EMPREITADA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
EMPREITEIRO
SUBSTITUIÇÃO
Sumário

1. O dono da obra não pode resolver unilateralmente o contrato de empreitada, e substituir-se directamente ao empreiteiro, na realização da obra.
2. Só nos casos excepcionais admitidos por lei, é licita a auto-tutela dos direitos.
3. A lei estabelece um princípio de precedência de actuação do dono da obra, até poder resolver o contrato e pedir uma indemnização ao empreiteiro, conforme dispõem os artigos 1221º, 1222º e 1223º, do Código Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
Razão da revista
1. "A", intentou na comarca de Vila Nova de Gaia, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra "B-SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA.", pedindo a condenação desta, a pagar-lhe a quantia de Esc. 12.105.100$00, acrescida de I.V.A., à taxa de 17%, bem como os juros que se vencerem à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento, referente a parte do preço de uma empreitada que efectuou para a Ré, bem como o aumento correspondente ao acréscimo de despesas e trabalhos realizados, nessa mesma empreitada, que teve por objecto a construção, nas artes de pedreiro e trolha, de um prédio de doze habitações e respectivo aparcamento, na Rua do Pavilhão, em Gulpilhares, conforme projecto de arquitectura, betão armado e caderno de encargos que lhe foram entregues.
2. A Ré contestou alegando, em síntese, que a obra levada a cabo pelo Autor, além de não ter sido entregue no prazo acordado, apresentava vários defeitos e anomalias, que foram mandados reparar por terceiro.
Conclui, sustentando a improcedência da acção e, em reconvenção, pede que:
- se considere que os trabalhos realizados pelo Autor ascendem a Esc. 50.439.000$00;
- se considere que, pela empreitada, pelos materiais fornecidos, pelos trabalhos realizados em substituição do Autor, demais despesas e multa pela não entrega da obra no prazo, a Reconvinte tem direito a Esc. 52.397.346$00;
- o que dá um saldo a seu favor de Esc. 1.958.346$00;
- considerando-se totalmente pagos os trabalhos realizados pelo Autor à Reconvinte;
- condenando-se o Autor a pagar à Reconvinte a quantia de Esc. 1.938.346$00, acrescida de indemnização por juros compensatórios, à taxa de 10%, a contar da notificação.
Houve réplica e tréplica.
3. A sentença decidiu assim:
a) Julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente:
b) Condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 2.880,24, acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 7%, desde o trânsito em julgado desta sentença, até efectivo e integral pagamento.
c) Condenou a Ré a pagar ao Autor o que se liquidar em execução de sentença, relativamente ao custo da substituição da camada de godo no terraço por uma camada de argamassa com 4 cm de espessura.
d) Julgou improcedente a reconvenção deduzida pela Ré, absolvendo o Autor do pedido reconvencional.
4. Inconformados com a sentença, dela vieram apelar Autor e Ré, tendo a Relação do Porto confirmado a sentença (fls. 363), com a rectificação posterior, quanto à taxa de juros (fls. 382).
5. Daí, os pedidos de revista, formulados por cada uma das partes.
II
Conclusões do recorrente/autor
1. Na sentença da 1ª instância, nomeadamente a fls. 245 dos autos, a 1ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia entendeu que o Autor-Recorrente tinha direito a receber da Ré-Recorrida a quantia de 41.500.000$00, mais IVA, acrescida de 1.152.750$00, mais 444.500$00, mais 84.000$00, mais 1.000.000$00;
2. Entendeu, ainda, que a tais quantitativos deveriam ser subtraídos 39.258.613$00, mais 4.345.200$00.
3. Procedendo ao cálculo, temos que, nos termos de tal sentença, o Autor-Recorrente teria a receber 51.236.250$00, que seria a soma de 41.500.000$00, mais IVA, à taxa de 17%, 1.152.750$00, 84.000$00 e 1.000.000$00.
4. Ao montante assim apurado, havia que se subtrair 39.258.613$00, mais 4.345.200$00.
5. O resultado líquido de tal operação, é de 7.632.437$00 (38.070,44€), e não de 2.880,24 €, conforme a condenação.
6. É, assim, manifesto ter havido simples erro de cálculo, quando o tribunal da 1ª instância procedeu à liquidação entre o deve e o haver de cada uma das partes.
