ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
PARTE INTEGRANTE
LOGRADOURO
Sumário

1. As arrecadações (antigas "carvoeiras") dos prédios para habitação e os logradouros que lhes dão acesso, constituem partes integrantes do arrendamento para habitação, desde que afectos ao arrendamento e como tal arrendados, desde o inicio do contrato, ainda que na primeira metade do século XIX.
2. A circunstância de as "carvoeiras" caírem em desuso, não significa que, cabendo-lhes usos sucedâneos, e como tal utilizados, esses locais deixem de integrar o arrendamento habitacional, no presente.
3. A violação, pelo senhorio, do direito ao arrendamento integrante desse locado, constitui-o na obrigação de indemnizar o lesado/inquilino, pelos danos causados.
4. Se estes danos forem reconhecidos pela decisão condenatória, mas, nessa altura, não estiverem ainda quantificados, poderão ser liquidados em execução da sentença que reconheceu a obrigação de os indemnizar ao lesado/inquilino.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I- Razão da revista
1. "A", viúva, moradora na Praça de Londres, nº. ..., em Lisboa;
B, e sua mulher, C, ambos residentes na Praça de Londres, nº. ..., Lisboa;
D e sua mulher E, ambos moradores na Praça de Londres, nº. ..., Lisboa.
F, viúva, moradora na Praça de Londres, nº. ..., ainda em Lisboa, vêm propor a presente acção declarativa de condenação, contra:
G, divorciada, residente na Praça de Londres, nº. ..., em Lisboa.

2. Alegam, em síntese, o seguinte:
Os Autores são inquilinos do prédio sito na Praça de Londres, nº. ..., em Lisboa, prédio de que a Ré é proprietária.
Desde o início dos respectivos contratos de arrendamento, cada um dos Autores usufruiu o andar que tomou de arrendamento, bem como o logradouro do prédio e uma arrecadação autónoma, uma por cada fogo, construída naquele logradouro.
A renda acordada abrangia os três elementos: andar, logradouro e arrecadação.
Sucede que, na segunda quinzena de Agosto de 1999, quando estavam a gozar férias fora de Lisboa, e sem aviso prévio, nem justificação, a Ré começou por mudar a chave de acesso ao logradouro, sem fornecer duplicado daquela aos inquilinos. E, no dia 23 de Agosto de 1999, a Ré mandou arrombar as referidas arrecadações, onde os Autores tinham os seus bens, que desapareceram.
Os Autores pedem que a Ré seja condenada:
- A reparar os Autores pelo valor dos bens que desapareceram, em consequência da destruição das arrecadações correlativas aos andares arrendados, na base de 250.000$00, para a primeira Autora; 300.000$00, para os segundos Autores; 230.000$00, para os 3ºs. Autores e 100.000$00, para a 4ª Autora;
- A reparar os Autores pelos danos morais e materiais que lhes causou a privação do uso do logradouro do prédio, desde Agosto de 1999, até ao restabelecimento da situação que, até aí, sempre existiu, danos esses a liquidar em execução de sentença;
- A reparar os Autores pelos danos morais e materiais que lhes causou e vier a causar, pelo custo e incómodo do aluguer de espaço equivalente, nas redondezas do prédio, por período que decorrer até à reposição do status quo ante, também a liquidar em execução de sentença que vier a ser proferida.
- A restituir aos Autores a posse do logradouro, das arrecadações e suas chaves.

3. A Ré veio contestar, excepcionando a ineptidão da petição inicial. Alega ainda, que os Autores eram meros detentores ou possuidores precários dos espaços a que chamam arrecadações e que, na verdade, eram carvoeiras. Não tinham qualquer direito a utilizar tais espaços.
Dos contratos de arrendamento, juntos pelos autores, resulta a omissão total do uso de qualquer arrecadação/carvoeira ou de logradouro.
A Ré nega também que os Autores guardassem nessas arrecadações quaisquer bens com valor mesmo que diminuto. Nas referidas arrecadações, encontravam-se apenas objectos sem qualquer utilidade, e até constituíam um perigo para a saúde pública por serem um potencial foco de incêndio e abrigo de ratos e ratazanas.

