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SERVIÇO DOMÉSTICO
DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
Sumário
I - No contrato de serviço doméstico a justa causa de despedimento deverá ser analisada num contexto específico, em que sobreleva a particular relação de confiança e convivência que deverá existir entre as partes; II - Estando em causa factos relativos à lesão de interesses patrimoniais do empregador e do seu agregado familiar, a sua avaliação, para efeito de constituir justa causa de rescisão, terá de ser efectuada, não no estrito plano da sua relevância jurídico-penal, mas no contexto específico da relação laboral e em consideração da sua adequabilidade como motivo de despedimento. III - O sentimento de desconfiança e o ambiente de mal estar e insegurança gerados pela suspeição relativamente à honorabilidade de uma trabalhadora, expressamente mencionados na nota de culpa e comprovados judicialmente, são suficientes para justificar o despedimento, ainda que se não tenha feito a prova de que os factos imputados assumiam dignidade penal.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
"A" instaurou em 13.4.98 a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B e C, pedindo se declarasse ilícito o seu despedimento e se condenassem aqueles a pagar-lhe 2.733.791$00, acrescidos de juros de mora vencidos no valor de 56.954$00 e dos vincendos até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que trabalhou como empregada doméstica para os RR., mediante a retribuição mensal de 100.000$00, entre 15 de Setembro de 1986 e 2 de Fevereiro de 1998, data em que foi despedida sem justa causa, e que assim tem direito a uma indemnização de 2.400.000$00, nos termos dos artºs. 29º a 31º do Dec.Lei nº. 235/92, de 24.10, para além dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho, no valor de 333.791$00.
Os RR contestaram, alegando que a Autora foi surpreendida no dia 29.01.98 a furtar a carteira de dentro da bolsa da R. mulher, assim se confirmando a suspeita de que a ela se deviam os desaparecimentos de dinheiro de que os RR vinham sendo vítimas há cerca de um ano, pelo que a Autora foi despedida com justa causa e não tem direito a qualquer indemnização, nem aos juros de mora peticionados, uma vez que os RR puseram à disposição da A. as restantes quantias.
Terminam pedindo se julgue a acção improcedente e se condene a Autora como litigante de má fé em multa e indemnização a favor dos RR.
Realizada uma tentativa de conciliação que não surtiu efeito, foi proferido o despacho saneador e, seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, através da remissão para os respectivos artigos, tendo no final da mesma sido proferido despacho a ordenar a notificação com cópias e que se procedesse à reprodução integral da matéria assente e da base instrutória.
Os RR vieram dizer que apenas lhe foi enviada a matéria assente e a base instrutória por remissão, pelo que requereram nova notificação do despacho de fls. 40/42 com indicação da integralidade de tal matéria, o que foi indeferido.
Os RR interpuseram recurso de tal despacho, que foi recebido como agravo, com subida diferida.
Procedeu-se depois à audiência de julgamento, com gravação da prova determinada oficiosamente pela Mmª. Juíza, no final da qual foram dadas as respostas aos quesitos.
De seguida foi elaborada a sentença com a seguinte decisão:
"Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e condeno os RR a pagarem à Autora a indemnização de antiguidade no valor de Esc. 1.200.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde 2/02/98 até integral pagamento o bem como a quantia global de Esc. 33.791$00, relativa a retribuições e subsídios discriminados na alínea D) da matéria de facto provada. Absolvo os RR do demais peticionado."
Inconformados, os RR interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que no entanto, não conheceu do mesmo, por o ter por extemporâneo (despacho do Mmº. Relator de fls. 187/189, confirmado pelo acórdão de fls. 217/221, após reclamação para a conferência).
Irresignados, os RR agravaram para este Supremo Tribunal, que deu provimento ao recurso, deliberando que a Relação devia conhecer do objecto da apelação.
E foi o que esta fez através do seu acórdão de 14.5.03, que decidiu assim:
"Face ao exposto acorde-se:
em negar provimento ao agravo;
em julgar improcedente a apelação, confirmando-se as decisões recorridas".