7. A decisão recorrida deveria ter procedido à rectificação de tal erro, substituindo 2.880,24 €, por 38.070,44€.
8. Ao não proceder a tal rectificação, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 249° e 295° do Cód. Civil, e art. 667°, n.º 1., do C PC.
Supletivamente:
9. Sobre o preço da empreitada (41.500.000$00) deveria incidir a taxa do IVA de 17%.
10. A decisão recorrida deveria ter alterado a decisão da 1ª instância no sentido de fazer incidir sobre o preço da empreitada a taxa do IVA de 17%.
11. Não o tendo feito, violou o disposto na al. a), do art. 1º do Código do IVA, aprovado pelo Decreto-Lei n° 394-B/84, de 26/12.
12. Não alterando a decisão da 1.ª instância de modo a fazer incidir a taxa do IVA sobre o preço da empreitada, a decisão recorrida violou o direito de propriedade do Autor-Recorrente - art. 1305° do CC., pois estando este obrigado a entregar ao Estado o valor do IVA sobre esse preço, não o tendo recebido da Ré-Recorrida, como de direito, terá de o fazer do seu próprio bolso.
III
Conclusões da recorrente/ré
A recorrente vem dizer, em resumo, que está provado:
O compromisso do autor em terminar a obra, até 30 de Setembro de 1996; que assumiu todas as responsabilidades pelo atraso, comprometendo-se a entregá-la, em 23 de Março de 1997; e, em 7 de Maio seguinte, ainda não estava concluída; que havia sido fixada uma penalização diária de 20.000$00, para o caso de incumprimento, sendo, por isso, devida à recorrente uma quantia de 4.360.000$00, relativa à penalização de 218 dias, pelo atraso na conclusão da obra.
Ao não concluir a obra, não fazendo certos trabalhos, nem removendo os entulhos, obrigou a recorrente a suprir as faltas, tendo gasto os montantes discriminados nas conclusões II e III - o que não teria de despender se as obras fossem realizadas em prazo e conforme ao contratado, e o autor não tivesse abandonado os trabalhos, pelo menos a partir de 7 de Maio de 1997.
Por isso, sentiu-se no direito de resolver o contrato de empreitada, e de entregar a continuação da obra a outro empreiteiro, considerando que o abandono da obra com incumprimento defeituoso, confere-lhe o direito à redução da contraprestação e o direito à indemnização pelos danos sofridos.
O direito à redução da contraprestação corresponde aos custos dos trabalhos compreendidos na empreitada, e que não foram executados, e o direito à indemnização pelos vícios de construção que foram detectados na obra, que teve que reparar (conclusão VII).
E conclui: dando provimento ao recurso, deve o Tribunal considerar parcialmente procedente, por provada, a reconvenção e, por via disso, condenar o A. a pagar à recorrente:
a) € 21 747,59 relativo à penalização pelo atraso na conclusão e entrega da obra.
b) € 10126,40 relativo aos trabalhos não executados pelo A. e incluídos na empreitada.
c) € 1 524,59 relativo à substituição dos tubos da PT.
d) A que se fixar em execução de sentença relativa à lavagem do revestimento exterior.
IV
Factos provados
Importa inventariar todos os factos, pese embora a sua extensão, pois o seu conjunto, devidamente coordenado, releva significativamente de análise, face à formulação das conclusões de ambos os recorrentes, exigindo, no desenvolvimento, que deles nos socorramos, amiúde.
Assim:
1. Em Janeiro de 1996, o Autor acordou com a Ré em construir, nas artes de pedreiro e trolha, um prédio de doze habitações e respectivo aparcamento, na Rua do Pavilhão, em Gulpilhares, conforme projecto de arquitectura, betão armado e caderno de encargos que lhe foram entregues.
2. Esse prédio seria composto de três pisos acima do solo, e respectivo aparcamento para automóveis em garagens fechadas, tudo conforme o projecto que se mostra junto a fls. 7 dos autos.
3. Para realizar a obra em conformidade com o que era então pretendido pela Ré, o Autor apresentou uma proposta de preço que totalizava o montante de Esc. 41.500.000$00, sendo que Esc. 21.500.000$00 diziam respeito à arte de pedreiro e Esc. 20.000.000$00 à arte de trolha, sobre os quais incidiria I.V.A. à taxa em vigor.