4. A sentença decidiu assim:
a) Condenou a Ré a pagar aos Autores uma indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor dos objectos destruídos e que se encontravam nas arrecadações demolidas;
b) Condenou a Ré a restituir a posse aos Autores relativamente ao logradouro do prédio de que são locatários, entregando-lhes a chave de acesso ao mesmo, bem como das arrecadações, procedendo à sua reconstrução.
c) Absolveu a Ré dos restantes pedidos de indemnização formulados.

5. Apelaram autores e ré.
E a Relação de Lisboa julgou assim as apelações, na parte que interessa:
Concedeu provimento parcial ao recurso de apelação da Ré e, em consequência:
a) Revogou a sentença recorrida, na parte em que condenara a Ré a restituir a posse, quer do logradouro, quer das arrecadações - bem como à reconstrução destas e à entrega das chaves (de acesso ao logradouro) - e, por isso, absolveu-a de tais pedidos.
b) Confirmou a parte restante da sentença (a parte indemnizatória a liquidar em execução de sentença).

7. Pedem revista os autores e a ré, fundamentando o pedido nas seguintes

CONCLUSÕES:
As dos autores:
1ª- O fundamento específico do presente recurso de revista é a violação da lei substantiva, por erro de interpretação e de aplicação, e ainda erro de determinação da norma aplicável.
2ª- Os recorrentes são inquilinos da recorrida que, ela própria, vive no mesmo prédio, são inquilinos há mais de 50 anos, ao abrigo de contratos, então assinados, e cujos títulos instruem o processo.
3ª- Contratos que não mencionavam expressamente o logradouro e as arrecadações (uma por cada fogo), sendo que a descrição predial feita na Conservatória do Registo predial e inscrição matricial mencionam o logradouro.
4ª- No acto da celebração dos contratos de arrendamento para sua habitação foram entregues aos inquilinos as chaves de acesso ao logradouro e às arrecadações.
5ª- O logradouro e as arrecadações são parte integrante do prédio - artºs. 204º-2 e 206º-1 do Cód. Civil - têm com este destino unitário, e aqueles não têm autonomia económica.
6ª- Desde os arrendamentos, e até ao Verão de 1999 (cerca de 50 anos) os inquilinos/recorrentes têm usufruído pacificamente logradouro e arrecadações.
7ª- Elementos do prédio de que foram esbulhados no Verão de 1999, altura em que a recorrida demoliu as arrecadações, alterou a fechadura do acesso ao logradouro e àquelas arrecadações e não forneceu aos recorrentes as respectivas chaves.
8ª- Sempre os inquilinos pagaram uma renda única que abrangia a retribuição pelos três elementos do prédio de que usufruíram, a habitação, as arrecadações e o uso do logradouro.
9ª- Os anteriores proprietários do prédio (a recorrida é o terceiro) sempre reconheceram que os recorrentes/inquilinos tinham direito à fruição do logradouro e à correlativa arrecadação e que a renda única abrangia estes três elementos, habitação, logradouro e arrecadação.
10ª- A recorrida pretendeu modificar a economia do contrato de locação demolindo as arrecadações e vedando o acesso ao logradouro;
11ª- Praticou esbulho da posse destes dois elementos componentes do prédio, em prejuízo dos seus inquilinos;
12ª- Não lhe era lícito fazê-lo, pois não pode modificar unilateralmente a economia do contrato e a economia que sempre se transmitiu pelos proprietários anteriores;
13ª- Atentou contra o direito dos seus inquilinos que tem direito à fruição destes dois elementos que são parte integrante do prédio que habitam, há mais de 50 anos.
14ª- O acervo de direitos, inerentes à locação que contrataram com o então proprietário do prédio, abrange estes dois elementos, partes componentes do prédio (cfr. conclusões 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 9ª).
15ª- A posse do logradouro e arrecadações radica no direito de locação em que, desde o início estiveram investidos os inquilinos recorrentes, e não em mera tolerância do senhorio, pois se assim foi sempre entendido por aqueles e pelas partes (senhorio e inquilinos) no contrato, situação jurídica transmitida à senhoria actual.
16ª- Em qualquer caso, a situação da posse por cinquenta anos confere aos inquilinos o direito à sua confirmação enquanto subsistir a locação - artºs. 1287º e segs. do Cód. Civil.
17ª- Ao tempo em que pretendeu alterar a economia dos contratos que lhe foi transmitida pelo segundo proprietário do prédio, a recorrida nem sequer pensou em que, então, teria de agir em conformidade com o disposto no artº. 7º-1, do RAU, aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15 de Outubro, que estabelece que o contrato de arrendamento deve ser celebrado por escrito, formalismo que necessariamente se terá de aplicar à modificação do mesmo;
18ª - E não ponderou a mesma senhoria que já o era há mais de 5 anos, e só poderia resolver (se tivesse direito a isso, o que senão concede) a integralidade da situação dentro de um ano, a contar do conhecimento da situação - artigo 65º-1 do RAU, aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15 de Outubro.
19ª- De tudo o que antecede, resulta que o Tribunal da Relação de Lisboa violou os artºs. 204º-2, 206º-1, 236º-1 e 2, 406º-1, 1022º, 1031º, al. b) , 1037º-1 e 2, 1276º, 1277º e 1287º, e segs. do Código Civil, 7º-1 e 65º-1 do RAU, aprovado pelo DL. 321-B/90, de 15 de Outubro, e 65º-1 da Constituição da República Portuguesa.
20ª- Assim, esperam os recorrentes seja dado provimento ao recurso de revista, com todas as consequências.