Mais uma vez inconformada a Ré B interpôs recurso de revista, cujas alegações concluiu desta forma:
"1ª O douto Acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por errada apreciação, interpretação e valoração da matéria de facto dada como assente nas instâncias, em violação do artigo 712º do Código de Processo Civil;
2ª Com efeito, o douto acórdão recorrido, que absorveu a fundamentação da douta sentença, incorreu em erro manifesto, uma vez que aplica ao contrato de trabalho doméstico a noção de justa causa que o legislador estabeleceu para os demais contratos de trabalho no artigo 9º do Decreto-Lei nº. 64-A/89, de 27 de Fevereiro;
3ª Ora, estando em causa nestes autos o despedimento no âmbito do contrato de serviço doméstico, impunha-se ao julgador, aplicar o conceito de justa causa e valorá-lo nos termos dos nºs. 1 e 4 do artigo 29º do Dec.-Lei nº. 235/92, de 24 de Outubro, dispositivos que assim foram violados pelo douto acórdão em crise;
4ª Na verdade, o tribunal de 1ª instância decidiu e o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, acompanhou, que incumbia à Ré Recorrente provar que a Autora furtou a carteira da Ré mulher e que furtou várias quantias em dinheiro, em montantes e em momentos não discriminados.
5ª Ora, entende a Recorrente inexistir para si esse ónus, tendo em conta não se estar no âmbito do processo criminal, nem no âmbito de aplicação do artº. 9º do Dec.-Lei nº. 64-A/89, mas, sim no âmbito do contrato de trabalho doméstico, gerador de relações profissionais com acentuado carácter pessoal que postulam um permanente clima de confiança.
Havendo que tomar em consideração a especificidade económica dos agregados familiares e o regime especial da matéria em causa.
Tal como se sublinha no preâmbulo do Dec.-Lei nº. 235/92, de 24-10, e se refere nos nºs. 1 e 4 do artº. 29º do mesmo diploma;
6ª Esta especificidade releva desde logo do facto de o desaparecimento de grandes quantitativos em dinheiro ter instalado no ar um clima de mal estar e desconfiança (cfr. alínea MM) dos factos provados) que atingiu todos os familiares (cfr. alínea J) dos factos provados);
7ª Tendo ficado provada toda a factualidade inserta nas alíneas e), f), g), h), i), j), m), s) e z) e nas alíneas n), g) e p), todos os factos provados;
8ª E conjugando-se ainda com o facto de a Autora ter sido apanhado com a carteira na mão (alínea HH) dos factos provados) e ainda com o clima de mau estar e insegurança que se instalou em casa (alínea MM) dos factos provados);
9ª Impunha-se ao julgador decidir de uma única forma: pela subsistência da justa causa do despedimento;
10ª Na verdade, atenta a especial relação subjacente ao contrato de trabalho doméstico;
11ª A forte convicção pessoal com que os RR agiram - reconhecida pelo tribunal que a considerou provada (cfr. enquadramento jurídico em fls. 133) -;
12ª E até a convicção do Tribunal da justa causa do despedimento, não fora a falta da prova do furto, que erroneamente julgou imprescindível.
Sendo que esse entendimento resultou da não aplicação ao contrato de trabalho doméstico do nº. 1 do artº. 29º do Dec.-Lei nº. 235/92;
13º O douto acórdão recorrido fez errada aplicação dos poderes conferidos pelo artº. 712º do Cód. Proc. Civil, que assim foi violado;
14º O douto acórdão recorrido violou também a lei substantiva integradora das linhas programáticas do regime do contrato de trabalho doméstico, insertas no preâmbulo do Dec.-Lei 235/92 e ainda as normas dos nºs. 1 e nos artºs. 29º, 30º e 31º do mesmo diploma legal.
A Autora/Recorrida contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso.
A ré, ora recorrida, não contra-alegou, e, neste Supremo Tribunal de Justiça, o representante do Ministério Público emitiu parecer (fls. 92 a 96), no sentido de ser negada a revista, por considerar que a verificada demora no pagamento das remunerações, por parte da entidade patronal, não determinava, na situação concreta, uma imediata impossibilidade de manutenção da relação laboral.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto.