4. O contrato de empreitada fixou a data de final do mês de Setembro seguinte, para a entrega da obra.
5. E em caso de incumprimento deste prazo, acordou-se uma penalização de multa diária no valor de Esc. 20.000$00.
6. A proposta apresentada pelo Autor foi aceite pela Ré, tendo esta entregue àquele a realização dessa obra.
7. Depois de ter procedido ao desaterro e medição do terreno, verificou-se que tinha havido um erro de arquitectura, motivado por erro cometido no levantamento topográfico.
8. Tal erro - que só foi detectado ao efectuar a marcação da construção do edifício - levou a que tivesse de ser elaborado um novo projecto de arquitectura, que é o constante de fls. 8 dos autos, que não obstante manter o mesmo número de habitações, alterava a fisionomia do edifício.
9. Além das alterações à obra introduzidas pela Ré com o novo projecto, a Ré havia solicitado ao Autor que aumentasse em 0,5 m a largura que estava prevista para o edifício destinado aos apartamentos.
10. Ao que o Autor acedeu, cumprindo aquilo que lhe foi dito.
11. Este aumento de 0,5 m importou um aumento da área construí da em 43,5 m2, implicando um aumento do valor da empreitada em Esc. 1.152.750$00.
12. Também relativamente à parte da obra destinada às garagens houve alterações no segundo dos projectos apresentados, uma vez que neste último as garagens foram desencostadas dos muros que dividiam o terreno de implantação da obra dos terrenos contíguos.
13. Aquando de tal alteração, já os muros que dividiam o terreno de implantação da obra dos terrenos contíguos tinham sido construídos pelo Autor de modo a que as garagens pudessem encostar neles.
14. Servindo de parede para aquelas e com resistência suficiente para suportar a cobertura das garagens, tal como inicialmente estava previsto.
15. As garagens estão afastadas dos muros, não tendo o Autor aproveitado 9 m2 de emparedamento das garagens que serviam em simultâneo de muro divisório, implicando a alteração do posicionamento das garagens a execução de novas fundações (sapatas).
16. Tais alterações implicaram um aumento do valor da empreitada em Esc.444.500$00.
17. Na zona das garagens estava previsto alteamento do chão com aterro e compactação de terras.
18. Para suporte dessas terras havia necessidade de construção dum muro "em betão ciclópico" que serviria de fundação das garagens.
19. A parede posterior das garagens assentaria então nesse muro de betão.
20. Relativamente ao revestimento do terraço, estava acordado na empreitada que o acabamento seria com uma camada de godo lavado a sobrepor o revestimento térmico. Porém,
21. Por acordo entre a Ré e o Autor, decidiu-se substituir essa camada de godo por uma camada de argamassa com 4 cm de espessura.
22. No mês de Setembro, já havia o Autor colocado as soleiras nas portas de entrada dos apartamentos de acordo com o caderno de encargos, quando a Ré, invocando que como as portas que iriam ser colocadas no local das soleiras eram incompatíveis com as mesmas, estas teriam de ser retiradas.
23. O que o Autor fez.
24. Posteriormente, a Ré ordenou que fossem recolocadas soleiras iguais às que foram mandadas retirar, já que a informação que tinha dado estava errada.
25. As soleiras que foram retiradas tiveram de ser danificadas, uma vez que se encontravam já fixadas, tendo o Autor que colocar outras novas, o que importou um custo adicional de mão de obra e material, no montante de Esc. 84.000$00.
26. A Ré assumiu perante o Autor os custos desta alteração.
27. Em Novembro de 1996, a Ré solicitou ao Autor que construísse um posto de transformação eléctrica dentro do terreno onde foi implantado o prédio e para o servir.
28. Para construção desse posto de transformação o Autor despendeu Esc.1.000.000$00, valor usualmente praticado à data nesse tipo de obra.
29. O Autor recebeu por conta da empreitada a quantia de 39.258.613$00.
30. Por acordo entre as partes, a tijoleira a colocar nos apartamentos que inicialmente seria para ser paga pelo Autor, foi-o pela Ré, a solicitação desta.