CONCLUSÕES - DA RÉ, G:
1ª- O acórdão recorrido manteve a decisão da Primeira Instância no que respeita à condenação da recorrente no pagamento de uma indemnização aos autores, correspondente ao valor dos objectos destruídos e que se encontravam nas arrecadações demolidas.
2.ª- Tendo como referência o mês de Agosto do ano de 1999, data em que as arrecadações foram demolidas, não foi produzida qualquer prova da existência de quaisquer bens no interior das mesmas.
3ª- Pelo que, não foi provada a existência de qualquer dano, e, por isso, a ora recorrente, não é responsável pelo pagamento de qualquer indemnização.
4ª- O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 483º do Código Civil.
5.ª- O acórdão recorrido é manifestamente conclusivo já que do mesmo resulta que a ora recorrente é condenada a pagar uma indemnização "pela forma como foi posto fim à utilização do logradouro e arrecadações".
6ª- No entanto, o acórdão recorrido não especifica qual a forma reprovável e que origine uma obrigação de indemnização.
7ª- Na verdade, o acórdão recorrido limita-se a referir que é natural que, a ora recorrente, seja condenada a indemnizar.
8ª- Assim, o acórdão é nulo, porque não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão nessa parte, o que se invoca nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 668º, número 1, alínea b), aplicável por remissão do artigo 716º, número 1, ambos do Código de Processo Civil.
9ª- A fundamentação para a qual, o acórdão recorrido remete, ou seja, a fundamentação da douta sentença da Primeira Instância é a que consta do artigo 1284º do Código Civil.
10ª- Ora, o disposto no artigo 1284º do Código Civil, prevê a obrigação de indemnizar prejuízos e encargos decorrentes da restituição da posse e quando há esbulho.
11ª- No caso dos presentes autos, a recorrente não está obrigada a restituir a posse dos recorridos, nem o esbulho, e, por isso, não há que aplicar esse preceito legal.
12ª- Assim, o acórdão recorrido aplicou erradamente o disposto no artigo 1284º do Código Civil;
13ª- Também, nesta parte, o acórdão recorrido é nulo, porque os seus fundamentos encontram-se em oposição com essa parte da decisão, porque, por um lado, entendeu-se que a recorrente não devia ser condenada a restituir a posse e que não houve qualquer esbulho; e, por outro lado, considera-se que deve pagar uma indemnização por prejuízos e encargos decorrente da restituição e pelo esbulho.
14ª - Nulidade esta que se invoca nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 668º, número 1, alínea c), aplicável por remissão do artigo 716º, número 1, ambos do Código de Processo Civil.
15ª- Deverá, portanto, conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e, consequentemente, absolver a recorrente do pedido de indemnização.
III- Os Factos
1- Os AA. são inquilinos do prédio da Praça de Londres, nº. ..., em Lisboa, prédio de que a Ré é proprietária, e identificado nos documentos de fls. 48-52 e 55-57.
2- A 1ª Autora, do ..., é inquilina desde 1 de Setembro de 1948, por efeito de contrato de arrendamento, celebrado em 25 de Agosto de 1948, entre o então proprietário e o seu falecido marido, tendo sido transferidos para ela e por morte daquele, os respectivos direitos locativos.
3- Os 2ºs. Autores, do ..., desde 1 de Maio de 1951, por efeito e ao abrigo do arrendamento, celebrado em 2 de Abril de 1951, entre o Autor marido e o então proprietário do prédio.
4- Os 3ºs. Autores, do ..., desde 1 de Julho de 1949, por efeito e ao abrigo do contrato de arrendamento celebrado, entre o então proprietário do prédio e o Autor marido, em 22.06.1949.
5- A 4ª Autora, do ..., desde 1 de Julho de 1951, por efeito e ao abrigo do contrato de arrendamento, celebrado em 17 de Junho de 1951, entre o então proprietário e o falecido marido dela, H.
6- Em Agosto de 1999, a Ré mandou demolir as arrecadações existentes no logradouro do prédio.
7- Mudou a chave de acesso ao logradouro, sem fornecer um duplicado daquela que permitisse o acesso ao logradouro e arrecadações, por parte dos inquilinos, e ora Autores.
8- Aos Autores foi remetida a carta com o teor constante do documento de fls. 23, dando-lhes conhecimento da situação removida.
9- Desde o início dos respectivos contratos de arrendamento, cada um dos Autores usufrui o andar que tomou de arrendamento, bem como o logradouro e uma arrecadação nele existente.
10- Na arrecadação que a Ré mandou demolir, a 1ª Autora guardava objectos cuja identificação e valor não foram concretamente apurados.
11-Numa outra arrecadação que a Ré mandou demolir, os 2ºs. Autores guardavam, além de outros objectos, garrafas de vinho, cujo valor não foi concretamente apurado.
12- Noutra arrecadação que a Ré mandou demolir, os 3ºs. Autores guardavam objectos, cuja identificação e valor não foram concretamente apurados.
13- Noutra arrecadação que a Ré mandou demolir, a 4ª Autora guardava objectos cujo valor não foi concretamente apurado.
14- Esteve afixado no prédio, de 19 de Agosto de 1999, a 25 de Agosto de 1999, um aviso onde se dava notícia de que iam ser demolidas as carvoeiras localizadas no logradouro do prédio.