Vem dado como provada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:
"A) Em 15 de Setembro de 1986, a Autora foi contratada pelos Réus para, sob as ordens, direcção e fiscalização deles, e por tempo indeterminado, questão, no seu domicílio, a actividade profissional de empregada doméstica, mediante a contra-partida remuneratória mensal de, ultimamente, Esc. 100.000$00 - docºs. 1 a 7;
B) No dia 2/02/98, a Ré B rescindiu por escrito o vínculo laboral, alegando que a Autora Ré se tinha apropriado indevidamente de quantias pertencentes ao casal e tinha retirado, sem autorização, a carteira da Ré do interior, da sua bolsa - doc. 8;
C) Em resposta a tais acusações, de imediato a Autora as rebateu por escrito, conforme missiva enviada à R e que se junta como doc. 9, aqui dado por integralmente reproduzida por todos os legais efeitos;
D) A Autora tem a receber dos Réus:
Esc: 100.000$00, a título de férias vencidas em 1.1.98, relativas ao serviço prestado no ano anterior;
Esc: 100.000$00, a título de subsídio de férias respectivo;
Esc: 27.124$00, a título de partes proporcionais de férias, subsídios de férias e Natal, relativos ao período de vigência do contrato em 1988 (33 dias);
Esc: 106.667$00, a título de retribuição relativa ao mês de Janeiro e 2 dias de Fevereiro de 1998;
E) Há cerca de um ano que os Réus começaram a sentir que lhes desapareciam quantias indeterminadas de dinheiro;
F) Aquando da hospitalização da R. marido em Novembro de 1997, este procedeu ao levantamento da quantia de Esc. 40.000$00, que levou na sua carteira para o hospital;
Logo que internado, foi entregue à Ré mulher roupa e demais objectos pessoais do Réu;
A Ré mulher levou tudo para casa, tendo todo o cuidado de ver o conteúdo da carteira que arrumou na gaveta da mesa de cabeceira, verificando que nela havia 40 contos em dinheiro;
Na altura do regresso do marido do hospital, perto do Natal, a Ré mulher pegou na carteira para a entregar ao marido e, abrindo-a, constatou que nela havia tão só Esc. 5.000$00 (cinco mil escudos);
Na sequência do desaparecimento desta quantia - 35.000$00 (trinta e cinco mil escudos) - após o Natal, a Ré mulher reunia com a restante família, comunicar-lhe o desaparecimento de dinheiro da carteira do pai, constatando-se então que todos se tinham apercebido que desde há algum tempo lhes vinha desaparecendo dinheiro;
O Réu marido, nos últimos anos, procedia a um levantamento quinzenal de Esc. 40.000$00;
E apercebeu-se que, sem se alterarem as despesas ou hábitos familiares, há meses que havia passado a levantar semanalmente a quantia de Esc. 40.000$00;
O marido da A. comprou um carro novo de marca Honda Civic em Novembro de 1995;
A Autora comprou um carro usado de marca Opel Corsa em Setembro de 1997 e um carro usado de marca Renault Clio em Dezembro de 2000;
A Autora tirou a carta de condução em Novembro de 1996 e a filha dela em Outubro de 1995;
Em Janeiro de 1998, o agregado familiar da Autora tem o rendimento de esc. 253.463$00 (Esc. 100.000$00 da A. + Esc. 126.423$00 do marido + Esc. 27.040$00 da bolsa da filha);
O r. marido esteve de baixa por doença de 17 de Novembro de 1997 até 15 de Maio de 1998;
Antes da sua doença, a R. mulher saía de casa antes de a Autora entrar, e entrava em casa depois de a Autora sair;
À R. mulher não desaparecia dinheiro da respectiva carteira;
Durante a sua convalescença, o R. na vida, que estava quase sempre em casa, passou a ter na carteira uma quantia mínima de Esc.: 5.000$00 (cinco mil escudos).
Por outro lado, a R. mulher, por dar maior assistência ao marido, alterou os seus horários habituais, passando a sair mais tarde de casa e a entrar mais cedo;
Pousando habitualmente a sua bolsa no local de entrada dos quartos;
Constatando, que, por diversas vezes, desapareceram quantias várias;
AA) Os Réus tornaram-se mais cautelosos e atentos, tendo combinado tentar apanhar a Autora em flagrante;
BB) No dia 29/01/98 sem que a Autora soubesse, a R. ficou propositadamente em casa até mais tarde;
CC) Os RR habitam num duplex, situando-se o seu quarto, com a casa de banho, no nível superior;
DD) Da antecâmara do seu quarto, vê-se o hall de entrada dos quartos;
EE) Deixou nesse hall a sua bolsa;
FF) Pôs a água a correr como se estivesse tomando banho;
GG) E colocou-se na antecâmara, vigiando o hall de entrada;
HH) A R. mulher apanhou a Autora com a carteira daquela na mão;
II) Com um berro susteve a Autora enquanto correu ao seu encontro;
JJ) Diante dela, fez-lhe saber da indignidade do seu comportamento, o desgosto que isso lhe dava, mandando-a sair de casa;
LL) A Autora ficou lívida e silenciosa, excepto quanto a uma expressão de teor não apurado;
MM) O desaparecimento de grandes quantitativos em dinheiro fez instalar em casa um clima de mal estar e insegurança.