31. A Ré entregou ao autor 2.414 m2 de material cerâmico para aplicar na obra.
32. Conforme o caderno de encargos, foi fixado o preço deste material em 1.800$00/m2 para os revestimentos interiores, pavimentos interiores e exteriores.
33. O Autor não levou a cabo a construção dos passeios frontais ao edifício.
34. Tais passeios frontais só não foram concluídos em virtude da sua construção estar dependente da colocação de tubos de águas pluviais sobre as quais seria assente o passeio.
35. Trabalho que era da responsabilidade do picheleiro.
36. Em carta datada de 07/05/1997, a Ré, invocando o abandono da obra por parte do Autor, informa-o de que a partir dessa data a obra seria continuada por outro empreiteiro.
37. A esta carta respondeu o Autor, pela mesma via, em 09/05/1997, negando o abandono da obra, justificando o porquê da parte em falta para concluir a empreitada e predispondo-se para em cinco dias a concluir, desde que fossem ultrapassados os impedimentos à conclusão dos trabalhos.
38. A Ré respondeu em carta datada de 15/05/1997, no essencial, no sentido de manter a posição assumida na sua anterior carta.
39. O Autor, por carta datada de 19/05/1997, comunicou à Ré que entendia que esta havia desistido da empreitada e não abdicava de receber tudo a que tivesse direito.
40. Em 07/07/1997 o Autor enviou à Ré a factura cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 17.
41. A Ré teve que mandar retirar todos os entulhos sobrantes da obra, que haviam sido depositados no terreno confinante.
42. Estes trabalhos eram da responsabilidade do Autor, conforme caderno de encargos - arte de pedreiro - movimentação de terras.
43. O Autor celebrou contrato com a EDP para abastecimento de energia eléctrica à obra e requisitou o contador respectivo.
44. No dia 4 de Março de 1997, pelas 20 horas, Autor e Ré, representada pelo sócio C e na presença do técnico da obra, reuniram na sede da Ré.
45. Nessa reunião, o Autor comprometeu-se a entregar a obra concluída no dia 23 de Março, assumindo todas as responsabilidades pelo seu atraso, de que se lavrou acta secretariada pelo técnico da obra e assinada pelo representante da Ré e pelo Autor, tendo o Autor escrito pelo seu punho a data de "23 de Março".
46. Com a alteração do projecto no que respeita às garagens houve uma redução da área de construção em tal zona de 34,58 m2.
47. Por ordem da Electricidade de Portugal - EDP, E.P., e para ligação da energia eléctrica ao prédio, a Ré teve que mandar substituir todos os tubos de ligação do P.T. à caixa de derivação junto do prédio.
48. Sendo que o Autor instalou tubo de 2 Kg/pressão, quando deveria ter colocado tubo de 6 Kg/pressão.
49. A Ré teve de comprar 396 m de tubo apropriado, no que gastou Esc. 305.652$00.
50. Os trabalhos a que alude o art. 60° da contestação (colocar 4 soleiras de granito para os portões de entrada; várias pedras de vidraço nas escadas exteriores, nas varandas, na saída das traseiras e no patamar do 2° andar; tijoleira nas varandas; construir caixas de limpeza e de visita e respectivas tampas para saneamento, águas pluviais e electricidade) constavam do caderno de encargos.
51. Parte do revestimento exterior do prédio ficou manchado, tendo sido lavado.
52. O Autor procedeu à limpeza dos apartamentos quando acabou as suas artes.
53. No entanto, posteriormente a essa limpeza houve outras artes a trabalhar nos apartamentos, não competindo ao Autor limpar a sujidade provocada por essas artes.
54. O director técnico da obra dos autos é marido de uma das sócias da Ré.
55. Foi no escritório do director técnico da obra que foram realizadas diversas reuniões entre Autor e Ré.
56. Era o director técnico quem representava a Ré na obra e fiscalizava os trabalhos.
57. Foi esse mesmo director técnico quem realizou os projectos de arquitectura junto aos autos em nome e por conta da Ré.
58. A obra nesta data encontra-se concluída.
59. O depoente D exerceu as funções de técnico responsável pela direcção técnica da obra.
60. No âmbito dessas funções acompanhou a obra do princípio ao fim e preencheu e assinou o livro de obra junto aos autos.