IV- Questão a resolver e direito aplicável
1. A questão a resolver consiste em saber, se as arrecadações, que foram arrombadas, e o logradouro que lhes dá acesso, integram, ou não, o objecto negocial mediato, dos contratos de arrendamento para habitação de que são titulares, cada qual dos autores.
Depois, se verá, se há lugar, ou não, a alguma indemnização pelos danos causados aos autores com a demolição das arrecadações e com o impedimento do acesso correspondente.
É o que vamos avaliar, para o que se terá em conta a parte nuclear - de facto e de direito - que resulta do conjunto das conclusões dos autores e da ré, e que atrás ficaram transcritas, por inteiro.
2. Os arrendamentos que estão em causa duram há mais de cinquenta anos.
Datam todos de 1948/1949.
E as "carvoeiras" (como assinala a ré) eram os locais das habitações onde se armazenava, então, a indispensável fonte de energia para aquecimento, cozinha, ou mesmo iluminação das casas (1).
Este registo da história ajuda a perceber que as arrecadações e o logradouro que lhes dá acesso constituíam uma utilidade fundamental da casa e, consequentemente, não podiam deixar de integrar o conjunto das utilidades habitacionais a que se destinava o arrendamento das casas para habitação, especialmente, e então, nas cidades de Lisboa e Porto.
Particularmente, em certas zonas da cidade, como era o caso da Praça de Londres, em Lisboa.
É uma observação ponderativa que não exige qualquer técnica jurídica de subtileza interpretativa dos contratos de arrendamento que estão juntos ao processo, quer ela se faça ao abrigo do Código Civil ou da "Lei do Inquilinato", vigentes ao tempo em que nasceram esses contratos, quer ao abrigo do Código actual ou da "Lei do Arrendamento Urbano", como outros trajectos legais em que a sua existência, subsistência e validade, ainda vêm a cruzar, no presente.
As arrecadações (deixemos agora a designação das "carvoeiras") (2) correspondem a utilidades essenciais à própria habitação.
Não podem deixar de fazer parte do objecto negocial do arrendamento, na circunstância da época e do local.
Correspondem a necessidades elementares da habitação. Continham-se no gozo normal e temporário da coisa locada, para empregar palavras da lei, quando define o arrendamento urbano, para habitação, agora, como então.
Para tanto, os inquilinos dispunham de chaves, entregues pelo senhorio antigo, de ingresso ao locado e utilizavam-no com vista a preencher essa necessidade da vida quotidiana dentro de suas casas.
Correspondiam a um destino unitário, careciam de autonomia económica isolada, implicavam, inevitavelmente a par do habitáculo, propriamente dito, uma renda única.
Se, então, o destino das arrecadações era a guarda do carvão (que, naturalmente, não era razoável pôr-se na despensa, junto da cozinha - que até dificilmente teria despensa própria) hoje, as mesmas arrecadações, servem (ou podem servir) para o depósito da lenha, da caldeira do gasóleo, da botija do gás, ou até das garrafas do vinho, como sugestivamente vem dado como provado (Ponto 11).
São complementos indispensáveis ao uso habitacional do andar, mais ou menos utilizáveis, consoante a "circunstância" do inquilino, mas sempre aptos, ou potencialmente aptos, e indispensáveis, à satisfação de necessidades essenciais àquele uso.
Acodem à lembrança, e neste mesmo propósito, as palavras de Larenz, quando diz que «A lei vale na verdade, para todas as épocas, mas em cada época da maneira como esta a compreende e aplica, segundo a sua própria consciência jurídica» (3).
E contemplando pensamento semelhante o artigo 9º, nº. 1, do Código Civil, manda ter em conta na interpretação, entre outras, «... as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».