NN) A R. mulher exerce funções de grande responsabilidade - é directora do Instituto de Oceanografia, lecciona na faculdade de Ciências, estando presentemente a coordenar 2 equipas de um projecto de investigação - e tem ainda de prestar assistência ao marido e filhos, não dispondo, por isso, de tempo nem condições para assegurar o trabalho caseiro;
OO) Por isso, o despedimento da Autora - que há anos assegurava as tarefas domésticas dos Réus - causou um enorme transtorno a toda a família e à Ré mulher em particular;
PP) Os Réus puseram à disposição da Autora as importâncias relativas a férias, subsídio de férias, respectivos proporcionais, e retribuição devida".
Para melhor explicitação, deve referir-se que na carta de rescisão dada como reproduzida na antecedente alínea D), consta o seguinte:
Serve a presente para pôr termo ao contrato relativo ao trabalho doméstico que tem exercido em nossa casa. Desde há mais de 1 ano que temos vindo a constatar o desaparecimento em nossa casa, de quantias monetárias várias de dentro da carteira do meu marido e da minha carteira, desaparecimentos para os quais não encontrámos qualquer explicação. No passado dia 29 deste mês, surpreendi-a a retirar a carteira de dentro da minha bolsa, sem autorização. Confrontada com este estranho comportamento, não só não apresentou qualquer justificação como a sua reacção perante o que então lhe foi dito, nomeadamente a sua lividez, o seu silêncio comprometido e a sua falta de contestação, pareceu confirmar a sua responsabilidade nos referidos desaparecimentos.
O acto em que foi surpreendida no passado dia 29 e o comportamento descrito anteriormente, indicam que violou manifestamente o dever de fidelidade a que estava vinculada e quebrou de imediato e irremediavelmente a confiança que seria indispensável para continuar a trabalhar ao nosso serviço. Esta quebra de confiança foi sobretudo grave e chocante considerando toda a estima e proximidade decorrentes de vários anos de convivência com o nosso agregado familiar.
(...)"
No documento dado como reproduzido na alínea C) da matéria de facto, em que rebate a nota de culpa, a autora diz, no essencial, o seguinte:
"nego todas as acusações que me são feitas uma vez que peguei na carteira e coloquei-a em cima da mesinha do telefone como colocaria um lenço, um papel ou um outro objecto qualquer que encontrasse caído no chão.
Só me poderia acusar se me tivesse visto a abrir a carteira ou a colocá-la na minha bolsa. Quanto ao meu silêncio, este foi provocado pelo estado de choque em que fiquei ao ser acusada pela pessoa na casa de quem sempre fui fiel e em quem eu confiava e julgava que confiasse em mim. (...)"
3. Fundamentação de direito.
A única questão em debate no presente recurso consiste em determinar se, no caso, ocorreu a justa causa para a rescisão do contrato de serviço doméstico por iniciativa da entidade patronal.
A Relação respondeu negativamente, corroborando o juízo expresso pelo tribunal de primeira instância, considerando que nem a autora nem os réus provaram as suas versões relativamente ao evento invocado na nota de culpa e que teria constituído a causa próxima do despedimento, pelo que, em face das regras de repartição do ónus da prova, que oneram a entidade patronal, haveria de entender-se insubsistente o motivo da rescisão.
Recorde-se que a ré B havia rescindido o contrato, invocando que tinha surpreendido a autora, no dia 29 deste mês, "a retirar a carteira" de dentro da sua bolsa, sem autorização. A ré relacionou esse facto com outros desaparecimentos de dinheiro que outros membros da família tinham já verificado em situações anteriores, e denotou que a autora esboçou uma reacção comprometedora, quando confrontada com esse comportamento (a lividez, o seu silêncio comprometido e a sua falta de contestação), o que parecia confirmar a sua responsabilidade.
Todos esses factos foram levados à base instrutória, mas no tocante a saber se a trabalhadora tinha sido encontrada a retirar a carteira da bolsa, tal como se alegava na nota de culpa, e que constava do quesito 34º, o tribunal formulou uma resposta restritiva: Provado apenas que a ré mulher apanhou a autora com a carteira na mão.
Registe-se que também não se provou a versão que tinha sido contraposta pela autora, visto que ao quesito 1º, em que se perguntava se a autora se tinha limitado "a colocar a carteira na mesinha do telefone, como faria relativamente a qualquer outro objecto caído no chão", o tribunal respondeu Provado apenas o que resulta da resposta ao quesito 34º.