61. O projecto de arquitectura foi assinado pelo Arq. E.
62. A ré tem sede na Av. Moreira de Sousa, 2024, Pedroso, sendo nesse mesmo local, o gabinete do director técnico da obra.
V
Questão a resolver e direito aplicável
1. A questão a resolver equaciona-se do modo seguinte:

O recorrente/autor cumpriu pontualmente, ou não o contrato de empreitada, entregando a obra em tempo e sem defeito, devendo por isso ter direito a receber o capital e juros que pede?
Ou, vistas as coisas do lado da recorrente/ré, a entrega da obra não se fez no tempo contratualizado, e, ainda assim, apresentou defeitos de tal modo que esta recorrente, contratou, legalmente, um terceiro para acabar a obra e suprir os defeitos, tendo, por isso, direito ao que pagou e que pede em reconvenção?
2. As questões que acabam de ser colocadas não envolvem nenhum problema jurídico especial.
Revertem-se apenas, no quadro dos dois pedidos de revista, num critério de prova e de calculo de contas, depois reportado à respectiva configuração, na lei.
A prova judiciária obtida foi definitivamente fixada e motivada pelos documentos de fls. 7/20; 46/70, 153/155 e 212/217; pelas respostas aos quesitos dadas pelos peritos e que estão a fls. 119/122; e, finalmente, pelo conjunto da prova testemunhal e individualizada, como descrita a fls. 233 e seguintes.
Não houve reclamação atendível.
Não há - e como tal não foi invocada - ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 722º-2 do C.P.C).
O que vale por dizer que foram regularmente fixados, pelas instâncias, os factos materiais da causa.
É com estes que temos que trabalhar os recursos.
3. Para melhor ordenação do discurso, face à extensão da matéria de facto relevante, analisemos, primeiro o recurso da reconvinte/dona da obra, quanto ao atraso, que alega, imputável ao autor/empreiteiro na execução do contrato de empreitada. (Até Setembro de 1996 - ponto 3, III) e cujo esgotamento do prazo desencaderia a aplicação da clausula penal (ponto 5, III). E, depois, quanto aos alegados defeitos da obra.
Abordemos o primeiro aspecto.
Não é possível alcançar um resultado conclusivo de que ocorreu atraso no cumprimento pontual do acordado, e havendo atraso, se este é imputável ao autor, ou, se, como este alega, a reconvinte desistiu da empreitada, impedindo que ele a executasse, como era seu desejo.
Efectivamente, o que se mostra é que o projecto inicial da obra empreitada foi alterado e sofreu atrasos decorrentes de circunstâncias várias, não exclusivamente da responsabilidade do autor.
Assim (pontos: 7, 8, 12, 13, 20, 21, 24 , 25, 26 e 27):
Depois de ter procedido ao desaterro e medição do terreno, verificou-se que tinha havido um erro de arquitectura, motivado por erro cometido no levantamento topográfico.
Tal erro - que só foi detectado ao efectuar a marcação da construção do edifício - levou a que tivesse de ser elaborado um novo projecto de arquitectura, que é o constante de fls. 8 dos autos, que não obstante manter o mesmo número de habitações, alterava a fisionomia do edifício.
Também relativamente à parte da obra destinada às garagens houve alterações no segundo dos projectos apresentados, uma vez que neste último as garagens foram desencostadas dos muros que dividiam o terreno de implantação da obra dos terrenos contíguos.
Aquando de tal alteração, já os muros que dividiam o terreno de implantação da obra dos terrenos contíguos tinham sido construídos pelo Autor de modo a que as garagens pudessem encostar neles.
Relativamente ao revestimento do terraço, estava acordado na empreitada que o acabamento seria com uma camada de godo lavado a sobrepor o revestimento térmico. Porém,
Por acordo entre a Ré e o Autor, decidiu-se substituir essa camada de godo por uma camada de argamassa com 4 cm de espessura.
No mês de Setembro, já havia o Autor colocado as soleiras nas portas de entrada dos apartamentos de acordo com o caderno de encargos, quando a Ré, invocando que, como as portas que iriam ser colocadas no local das soleiras eram incompatíveis com as mesmas, estas teriam de ser retiradas.
O que o empreiteiro fez.
Posteriormente, a Ré ordenou que fossem recolocadas soleiras iguais às que foram mandadas retirar, já que a informação que tinha dado estava errada.