3. Sem esforço se conclui, que as arrecadações e os logradouros que lhe servem de caminho de acesso, são partes integrantes dos locais arrendados para habitação, satisfazendo uma necessidade própria inerente a ela, e como tal indissociável.
Só mudou o carvão. Não mudou, nem a necessidade, nem a utilidade habitacional, como parte funcional, integrante do arrendamento.
O tipo, ou mesmo, a espécie das coisas arrecadadas, isto é, o armazenamento, o depósito ou a guarda, é que poderão ser de outros produtos, preenchendo outras utilidades ou necessidades da habitação dos locatários - presentes ou futuras.
Nem deve impressionar o estado de desuso em que este locado, ou menos, parte dele, se encontra (fala-se em ratos e ratazanas).
A menos que tal direito se possa perder, ou ter-se perdido, a outro título. Mas por certo, e entretanto, não é o titulo que vem invocado pela ré, na acção donde emerge a revista, como meio de recuperação do seu alegado direito, nem consequentemente, como instrumento de formulação do objecto da revista proposta pela ré.
A qualquer momento a utilização pode ser activada, havendo mesmo a prova do uso da arrecadação, como se disse, para garrafas de vinho, que foram danificadas em uma das arrecadações, e da existência dentro das arrecadações, de alguns objectos cujo valor não foi possível apurar, ao tempo da acção. (Ponto 10,11,12 e 13).