As instâncias quedaram-se na dúvida insanável quanto a este único aspecto de facto para concluir pela insubsistência da nota de culpa e dos motivos da rescisão, com base na estrita aplicação dos critérios de repartição do ónus da prova, e desvalorizando entretanto muitos outros factos que não poderiam deixar de relevar no quadro das relações de trabalho emergentes do contrato de serviço doméstico.
Senão vejamos:
- há cerca de um ano que os Réus começaram a sentir que lhes desapareciam quantias indeterminadas de dinheiro;
- numa ocasião em que o réu marido esteve hospitalizado, desapareceram 35.000$00 da sua carteira arrumada na gaveta da mesa de cabeceira;
- outros elementos da família se aperceberam-se de que desde há algum tempo lhes vinha desaparecendo dinheiro;
- O réu marido que, nos últimos anos, procedia a um levantamento quinzenal de esc. 40.000$00, apercebeu-se que, sem se alterarem as despesas ou hábitos familiares, há meses que havia passado a levantar essa mesma quantia semanalmente;
- a ré mulher, antes da doença do marido, saía de casa antes de a Autora entrar, e entrava em casa depois de a Autora sair;
- verificando-se que ela não desaparecia dinheiro da carteira;
- desaparecimento de grandes quantitativos em dinheiro fez instalar em casa um clima de mal estar e insegurança.
É legítimo aceitar que todo este circunstancialismo pusesse em causa a relação de confiança entre os réus e autora, até porque não é normal, segundo as regras de experiência comum, que desapareceram continuamente grandes quantidade de numerário do interior da casa de morada da família por simples descaminho ou extravio, e sem directa interferência de terceiros.
Por outro lado, outros factos dados como assentes, ainda que não tivessem sido suficientes para permitir às instâncias inferir que a autor subtraiu dinheiro da carteira da ré (e que o Supremo está impedido de sindicar face aos seus poderes de cognição de que dispõe em matéria de facto), eles não deixam de fornecer indicadores precisos quanto a ao clima de insegurança que se instalou no seio familiar.
A ré B preparou minuciosamente um plano que lhe permitisse surpreender a autora a subtrair dinheiro da sua carteira (o que desde logo indicia o forte sentimento de desconfiança que a animava relativamente à trabalhadora). E assim, como está provado, um dia (29 de Janeiro de 1998), sem que a Autora soubesse, ficou propositadamente em casa até mais tarde, deixou a sua bolsa no hall de entrada, pôs a água a correr como se estivesse a tomar banho, e colocou-se na antecâmara vigiando o hall, tendo então apanhado a autora com a carteira na mão (embora se não provasse, como alegou, que a tivesse encontrado a subtrair a carteira da bolsa).
Como resulta também da matéria de facto, a ré, de imediato, "com um berro susteve a Autora enquanto correu ao seu encontro e "diante dela, fez-lhe saber da indignidade do seu comportamento, o desgosto que isso lhe dava", perante o que "a autora ficou lívida e silenciosa".
Todos estes factos, ainda que não tenham sido bastantes para integrar o tipo legal de crime de furto, e especialmente o seu elemento intencional, como pondera a Relação, não poderão deixar de ser analisados no contexto da relação laboral, pois o interessa considerar, no caso, é, não a sua relevância jurídico-penal, mas a sua conformação e adequabilidade como motivo de despedimento.
No preâmbulo do Decreto-Lei nº .235/92, de 24 de Outubro, que estabelece o regime das relações de trabalho de serviço doméstico, sublinha-se, para justificar a necessidade de um novo tratamento legislativo da matéria, que "a circunstância de o trabalho doméstico ser prestado a agregados familiares, e, por isso, gerar relações profissionais com acentuado carácter pessoal que postulam um permanente clima de confiança, exige, a par da consideração da especificidade económica daqueles, que o seu regime se continue a configurar como especial em certas matérias."
Um dos aspectos que, em concretização desse propósito, apresentam significativa especificidade relativamente à lei geral é precisamente o regime de rescisão com justa causa, vertido no artigo 29º desse diploma, que prescreve:
"1 - Constitui justa causa de rescisão qualquer facto ou circunstância que impossibilite a manutenção, atenta a natureza especial da relação em causa, do contrato de serviço doméstico.
2 - Ocorrendo justa causa, qualquer das partes pode pôr imediatamente termo ao contrato.