As soleiras que foram retiradas tiveram de ser danificadas, uma vez que se encontravam já fixadas, tendo o Autor que colocar outras novas, o que importou um custo adicional de mão de obra e material, no montante de Esc. 84.000$00.
A Ré assumiu perante o Autor os custos desta alteração.
Em Novembro de 1996, a Ré solicitou ao Autor que construísse um posto de transformação eléctrica dentro do terreno onde foi implantado o prédio e para o servir.
Ainda pela positiva, e considerando um princípio ético fundamental do direito dos contratos - a boa fé - o que se mostra, é uma actuação do autor, a ela conforme, quando se discorre sobre os factos provados, como assim (Pontos 36 a 40, 44, 46, 54 a 60, III):
Em carta datada de 07/05/1997, a Ré, invocando o abandono da obra por parte do Autor, informa-o de que a partir dessa data a obra seria continuada por outro empreiteiro.
A esta carta respondeu o Autor, pela mesma via, em 09/05/1997, negando o abandono da obra, justificando o porquê da parte em falta para concluir a empreitada e predispondo-se para, em cinco dias, a concluir, desde que fossem ultrapassados os impedimentos à conclusão dos trabalhos.
A Ré respondeu em carta datada de 15/05/1997, no essencial, no sentido de manter a posição assumida na sua anterior carta.
O Autor, por carta datada de 19/05/1997, comunicou à Ré que entendia que esta havia desistido da empreitada e não abdicava de receber tudo a que tivesse direito.
Em 07/07/1997 o Autor enviou à Ré a factura cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 17.
O Autor celebrou contrato com a EDP para abastecimento de energia eléctrica à obra e requisitou o contador respectivo.
No dia 4 de Março de 1997, pelas 20 horas, Autor e Ré, representada pelo sócio C e na presença do técnico da obra, reuniram na sede da Ré. Nessa reunião, o Autor comprometeu-se a entregar a obra concluída no dia 23 de Março, assumindo todas as responsabilidades pelo seu atraso, de que se lavrou acta secretariada pelo técnico da obra e assinada pelo representante da Ré e pelo Autor, tendo o Autor escrito pelo seu punho a data de "23 de Março".
Nem se pode esquecer, num prudente e critico juízo avaliativo da situação, que o director técnico da obra dos autos é marido de uma das sócias da Ré.
Foi no escritório do director técnico da obra que foram realizadas diversas reuniões entre Autor e Ré.
Era o director técnico quem representava a Ré na obra e fiscalizava os trabalhos.
Foi esse mesmo director técnico quem realizou os projectos de arquitectura junto aos autos em nome e por conta da Ré.
No âmbito dessas funções acompanhou a obra do princípio ao fim e preencheu e assinou o livro de obra junto aos autos.
A ré tem sede na Av. Moreira de Sousa, ..., Pedroso, sendo nesse mesmo local, o gabinete do director técnico da obra.
Dito isto, vale por dizer que a prova verificada pelas instâncias não é susceptível de levar à conclusão de que houve inobservância do prazo por parte do autor e que essa inobservância lhe é adequadamente imputável, em termos jurídicos.
3.1. Quantos ao defeitos da obra:
Também não se pode extrair da matéria de facto que existiram defeitos da obra, ou, pelos menos defeitos essenciais (pontos: 33, 48, 49, 51) que determinassem a resolução do contrato pela reconvinte, procedendo ela, então, e por causa disso, à eliminação dos alegados defeitos, contratando a obra com novo empreiteiro.
Importa analisar melhor este aspecto.
Admitamos que houve defeitos essenciais, justificativos da recusa de recepção da obra pelo dono.
O artigo 1208º do Código Civil dispõe que «o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato».
A reconvinte alega que o autor não cumpriu pontualmente, conforme ao acordado, discriminando os vários defeitos nos números 47 a 70 da contestação, cuja reparação mandou directamente efectuar por outrem.
Acontece que a lei configura para esta situação uma regra de precedência de exercício de direitos. (1)
Sucessivamente: exigir a reparação dos defeitos que puderem ser supridos, ou não podendo, exigir nova construção; pedir a redução do preço, ou, resolver o contrato, se, através do percurso anterior, a obra mantiver os defeitos. (Artigos 1221º -1 e 2; e 1222º -1, do Código Civil).