4. E é aqui que se discute a outra questão já enunciada: a do prejuízo. (Aludidos pontos 10 a 13).
Não se fez prova de verificação concreta de qualquer prejuízo, salvo o caso das garrafas de vinho, e dos objectos danificados com a demolição das arrecadações, cujo valor não vem quantificado.
Há danos, ao contrário do que dizem as conclusões 1ª a 6ª da ré, mas não estão calculados.
Verificou-se, isso sim, uma violação ilícita do direito dos autores, emergente dos correspondentes contratos de arrendamento, por força das disposições conjugadas dos artigos 483º-1 (o facto ilícito) e 1284º (os prejuízos sofridos pela turbação ou esbulho) do Código Civil, para indicar os mais visíveis preceitos sobre matéria jurídica da ofensa.
Não estando determinado o valor quantificado do prejuízo (pontos 12 e 13), a condenação não pode ser em quantia certa, mas apenas no que, porventura, se venha a apurar em liquidação de sentença.
Não se verificam, nem são sustentáveis, face ao exposto, as nulidades referidas nas conclusões 8ª a 14ª da recorrente.

5. Que é como quem diz que, as arrecadações e os logradouros que lhes dão acesso constituem parte integrante, e indissociável, do andar, objecto mediato do contrato de arrendamento urbano para habitação, de que é titular cada qual dos autores.
A demolição do locado e a perturbação do seu uso normal e pacífico, constitui um facto ilícito que obriga a indemnizar os danos causados aos ofendidos/autores, segundo a regra geral contida no artigo 483º-1, do Código Civil.
Estando verificados esses danos, embora careçam de determinação quantitativa, a sua liquidação poderá fazer-se posteriormente, em execução de sentença condenatória, reconhecedora da obrigação de indemnizar, como aliás vem solicitado pelos autores (ponto 2, Parte I) e havia decidido a 1ª instância [alíneas: a) e b), do ponto 4, da Parte I].

V- Decisão
Termos em que, sem necessidade de maiores, explanações se revoga a decisão recorrida, mantendo-se a decisão de Primeira Instância. [Alíneas a) e b), do ponto 4, Parte I].
Custas pela recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2004.
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) O enquadramento geral europeu da época, talvez beneficie a compreensão histórica que ocorre nesta passagem do texto. Referimo-nos à disputa pelo controle das fontes de energia, que deu lugar a duas guerras mundiais, terminando as tensões europeias, que as originaram e que atravessaram a primeira metade do século 19, com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, (O Tratado de Paris, assinado nesta cidade, em 18 de Abril de 1951, e em vigor, desde 25 de Julho de 1952).
Sobre a génese das Comunidades Europeias, Professor Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 2ª edição, 2001, páginas 19 e seguintes.
(2) O carvão vendia-se, diariamente, como o pão, o leite, ou o peixe (lembrem-se: as varinas), sendo as carvoeiras, entre outras, figuras típicas da cidade de Lisboa, como ainda hoje são lembradas por um saudoso autor musical, particularmente numa canção popular, muita conhecida, em homenagem às mulheres vendedoras do carvão na cidade de Lisboa.
(3) Citação do Professor Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, páginas 191 - Almedina 1983.