3 - No momento da rescisão do contrato devem ser referidos pela parte que o rescinde, expressa e inequivocamente, por escrito, os factos e circunstâncias que a fundamentem.
4 - A existência de justa causa será apreciada tendo sempre em atenção o carácter das relações entre as partes, nomeadamente a natureza dos laços de convivência do trabalhador com o agregado familiar a que presta serviço."
Como se depreende do disposto nos nºs. 1 e 4 deste preceito, não só o conceito de justa causa é adaptado à natureza especial da relação em causa, como também a própria apreciação em concreto da justa causa deverá efectuada em atenção o carácter das relações entre as partes, nomeadamente a natureza dos laços de convivência do trabalhador com o agregado familiar a que presta serviço.
Isto significa que os motivos para o despedimento terão de ser avaliados num contexto específico, em que sobreleva a particular relação de confiança que deverá existir entre as partes, e que - supõe-se - deverá pautar-se por um maior grau de exigência no cumprimento dos deveres de lealdade e de fidelidade e que, além do mais, deverá revelar-se, não apenas no plano objectivo, mas também no plano subjectivo.
Ora, no caso dos autos, o sentimento de desconfiança existente no seio familiar relativamente à trabalhadora intensificou-se a ponto de ter gerado um ambiente de mal estar e insegurança e de ter impelido a ré B a idealizar um esquema de vigilância que lhe permitisse testar a honorabilidade da trabalhadora.
Estes elementos de facto encontram-se provados e constam da nota de culpa e são suficientes para justificar o despedimento, na perspectiva, há pouco analisada, de que na determinação da justa causa de rescisão, num contrato de trabalho relativo à prestação de serviço doméstico, deverá atender-se não só ao grau de lesão dos interesses do empregador (supondo, como concluíram as instâncias, que se não obteve a prova da lesão patrimonial), mas ao carácter das relações existentes entre as partes.
Seria de facto intolerável para a vivência familiar que o empregador tivesse prolongar uma relação laboral que tinha ficado irreparavelmente abalada pela perda de confiança e pela dúvida quanto à idoneidade futura da trabalhadora.
Haverá de concluir-se, portanto, pelo provimento do recurso.
4. Decisão
Em face do exposto, acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a acção.
Custas no recurso e na acção pela recorrida.
Lisboa, 9 de Março de 2004
Fernandes Cadilha (relator por vencimento)
Mário Pereira
Salreta Pereira
Paiva Gonçalves
Ferreira Neto (vencido, de acordo com a declaração anexa)
_______________
VOTO DE VENCIDO
O projecto que apresentei, como relator inicial, ia no sentido de negar a revista.
Expliquemos porquê.
Segundo a alínea B) da matéria de facto assente, no dia 2.2.98 a Ré B rescindiu por escrito o vínculo laboral que a ligava à Autora, alegando que esta se tinha aproveitado indevidamente de quantias pertencentes ao casal e retirado, sem autorização, a carteira da Ré do interior da sua bolsa.
A acção intentada pela Autora, no seu sentido de ser declarado ilícito o seu despedimento, foi julgada procedente em ambas as instâncias, nesse âmbito.
É que não ficou provado nada do que, segundo a supracitada alínea, constituía a fundamentação da rescisão, cujo ónus cabia à Ré.
Tão só se apurou que a Ré vira a Autora com a sua carteira na mão.
No recurso para a Relação bem pugnou a Ré para que fosse extraída a ilação, a partir dos factos provados, de que a Autora se apropriara deveras de quantias diversas e da sua carteira, mas aquela instância negou-se a tal.
E não pode agora este Supremo Tribunal chegar, em tal âmbito, a conclusão diversa (artº. 722º, nº. 2, e 729º, nº. 2, do CPC).
E não pode ainda, por si só - o que, aliás, em rigor, nem enforma os fundamentos da rescisão - o facto de a Ré ter visto a Autora com a sua carteira na mão, em circunstâncias não completamente esclarecidas, justificar a ruptura da relação laboral.
Isto pese embora a ambiência em que se move o contrato de serviço doméstico, mas que não deve servir para justificar despedimentos perante meras desconfianças e/ou comportamentos do trabalhador de escassa ou nula gravidade.
Para mais, mesmo face a insubsistente justa causa, a paz doméstica não tem que ser quebrada, pois que a reintegração não é obrigatória (v. artº. 31º do Dec-Lei Nº. 235/92, de 24.10).
Ferreira Neto