenas de outras as proferidas nos doutos Acórdãos do STJ de 18/11/98, 15/01/92, 18/11/97 e 27/02/91, todos disponíveis no endereço da Internet http://www.dgsi.pt e ainda o douto Acórdão do STJ de 24/10/2002, proferido do processo n. º 1729/02-7).
VI-O A já recebeu na vertente laboral da reparação das consequências do sinistro a quantia de 6.372,51€ a título de indemnização pela incapacidade permanente de que ficou portador.
VII-- O lesado deve optar por uma ou outra das indemnizações, na parte em que são sobreponíveis.
VIII- Nos termos do disposto no artigo 17º n. º4 da LATI a seguradora que tenha pago a indemnização por acidente de trabalho fica sub-rogada, até ao limite do que tiver pago, nos direitos do lesado.
IX-Em consequência do pagamento que efectuou ao A, destinado a indemnizar o A dos danos decorrentes da incapacidade que advém do acidente, a A ficou subrogada nos respectivos direitos contra terceiros, até ao limite dos ditos 6.372,51€
x- Desse pagamento e consequente sub-rogação resultou a extinção desse mesmo direito na esfera do seu primitivo titular, o qual deixa de o poder exercer contra quem quer que seja.
XI-No caso dos autos, o facto de o A ter participado o referido sinistro à sua entidade patronal, à seguradora de acidente de trabalho e ao Tribunal e de ter reclamado expressamente daquelas entidades o pagamento das indemnizações a que julga ter direito em consequência do acidente e, sobretudo, o facto de as ter efectivamente recebido, não pode deixar de ser relevado e deve ser interpretado como uma opção pela indemnização por danos patrimoniais conexa com a vertente laboral do sinistro,
XII-O capital de remição recebido na vertente laboral destinava-se a compensar o A pelos danos patrimoniais decorrentes da incapacidade parcial permanente que diz ter resultado do sinistro
XIII-E é por esse mesmo dano que o A reclama nesta acção o montante de 25.000,00€, em duplicação da indemnização já recebida.
XIV- Em suma, ocorreu a renúncia do direito de opção entre as duas indemnizações e, por via do recebimento da indemnização na vertente viária, extinguiu-se na sua parte relevante (repete-se, os danos patrimoniais abrangidos pela reparação por acidente de trabalho) o direito do A, pelo que deveria ter sido julgada procedente a excepção invocada pela Ré.
XV- Logo, deve ser revogada a douta decisão em mérito, e substituída por outra que absolva a Ré do pedido no que toca à indemnização de 25.000,00€ reclamada pelo autor;
XVI_ - Mesmo que assim não se entendesse, nunca o julgador poderia ter concluído, peio menos nesta fase do processo, que os danos reclamados pelo A não são os mesmos que foram ressarcidos na vertente laboral.
XVII- O próprio A alega que a indemnização que pede se destina a reparar não só as consequências do défice funcional permanente no seu dia-a-dia, mas também a sua repercussão ao nível profissional.
XVIII-Só depois de apurados os danos sofridos pelo demandante, o que só é possível depois de produzida a totalidade da prova, se poderia formular essa conclusão, a qual é, neste momento, prematura.
XIX-Ademais, não está afastada a hipótese de se concluir que o A não sofrerá no futuro qualquer dano patrimonial efectivo em resultado da sua incapacidade permanente.
XX- E, nesse caso, o Tribunal teria de concluir que a indemnização de 6.372,51€ que o A recebeu na vertente laboral teve os mesmos pressupostos nos quais o A baseia a sua pretensão indemnizatória de 25.000,00€
XXI- Ora, se tal suceder e porque o dano do A é só um, teremos de concluir que na vertente laboral do sinistro o A recebeu uma indemnização pela sua incapacidade permanente sem que dela resulte uma efectiva perda de rendimento.
XXII- E, nesse caso, é forçoso que se conclua que o A a recebeu precisamente porque quer no âmbito da reparação da incapacidade permanente no âmbito laboral, quer ao nível da sua configuração como dano biológico com repercussão profissional, é irrelevante para a atribuição dessa indemnização a existência de uma efectiva perda patrimonial futura.
XXIII-Caso se venha a demonstrar que o A não sofrerá no futuro qualquer dano patrimonial, teremos de concluir que o dano a indemnizar (e indemnizado) por ambas as vias (laboral e viária), com excepção dos demais danos não patrimoniais, é, no caso, o mesmo: a incapacidade permanente resultante do acidente a aqui em discussão.
XXIV- Assim sendo, considera a recorrente que, na verdade, produzida nesta acção, pode resultar a conclusão de que a indemnização atribuída no âmbito laboral visou reparar os mesmos danos (ou parte deles) que o A agora reclama.
XXV-E isso impunha que o julgador, ao invés de decidir, desde já, pela inexistência de sobreposição entre as duas indemnizações, tivesse relegado o conhecimento da excepção de renúncia para momento ulterior.
XXVI- Se assim não se entender, teremos de concluir que o julgador, ao considerar, nesta fase do processo —e sem produção de prova — que os danos do A indemnizados na vertente laboral não são os mesmos cuja indemnização é reclamada nesta acção, pronunciou-se sobre questão que não lhe era lícito, desde já conhecer.
XXVII-- Logo, a decisão sempre seria nula, por força do que dispõe o artigo 615 0 nº 1 alínea d) do CPC
XXVIII- - Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede, é, pelo menos, seguro que o julgador, pelas razões acima expostas, não poderia, desde já, concluir que os danos cuja indemnização é reclamada pelo A são outros que não os já reparados na vertente viária.
XXIX- Mesmo que se entendesse que não existe uma renúncia ao direito de opção, nomeadamente por não estarem ainda definida e determinada a indemnização na vertente laboral, nunca seria pelos fundamentos invocados pelo julgador,
XXX-De facto, voltamos a dizer, o julgador não pode, antecipadamente e sem produção de prova, concluir que a indemnização reclamada pelo A se destina a reparar outro dano não satisfeito na vertente laboral, porque também não sabe quais foram os pressupostos desta última indemnização.
XXXI- Logo, a confirmar-se a douta decisão em apreço, não o deverá ser pelos seus fundamentos, porque, salvo melhor opinião, juridicamente insustentáveis.
XXXII-A douta sentença sob censura violou as normas dos artigos 566 º do Cod Civil, 26ºn. 1 do DL 291/2007 e 14º n. º 4 da LAT

