PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SIMULAÇÃO
INTENÇÃO DAS PARTES
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
NEGÓCIO CONTRA A ORDEM PÚBLICA
Sumário

I. Integra matéria de facto, do foro exclusivo das instâncias, a indagação, a pesquisa e o apuramento da intenção dos contraentes ou outorgantes em determinado negócio jurídico, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante e qual a vontade deste.
II. Para a existência de simulação, exige a lei divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o intuito de enganar ou iludir terceiros («animus decipiendi»), e acordo simulatório («pactum simulationis») - artº 240º, nº 1, do C. Civil.
III. Na simulação absoluta as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum: na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e na realidade querem um outro negócio de tipo ou conteúdo diverso.
IV. A venda de imóveis simulando um preço inferior ao preço real para prejudicar a Fazenda Nacional ou simulando um preço superior ao real para prejudicar um preferente constitui simulação relativa.
V. O negócio simulado (simulação absoluta) é nulo - artº 240º do C. Civil.
VI. Na simulação relativa o negócio real ou dissimulado será objecto do tratamento que lhe caberia caso tivesse sido concluído sem dissimulação: plenamente válido e eficaz ou inválido, consoante as consequências que teriam lugar se tivesse sido abertamente concluído - apreciação de carácter casuístico face à prova adrede produzida.
VII. O valor probatório pleno do documento autêntico respeita tão-somente aos factos que nele se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora - artº 371º, nº 1 do C. Civil.
VIII. Não pode considerar-se que o contrato-promessa - onde se ache vertido o preço real e cujo cumprimento integral o contraente promitente reclame - possua um objecto contrário à lei (imperativa) só por que os seus outorgantes resolveram convencionar (futuramente) a celebração do negócio jurídico (escritura do negócio definitivo) com atribuição de um preço não correspondente ao que realmente possuíam em mente.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" instaurou, com data de 26-1-01, acção ordinária contra B e mulher C, solicitando se declarasse que:
- o preço real da cessão da quota com o valor nominal de 5.250.000$00, de que era titular no capital social da firma "D ", e cedida ao Réu marido, fora o de 17.500.000$00;
- o preço real acordado para a referida cessão, e que o réu marido se obrigou a pagar-lhe, era o constante do contrato promessa de cessão de quotas de 30-2-98;
- na escritura de cessão de quotas de 28-4-98 celebrada no 7° Cartório Notarial do Porto, o preço por que a quota era cedida ao réu marido, bem como a declaração de que o mesmo tinha sido recebido pela demandante, eram declarações meramente formais que não correspondiam à vontade real das partes, subsistindo, como reais e únicas, quanto ao preço por que a cessão era feita e a forma do seu pagamento, as declarações constantes do contrato promessa de 30-3-98, e que o réu marido, confessando-se devedor, se obrigou a pagar-lhe;
- a falta de pagamento da quantia de 130.208$00, no dia 8-10-00, da responsabilidade do réu marido, teve como consequência que, quanto a ele, se considerassem vencidas as prestações restantes;
E ainda se condenassem os RR:
- a pagar-lhe a quantia de 11.848.928$00, quantia esta correspondente ao preço que faltaria liquidar pela cessão da quota do valor nominal de 5.250.000$00;
- a pagar-lhe os juros de mora vencidos, no montante de 211.306$00, e vincendos.
Invocou, para tanto, e resumidamente, o seguinte:
- prometeu dividir uma quota que possuía na firma "D" em quatro quotas e ceder cada uma delas a outras tantas pessoas que identifica, entre elas o ora Réu, sendo o preço desta acordada cessão o de 17.500.000$00 e o sinal de 1.875.000$00, que recebeu, ficando ainda combinado que aquele pagaria uma prestação mensal de 130.208$00;
- foi efectuada a referida cessão de quotas, em cuja escritura ficou a constar que a demandante declarou ceder a dita quota por preço igual ao seu valor nominal e já ter recebido o preço, o que não correspondia à verdade, sendo que o preço real e as condições da cessão acordadas foram as que constam do contrato promessa;
- o réu marido, no mês de Outubro de 2000, deixou de pagar a prestação mensal a que estava obrigado, o que implicou o vencimento de todas as demais prestações, sendo, por isso, devedor da quantia de 11.848.928$00, da responsabilidade de ambos os demandados, casados entre si e que contraíram a dívida em proveito comum do casal.
2. Contestaram os RR, os quais, para além de suscitarem as excepções dilatórias de preterição de litisconsórcio necessário e da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, sustentaram que a diferença entre o valor do contrato- promessa e do contrato prometido era resultante de empréstimos efectuados pela A. à sociedade "D" antes da cessão, sem qualquer suporte documental e de que nenhum dos cessionários tirou proveito, tendo ainda sido acordado que esta firma liquidaria as prestações mensais em causa, o que fez até Setembro de 2000, dado, neste mês, o réu marido ter sido compelido a afastar-se da sociedade.
Simultaneamente, deduziram o incidente de intervenção acessória provocada desta firma, o qual viria a ser indeferido.