Finalmente, exigir uma indemnização, nos termos gerais. (Artigo 1223º).
A reconvinte não se pautou por esta configuração ordenada, sequencial, do exercício dos seus direitos.
Efectivamente, só em execução podia pedir que o facto fosse prestado por conta de outrem à custa do devedor. A lei supõe aqui, a necessidade de uma condenação prévia do empreiteiro, na sequência da qual o dono da obra pode exigir a eliminação do defeito, ou nova construção por terceiro, à custa do devedor, ou indemnização por danos sofridos.
Também assim entenderam as instâncias (fls.: 244 da sentença; e 361 do acórdão).
E entenderam bem, porque, por uma lado, a lei não suporta que o dono da obra proceda, por administração directa, à eliminação dos defeitos ou à realização da obra, pois isso seria uma forma de auto tutela do direito, para além dos casos excepcionais em que é admissível. (Artigo 1º do C.P.C.). (2)
Por outro lado, o credor (reconvinte) substituiu unilateralmente o devedor (autor) no suprimento dos alegados vícios, sem dar oportunidade a este para o fazer, contratando um terceiro para a realização dos trabalhos, pagando os custos (que discrimina nas diferentes alíneas do n.º 74 da contestação) exigindo-os, depois, em reconvenção, para compensação parcial do que deve ao autor.
Ora, a ré/reconvinte não pode proceder a essa substituição, nas condições indicadas, comprometendo o êxito da própria reconvenção, considerando a estrutura dispositiva em que a que formulou, para ser compensada pelo empreiteiro/autor, pelo que ela pagou a terceiro, nas circunstâncias de afastamento deste, como acabam de ser descritas.
4. Quanto à revista do autor:
Não há erro de calculo. (Parte II).
As contas estão bem feitas, face ao que vem provado. (Pontos: 11, 16, 25 e 28, da matéria de facto transcrita).
Retomemos o calculo:
O custo da empreitada era de 41.500.000$00, mais IVA. (Ponto 3, III).
A esta verba são adicionadas as verbas nos montantes de: 1.152.750$00 (aumento da área de construção);
- 444.500$00 (alteração das garagens);
- 84.000$00 (colocação de soleiras de portas);
- 1.000.000$00 (construção do posto de transformação eléctrica);
O autor recebeu da ré as quantias de 39.258.613$00, e ainda a verba de 4.354.200$00, correspondente a material cerâmico que a ré entregou ao autor para colocação na obra.
Donde: 41.500.000$00 + 1.152.750$00 + 444.500$00+84.000$00 +1.000$00, menos 39.258.613$00 + 4.345.200$00, é igual a um saldo liquido, a benefício do autor, no montante de 577.473$00.
Além disso, há ainda lugar ao pagamento do custo da substituição da camada de godo por uma camada de argamassa, nas condições indicadas no números 20 e 21 dos factos assentes, quantia que deverá ser liquidada em execução de sentença.
As quantias a que o autor tem direito são acrescidas do IVA à taxa de 17%, tal como foi determinado (fls.246 e 363), mais os juros à taxa legal sucessivamente em vigor, como foi corrigida pela decisão recorrida. (Fls. 382).
VI
Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento às revistas, confirmando a decisão recorrida.
Custas por cada qual dos recorrentes, na proporção respectiva do decaimento.

Lisboa, 9 de Março de 2004
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) Diferentemente da regra da opção do consumidor, nos casos de falta de conformidade do produto com o contrato, contemplado pelo artigo 4º, em especial n.º 5, do Decreto- Lei n.º 67/03, de 8 de Abril, que transpõe para o direito interno a Directiva n.º1999/44/CE, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas para assegurar a protecção dos interesses do consumidor, tal como definidos no n.º1, do artigo 2º da Lei n.º24/96, de 31 de Julho. Também o artigo 914º, 1ª parte, do CC, estabelece a opção: reparação/substituição, relativamente à venda de coisa defeituosa.
(2) Ver sobre este aspecto, e neste mesmo sentido, Professor Menezes Cordeiro, Direito da Obrigações, 2ª edição, III volume, página 538. Para além da jurisprudência que o acórdão recorrido também cita (fls.361), que também segue a mesma linha de pensamento.