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se ou anulando-se a douta decisão em mérito e decidindo-se antes nos moldes apontados, como é de inteira e liminar JUSTIÇA.

O autor contra-alega defendendo a manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito meramente devolutivo e a subir em separado.
Foram colhidos os vistos legais.

Tudo visto, cumpre decidir.

O que se questiona no caso em apreço prende-se em saber se:

. deve manter-se a decisão recorrida ou se deve ser substituída por outra nos termos pedidos em sede recursória.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De facto

Tendo em conta as peças processuais juntas aos autos, e com relevância para a decisão, damos como assente a seguinte matéria fáctica:

A) Ocorrência de um acidente de viação no dia 14 de Junho de 2013, na
Estrada Nacional n.? 205, ao quilómetro 107,600, em Oleia, Basto, Cabeceiras de Basto, entre os veículos PP, propriedade de MM e conduzido por Manuel, e ZZ, propriedade de Sociedade Y, Ld.ª. a e conduzido por António; Transporte do Autor no banco da frente do veículo RR;
B) Vinculação, pelo Autor, à data do acidente, a contrato de trabalho com
MM Sucata e Velharias, Unipessoal, Lda.;
C) Realização, pelo Autor, de tarefas laborais no momento do acidente;
D) Termos do contrato de seguro de responsabilidade civil relativo à viatura
ZZ, titulado pela apólice n.º …, e relativo à viatura PP,
titulado pela apólice n.º ….;
E) Existência de um contrato de seguro de trabalho entre a referida MM Sucata e a Companhia de Seguros A;
F) Recebimento, pelo Autor, da sua entidade patronal e da Companhia de
Seguros A, no âmbito do proc, n.º 5285/14.5TTGMR, que correu termos pela Secção de Trabalho da Instância Central de Guimarães, de indemnização no valor total de € 7.012,08, por perdas salariais e remição de pensão por incapacidade, em virtude do acidente de viação em causa;
G) Reembolso, pela Ré Seguro A, dos valores por si despendidos com o Autor,
por parte da Ré Seguradoras X, no valor de € 7.176,26.
H) Nesta acção o autor formula pedido de pagamento de uma indemnização no valor de 47.500€, correspondendo aos danos assim descritos pelo autor: (…)