3. Houve réplica.

4. No saneador, o Mmo. Juiz «a quo» julgou improcedentes as alegadas excepções.

5. Procedeu-se a julgamento com gravação da prova e, por fim, tendo o Mmo. Juiz do Círculo Judicial de Gondomar, por sentença de 12-2-03, julgado a acção totalmente improcedente, absolvendo, em consequência, os RR do pedido.

6. Inconformada, apelou a A. tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 6-10-03, concedido parcial provimento ao recurso e, consequentemente, revogado a sentença recorrida, declarando que o preço real da quota social da firma "D" cedida ao Réu marido era de 17.500.000$00, preço que este se obrigara a liquidar, e condenando-se ainda este demandado a pagar à A. a quantia de 11.848.928$00 acrescida de juros de mora vencidos no montante de 211.306$00 (a converter na correspondente importância em euros) e vincendos à taxa legal, no mais confirmando a decisão impugnada, ainda que por diferente fundamento.

7. Inconformado com tal aresto, dele veio o Réu B recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- No caso em apreço, recorrida, recorrente e outros celebraram o contrato promessa que serve de causa de pedir aos autos, no qual pactuavam prestar falsas declarações perante uma autoridade pública, numa concertação de vontades contrária à lei, à ordem pública e aos bons costumes, e assumindo contornos de incriminação penal (Cfr. C. Civil, artigos 280° e 294° e C. Penal artigo 359);
2ª- Ora, a sua cominação deverá ser a nulidade prescrita pelos normativos em vigor e pelos mais elementares ditames de bom senso, a qual deverá cingir-se à amputação da cláusula inválida, por não se ter apurado nos autos a sua essencialidade para a conclusão do negócio (Cfr. C. Civil, artigo 292°);
3ª- Acresce que na prometida escritura de cessão de quotas outorgada entre recorrida, recorrente e outros o preço declarado difere do consignado no contrato promessa pelo valor dos suprimentos efectuados pela recorrida à "D", e cujo reembolso foi por ela assumido através do pagamento de todas as prestações vencidas entre a data de celebração da escritura e Setembro de 2000;
4ª- A factualidade assente permite, nesta sede, afastar a virtualidade de uma encenação simulatória destinada a ludibriar outrem.
5ª- Quer pela inexistência dos terceiros a quem estaria destinada tal maquinação, dado que intervieram no contrato promessa e na escritura prometida a totalidade do capital social e titulares dos órgãos representativos "D" anteriores e posteriores à cessão das suas quotas, quer por nada indicar que, aquando da escritura, a recorrida pretendesse receber do recorrente e demais cessionários, ou estes tivessem intenção de lhe pagar, qualquer quantia superior à declarada e confirmadamente paga e recepcionada perante o notário;
6ª- Estão, pois, infirmados os pressupostos de que dependeria uma eventual declaração de nulidade das menções referentes ao preço para repristinação das que estas se destinariam a camuflar (Cfr. C. Civil, artigos 240 e 241°);
7ª- Com efeito, o diferencial entre o valor nominal das quotas e os preços prometidos para a respectiva venda correspondia ao reembolso de suprimentos que a recorrida pretendia receber da "D" e que esta assumira pagar-lhe, o que é confirmado por nenhuma transferência financeira ter sido efectuada entre os cessionários e a cedente a partir da data de celebração da escritura;
8ª- Esta é a interpretação da vontade das partes respaldada na sequência de declarações por elas prestadas, nos moldes em que foram entendidas, e nos comportamentos por todos adoptados (Cfr. C. Civil, artigo 236°);
9ª- Verifica-se, pois, que a escritura pública de cessão de quotas deu integral cumprimento ao contrato promessa na parte respeitante às obrigações recíprocas entre cedente e cessionários, pelo que não se encontra ferida de qualquer vício;
10ª- E nem o recorrente incumpriu contrato algum com a recorrida, nem esta é credora dele por qualquer montante;
11ª- O venerando acórdão recorrido viola, pois, entre outros, o disposto nos artigos 236° 240°, 241°, 280° e 294 do C. Civil, pelo que deverá ser revogado, confirmando-se a douta sentença proferida pelo Meritíssimo Tribunal de 1ª Instância.