47º
O autor, à data do acidente, trabalhava como separador de metais (sucateiro) para a empresa MM Sucatas e Velharias, Unipessoal Lda., com sede em …, Cabeceiras de Basto, auferindo uma remuneração mensal de 485 euros x 14 meses acrescida de 91,30 XII meses de subsidio de alimentação — cf. doc. no 5.
48º
À data do acidente o autor tinha 47 anos de idade (nasceu em 10/09/1965) cf. doc. no 6.
49º
Era uma pessoa bem constituída e saudável, desenvolvendo a sua atividade profissional de separador de metais (sucateiro) sem qualquer limitação ou impedimento de ordem física.
50º
Por força das sequelas apresentadas, autor tem dificuldades acrescidas ao vergar —se e ao levantar cargas do solo, ficou muito esquecido das " coisas" e com perturbações do humor e do carater com hiperirritabilidade (enerva — se com facilidade), apresentando dor na região lombar e na mão direita com os esforços.
51º
Ao exame objetivo, no crânio, apresenta síndrome pós — traumático ligeiro e sequelas da fratura do 30 metro carpo com ligeira deformação e preensão dolorosa, não conseguindo encerrar completamente os dedos da mão.
52º
Estas sequelas afetam de forma definitiva a integridade física do autor, afetação esta com repercussão na sua atividade profissional e laboral (já que implicam esforços suplementares) e tem repercussão nas atividades diárias, tais como as atividades familiares, de lazer e desportivas.
53º
afetação essa que lhe causa sofrimento físico e psíquico, limitando —o em termos funcionais.
54º
O autor tem a 40 classe e atualmente tem 50 anos de idade, sendo que a sua preparação técnico-profissional é apenas compatível com trabalhos ligados a sucateiro ou com trabalhos que impliquem esforços físicos.
55º
Atendendo à sua idade, às lesões e sequelas sofridas, o grau de IPP, salário, à vida laboral activa, à esperança média de vida de um português do sexo masculino se situa próximo dos 74 anos de vida e às afetações descritas nos artos 50º a 53º supra, reclama-se uma indemnização pela perda de capacidade de ganho (dano futuro) a quantia de 25.000 euros .
56º
Em virtude das lesões e sequelas que ficou a padecer, o autor sofreu inúmeras e intensas dores, tanto no momento do acidente, como no decurso do tratamento, o que ainda hoje padece e padecerá para toda a sua vida.
57º
Por outro lado, o autor praticava desporto, jogando futebol aos fins de semana com os amigos, atividade que deixou de praticar por força das sequelas do acidente.
58º
Acresce que não consegue vergar —se, pegar em pesos e fazer grandes esforços físicos, apresentando dor na região lombar e na mão direita com os esforços, o que o limitam profissionalmente e nas tarefas do dia a dia.
59º
O autor ficou " esquecido" das coisas, perturbando —se e irritando —se com facilidade, o que antes do acidente não sucedia.
60º
Também o facto de não conseguir encerrar completamente os dedos, constitui um dano estético que é de valorizar.
61º
Deve ser fixado globalmente ao autor uma indemnização que comtemple o dano estético, a dor, o prejuízo de afirmação pessoal, o dano moral correspondente ao deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica, danos não patrimoniais esses que se fixam no montante de 22.500 euros.
62º
Totalizam os danos sofridos pelo autor a quantia de 47.500 euros.
*
***
De Direito

Relatado que está o desenvolvimento sequencial do processo até à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo presente que as conclusões formuladas pela Apelante, a cuja transcrição procedemos acima operaram a delimitação temática do objecto do recurso, como decorre da conjugação dos artigos 635º, nº 4 e 639º nº 1 do CPC.
Ainda num quadro de considerações preliminares referidas à definição do objecto do recurso, importa deixar nota de um outro aspecto que, neste caso concreto, apresentará relevância relativamente a essa definição.
Tenha-se presente que o nosso sistema de recursos se caracteriza por uma lógica de reponderação e de reexame de decisões proferidas por uma instância precedente, pressupondo, portanto, a existência de decisões sobre a matéria cuja apreciação é pretendida no recurso.
Assim, descontada a apreciação de questões que se prefigurem como de conhecimento oficioso (pois vale aqui, na fase de recurso, também, o disposto no trecho final do nº 2 do artigo 608º do CPC), não constituem objecto legítimo de um recurso questões que, tendo sido introduzidas por quem recorre apenas na respectiva motivação recursória, poderiam ter sido abordadas na instância precedente por suscitação das partes, só não o tendo sido, pela circunstância da parte interessada nessa questão, ter omitido, na conformação dada à lide e na condução desta, essa suscitação, isto não obstante ter (essa parte) disposto de oportunidade para esse efeito e de se tratar de uma questão “latente” – chamemos-lhe assim – em função do objecto temático da acção.
Nestes casos (em que a motivação recursória pretende introduzir questões novas, na acepção aqui indicada) o recurso reduz-se no seu objecto temático às questões efectivamente suscitadas perante o Tribunal a quo e por este resolvidas e, paralelamente, a não apreciação dessas questões (novas) na decisão impugnada, não consubstancia o desvalor previsto no artigo 615º, nº 1, alínea d) do CPC, não traduzindo – como aqui não traduz, desde já se adianta – qualquer nulidade correspondente a algo aparentado a uma omissão de pronúncia.
Estas considerações apresentam relevância relativamente a questões pretendidas introduzir pela Apelante no objecto do recurso. Referimo-nos aos argumentos apresentados na motivação e expressos nas conclusões XVI a XXVII relativamente ao pedido que seja relegado o conhecimento da excepção de renúncia para momento posterior.
Esta falha é configurada pela Apelante, como se observa nas conclusões indicadas e supra transcritas, enquanto nulidade da Sentença.
Porém, como flui das antecedentes considerações e como veremos já de seguida, não lhe assiste qualquer razão na invocação desse suposto desvalor decisório.
Trata-se, com efeito, a situação referida pela Apelante, de pretensa “nulidade” decisória da Sentença só decorrente da omissão da Apelante em introduzir essa questão no âmbito temático da acção perante a instância precedente. Essa questão careceria, todavia, de suscitação e de discussão na primeira instância, sendo que só assim se poderia configurar como questão submetida à apreciação do Tribunal e, como tal, abrangidas pela obrigação de pronúncia decorrente do trecho inicial do nº 2 do artigo 608º do CPC. Então – mas só então, diga-se –, das duas uma: existiria uma decisão sobre a questão, e poderíamos aqui controlá-la, na medida em que fosse desfavorável a quem recorresse; ou, tendo faltado tal decisão (na primeira instância), ocorreria a nulidade de omissão de pronúncia, que aqui seria declarada mediante suscitação da parte interessada (artigo 615º, nº 4, do CPC).
Sendo certo que a Apelante não desencadeou essa questão e que o Tribunal a quo, por isso mesmo, não a resolveu, não se verifica perante esta segunda instância o condicionalismo que tornaria essa questão objecto legitimo deste recurso: torná-la-ia, como antes se disse e ora mais uma vez se repete, a circunstância de ser matéria efectivamente suscitada, mas não o foi.
Prosseguindo:

Para apreciação deste recurso tomamos de empréstimo o recente acórdão da Relação do Porto datado de 18.04.2017 e proferido no processo nº 461/13.8TBPVZ.P1(1) (…) segundo qual é posição pacífica e sucessivamente reiterada de que as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes cada uma em critérios distintos e com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento integral do dano/prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.