8. Contra-alegou a Autora. "A" sustentando a correcção do julgado pela Relação e formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1ª- O contrato promessa de cessão de quotas celebrado em 30-3-98, a que os autos se referem, é inteiramente válido, não violando o disposto nos artºs 280º e 294º do Código Civil;
2ª- Ao celebrarem o contrato promessa em causa, os outorgantes nele referidos (e portanto o recorrente) não quiseram celebrar qualquer negócio contrário à lei, nem a quiseram defraudar;
3ª- A interpretação jurídica feita pelo recorrente da nulidade do contrato promessa, por violação do artº 280º do C. Civil, conduziria à mais clamorosa injustiça para com a recorrida, que se veria privada de receber a quantia de 11.848.928$00 que o recorrente se obrigou a pagar-lhe por força do clausulado no aludido contrato-promessa;

4ª- O aludido contrato-promessa de cessão de quotas não é simulado - não se tendo verificado a nulidade prevista no artº 240º do C. Civil;
5ª- A divergência entre a vontade real e a declarada quanto ao preço, não implica a nulidade da cessão de quotas feita ao recorrente - implicando tal divergência apenas a determinação do preço real;
6ª- Na escritura de cessão de quotas e alteração do pacto lavrada a 28-4-98 no 7º Cartório Notarial do Porto, houve apenas uma divergência entre a vontade real e a declarada relativamente ao preço, sem intuito de enganar ou prejudicar terceiros - pelo que deve prevalecer o preço convencionado no contrato promessa, o qual permanece válido e eficaz;
7ª- A existir simulação de preço, tal não implica a nulidade do negócio, mas apenas a determinação do preço real - e, perante os factos provados, deverá concluir-se que o preço real da cessão de quotas era de 17.500.000$00, preço que o Réu e ora recorrente se obrigou a pagar nas condições acordadas no contrato promessa de cessão de quotas de 30-3-98, e que, contrariamente ao declarado na escritura de cessão de quotas de 28 de Abril desse ano, não se encontra totalmente recebido;
8ª- É inaceitável, face aos factos provados, a pretensão do recorrente de que não incumpriu qualquer contrato com a recorrida e que esta não é credora dele por qualquer montante.
9ª- o acórdão recorrido não violou o disposto nos artºs 236º, 240º, 241º, 280º e 294º do C. Civil ou quaisquer outras disposições legais.

9. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

10. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1º- Por escritura de cessão de quotas, aumento de capital e alteração parcial do contrato social, lavrada a 4-12-89 no 7° Cartório Notarial do Porto, a A., então designada por "...", passou a deter no capital social da firma D, uma quota com o valor nominal de 21 milhões de escudos, passando desde então a ser titular de todos os direitos e deveres inerentes àquela quota, cuja transmissão registou a seu favor;
2º- Por contrato promessa de 30-3-98, celebrado, além de outros com o réu marido, a autora prometeu ceder a referida quota de 21 mil contos que então possuía no capital social da dita firma "D", o que tudo fez nos termos do contrato escrito, inserto como documento nº 1 na notificação judicial avulsa junta aos autos;
3º- Por acordo entre todos os outorgantes identificados naquele contrato promessa, e como consta da cláusula 2ª, ficou estipulado que a autora prometia e se obrigava a dividir a referida quota de 21 mil contos que possuía em quatro, sendo:
a)- uma quota de 7.500 contos, que prometia e se obrigava a ceder ao sócio E e este, por sua vez, prometia comprar;
b)- uma quota de 5.250 contos, que prometia e se obrigava a ceder a B, aqui réu marido, e este, por sua vez, prometia comprar;
c)- uma quota de 5.250 contos, que prometia e se obrigava a ceder a G, e este, por sua vez, prometia comprar;
d)- uma quota de 3.000 contos, que prometia e se obrigava a ceder a F, e esta, por sua vez, prometia comprar;
4º- Nos termos da cláusula terceira daquele mesmo contrato promessa ficou expressamente estipulado pelos outorgantes, entre os quais pelo primeiro réu marido, que as referidas cessões, com os correspondentes direitos e obrigações, eram feitas pelo preço global de 70.000.000$00, correspondendo deste preço a quota com o valor nominal de 5.250.000$00 prometida ceder ao réu marido B a quantia de 17.500.000$00, quantia esta que aquele aceitou e se obrigou a pagar;
5º- Conforme estipulado na cláusula quarta do mencionado contrato promessa, como sinal e princípio de pagamento do ajustado preço global das prometidas cessões, a autora recebeu a quantia de 7.500.000$00, de que deu quitação;
6º- Do valor desse cheque, 1.875.000$00 correspondia ao sinal e principio de pagamento da quota prometida ceder ao réu marido;
7º- A restante quantia do preço global das cessões, no montante de 62.500.000$00 seria paga em 120 prestações mensais e sucessivas, de igual montante, com vencimento no dia 8 de cada mês, com início no mês de Maio de 1998, por meio de cheque bancário a enviar para a sede da autora, sendo cada uma das prestações do valor de 520.833$00;
8º- Por escritura de cessão de quotas e alteração parcial de pacto, lavrada em 28-4-98, no 7º Cartório Notarial do Porto, a autora acabou por ceder ao réu marido B a referida quota de 5.250 contos que possuía no capital social da firma "D", que passou, por sua vez, a exercer todos os direitos inerentes à sua quota, acabando mesmo por vir a assumir a gerência da firma "D";
9º- Na escritura referida em h) ficou a constar que a autora declarou que cedia a referida quota por preço igual ao seu valor nominal e já ter recebido o preço;
10º- Na cláusula nona do contrato promessa consta que a escritura de cessão de quotas será lavrada pelo valor nominal, declarando-se as quotas pagas, mas tal valor e declaração de pagamento é meramente formal, subsistindo, como real, o valor e a forma de pagamento acordada e declarada no contrato promessa;
11º- Até ao dia 8-9-00 a autora recebeu pontualmente o valor da prestação mensal contratualmente estipulada;
12º- A autora requereu a notificação judicial avulsa dos réus, nos termos referidos a fls. 35;
13º- Cada um dos promitentes cessionários, entre os quais o réu marido, assumiu a responsabilidade pelo pagamento do preço das acordadas prestações na proporção do valor das cessões prometidas fazer;
14º- O réu marido aceitou e obrigou-se ao pagamento de sete vinte e oito avos do valor, correspondendo a 25 % do valor da prestação mensal (resposta ao ponto 2°)-Sendo de 130.208$00 o valor que mensalmente aquele se obrigou a pagar à autora;
15º- No pressuposto de que o réu marido respeitaria integralmente o contrato promessa e o preço da cessão aí convencionado, a autora aceitou celebrar o contrato definitivo de cessão de quotas;
16º- A autora, como cedente, e o réu marido, como cessionário, juntamente com os demais outorgantes, haviam previamente acordado que o preço da cessão a mencionar na escritura, e a declaração da autora de que o preço havia sido recebido, seriam unicamente para efeito da outorga da respectiva escritura;
17º- Já que o preço real da cessão de quotas e a forma como o mesmo seria pago, e a que se tinham obrigado, era a que constava do contrato promessa;
18º- Por cada pagamento, a autora emitiu 4 recibos de quitação, em nome de cada um dos quatro promitentes cessionários, e pelos valores da responsabilidade de cada um deles;
19º- Em Outubro de 2000 a autora foi confrontada com a falta de pagamento da prestação mensal acordada, tendo recebido unicamente 186.011$00 de E e 74.406$00 de F, valores correspondentes às responsabilidades destes;
20º- O réu marido e G obrigaram-se a pagar, cada um deles, 130.208$00;
21º- A autora informou o réu, através de sua mulher, de que o pagamento em falta lhe devia ser remetido no mais curto espaço de tempo;
22º- A diferença entre o valor nominal das quotas e o preço referido na cláusula terceira do contrato promessa resultava de empréstimos em dinheiro que a autora então alegou ter efectuado à sociedade D, antes de produzida a cessão de quotas;
23º- Pelo que a diferença de valor entre o constante do contrato promessa e o da escritura pública corresponderia ao reembolso daqueles empréstimos efectuados pela autora;
24º- Os cessionários ainda assumiram pessoalmente as responsabilidades emergentes de avais prestados pela cedente aos bancos;
25º- Em Maio de 1998, logo após a escritura pública de cessão de quotas, data em que se venceu a 1ª prestação no montante de 520.833$00 mensais, foi a sociedade D que procedeu à sua liquidação à autora;
26º- Foi ainda a sociedade D que procedeu à liquidação, sem excepção, de todas as demais prestações seguintes, até Setembro de 2000, inclusive.