Por outro lado, ainda, é indiscutido que a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, assumindo, assim, a responsabilidade da entidade patronal ou da respectiva segurador caracter subsidiário ou transitório. Como assim, a entidade patronal ou a respectiva seguradora podem repercutir sobre o responsável civil ou a respectiva seguradora aquilo que, a título de responsável objectivo e subsidiário, tenham pago ao sinistrado.
A partir deste figurino de concurso ou concorrência de responsabilidades (que de per si não envolve um concurso ou uma acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) é usual a doutrina e a jurisprudência referirem que o mesmo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, pois que:

- no plano das relações externas, o lesado pode exigir, em alternativa, a indemnização ou ressarcimento dos danos de quaisquer dos responsáveis, civil ou laboral, optando por aquele de quem pretende em primeira linha obter a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações;
- no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos responsáveis o responsável primacial ou definitivo pelos danos causados (o responsável civil ou a sua seguradora), conduz a que tenha que se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou a respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente.

Todavia, têm sido acentuadas algumas especialidades ou desvios desta relação de solidariedade imprópria face ao regime geral da solidariedade obrigacional «comum».

Assim, no que toca ao regime das relações externas, acentua-se que, ao contrário do que sucede na «comum» solidariedade obrigacional – art. 523º do Cód. Civil -, o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral (entidade patronal ou a respectiva seguradora) não envolve a extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando, pois, o responsável pelo acidente de viação: é que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo (ou pela respectiva seguradora) extingue efectivamente a obrigação (subsidiária) de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não é exacto, na medida em que a indemnização paga por esta última entidade (por ser transitória ou subsidiária) não extingue a obrigação a cargo do responsável civil que causou o acidente e cuja responsabilidade é, como se referiu, primacial ou definitiva; e daí que se qualifique como sub-rogação legal (e não como direito de regresso) por o fenómeno de sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, referentemente à parcela da indemnização que tiver satisfeito.

Por seu turno, no que respeita ao regime das relações internas, é posição pacífica que o quadro normativo aplicável é o que resulta estritamente do preceituado na Lei dos Acidentes de Trabalho em vigor (o actual art. 17º da Lei n.º 98/2009), podendo o reembolso do responsável laboral (entidade patronal ou respectiva seguradora) ser concretizado por uma de três formas:

a)- substituindo-se o lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não cuidou de os demandar no prazo de um ano a contar da data do acidente – cf. art. 17º, n.º 4 da Lei n.º 98/2009.
b)- intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efectivando o direito de regresso ou reembolso pelas quantias já pagas. – cf. art. 17º, n.º 5 do citado diploma legal.
c)- exercendo o direito ao reembolso contra o próprio lesado, caso este tenha recebido (em processo em que não tenha tido lugar a referida intervenção principal) indemnização que represente duplicação da que lhe tenha sido outorgada em consequência do acidente laboral – art. 17º, n.º 2 da mesma Lei.

É de salientar, pois, em face do exposto, que é à entidade patronal ou à sua respectiva seguradora que assiste o direito ao reembolso das quantias por si pagas contra o próprio sinistrado que haja recebido indemnizações em duplicado pelo mesmo concreto dano.
Destas considerações resulta pois que, segundo a posição que tem vindo a ser mais recentemente acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça,- Vide AC STJ de 11.12.2012, relator LOPES do REGO, antes citado e demais jurisprudência recenseada no aludido aresto- «embora a fixação ao lesado, no âmbito laboral, de um montante de capital ou de uma pensão vitalícia vise ressarcir a sua incapacidade permanente para o desempenho de funções laborais, não pode a seguradora do acidente de viação escusar-se ao pagamento da indemnização que lhe cabe com o fundamento na cumulação de indemnizações, laboral e por acidente de viação
(…)
E em favor desta orientação bastará convocar a letra do já citado art. 17º da Lei n.º 98/09 – exactamente igual ao anterior art. 31º da Lei n.º 100/97 -, que «efectivamente não contempla a faculdade de o responsável civil opor ao lesado/sinistrado, como verdadeira excepção peremptória, o anterior pagamento de indemnização laboral, reportada precisamente aos mesmos danos que suportam a pretensão indemnizatória formulada na acção que visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual (…).
Porém este desenrolar processual só terá sentido e utilidade se, no caso dos autos, se tiver verificado uma situação de duplicação de indemnizações pelo mesmo dano.
O que não acontece neste processo.
De efeito, considerando todos os articulados juntos pelo autor, mais precisamente petição inicial e resposta à excepção resulta claro que o lesado logo na petição inicial não omite o recebimento de indemnização decorrente do acidente laboral: bem pelo contrário, refere explicitamente e identifica o processo que correu termos no tribunal de trabalho- ver artº 46º da p.i- e junta o doc. nº3 e 4 constituindo a sentença aonde foi feito acordo de pagamento e a respectiva homologação. (2)
Não obstante no artº 55º da p.i se referir à perda da capacidade de ganho esclarece depois no artº9/11 da resposta à excepção que o que pretende nesta acção é a indemnização referente ao dano biológico, portanto adicional à emergente do sinistro laboral, logicamente reportada ao ressarcimento de danos que se não pudessem ter por incluídos ou contemplados no capital de remição que reconhece ter sido recebido.
Ora, por força do princípio dispositivo – que implica a congruência entre a petição e a sentença – não deverá esta atribuir ao lesado uma indemnização global que compreendesse os danos já ressarcidos no procedimento por acidente de trabalho: na verdade, a sentença a proferir carece naturalmente de ser interpretada em conformidade com o pedido deduzido pelo Autor, não devendo obviamente ser-lhe arbitrada uma indemnização global que incluísse todos os danos emergentes do acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente laboral, incluindo aqueles já indemnizados em sede laboral.
Desnecessária, portanto, a produção de prova referida na conclusão XVI a XVIII.
Diga-se aliás, que nem se percebe esta defesa da ré quando a mesma cita jurisprudência que admite a possibilidade de acção movida contra a seguradora do terceiro responsável pelo acidente de viação na qual seja pedida indemnização pela IPP já indemnizada em sede laborar- ver artº 121º da contestação da aqui recorrente -como nos dá a conhecer a existência de um protocolo segundo o qual sempre que a seguradora do seguro automóvel tenha pago à seguradora de Acidentes de Trabalho as quantias por esta despendidas na regularização do sinistro simultaneamente de viação e de trabalho e se o sinistrado reclamar da primeira judicialmente indemnização pelos danos patrimoniais abrangidos pela reparação laborar, a seguradora de Acidentes de Trabalho é obrigada, caso seja para tanto interpelada a restituir o que recebeu -ver artº 133º da contestação
Entende, por outro lado, a apelante, que a sentença é nula por excesso de pronúncia, no entanto a questão mostra-se ultrapassada com a decisão anterior, sendo certo que, ainda que assim não fosse, sempre inexistiria qualquer nulidade uma vez que o tribunal se pronunciou sobre a questão suscitada, não obstante a apelante discordar de tal apreciação.
Assim sendo, teremos de secundar a decisão recorrida pelo que julgamos improcedente o recurso.
As custas dos recursos serão a cargo da recorrente [artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta 2ª Secção Cível em negar provimento ao recurso e, em consequência:

a) - Manter a decisão recorrida;
b) - Condenar a recorrente no pagamento das custas dos recursos [artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
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Guimarães, 25 de Janeiro de 2018

(Maria Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Melo Nogueira
(José Cravo)



1. Relator Exmº Desembargador Dr. Jorge Seabra
2. Como a ré reconhece no artº 105 da contestação escrevendo “Como o A. Confessa (artº 46. Da p.i ) o acidente em apreço foi simultaneamente um acidente de viação e de trabalho.