Passemos ao direito aplicável.

11. A Relação, em sede de apelação, delimitou como "thema decidendum" duas questões umbilicalmente ligadas - que o Réu reedita em agora em sede de recurso - e se consubstanciam na validade/invalidade do contrato-promessa de cessão de quotas e na alegada divergência entre a vontade real e a vontade declarada na escritura (definitiva) de cessão de quotas e respectivas consequências.
Pois bem.
Nunca é demais insistir que o STJ, na sua qualidade de tribunal de revista, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - artºs 26º da LOFTJ 99 aprovada pela L 3/99 de 13/1 e 722º, nºs 1 e 2 e 729º nº 1 do CPC.
A propósito das chamadas presunções judiciais, define-as o C. Civil como sendo "as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido " - conf. artº 349º.
Os factos conhecidos eram, no caso vertente, as vicissitudes por que passou e as demais circunstâncias que envolveram a transmissão da questionada quota no aspecto declarativo (negocial). Os factos desconhecidos (e à partida objecto do escrutínio judicial) eram o pacto simulatório e o intuito de enganar («animus decipiendi») ou mesmo de prejudicar («animus nocendi») terceiros vesus a validade ou nulidade do negócio, mas a Relação - em puro domínio factual - concluiu que tal pacto, se bem que existente relativamente a certa parte do negócio, não teve, todavia, subjacente qualquer intuito de enganar ou prejudicar terceiros.
Isto tendo presente que também integra matéria de facto, do foro exclusivo das instâncias, a indagação, a pesquisa e o apuramento da intenção dos contraentes ou outorgantes em determinado negócio jurídico, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante e qual a vontade deste (artº 236º nº 2) - conf. Ac STJ de 11-12-03, in Proc 2992/03 - 2ª Sec).
Para a existência de simulação, exige a lei três requisitos: divergência entre a vontade real e a vontade declarada; intuito de enganar ou iludir terceiros («animus decipiendi»), e acordo simulatório («pactum simulationis») - conf. artº 240º, nº 1, do C. Civil.
Havia a A., ora recorrida, alegado que na escritura de cessão de quotas e de alteração do pacto social, lavrada no dia 28-4-98, no 7º Cartório Notarial do Porto, apenas teria ocorrido divergência entre a vontade real e a declarada relativamente ao preço do contrato, mas não qualquer intuito de enganar terceiros, e daí que devesse prevalecer o convencionado no contrato-promessa, o qual deveria assim permanecer válido e eficaz.
A Relação coonestou este entendimento, e adiante-se desde já que com argumentação convincente.
A lei distingue entre simulação absoluta e simulação relativa (artigo 241º do C. Civil). Na esteira de Mota Pinto, in "Teoria Geral do Direito Civil", 3ª ed, 1999, pág 473, na simulação absoluta - é o caso da venda fantástica ou da doação simulada com fins de pompa ou ostentação - as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum: na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e, na realidade, querem um outro negócio de tipo ou conteúdo diverso (v. g. a venda aparente que disfarça uma real doação para prejudicar os herdeiros legitimários ou os credores ou a Fazenda Nacional ou para contornar a norma do artigo 953°); a venda de imóveis simulando um preço inferior ao preço real para prejudicar a Fazenda Nacional ou simulando um preço superior ao real para prejudicar um preferente).
O negócio simulado (simulação absoluta) é nulo - artº 240º do C. Civil.
Na simulação relativa e por força do disposto no nº 1 do artº 241º do mesmo diploma, o negócio real ou dissimulado será objecto do tratamento que lhe cabia caso tivesse sido concluído sem dissimulação; plenamente válido e eficaz ou inválido, consoante as consequências que teriam lugar se tivesse sido abertamente concluído, o que, no fundo terá de ser objecto de uma apreciação de carácter casuístico face à prova adrede produzida.
No caso "sub-judice", não obstante a divergência entre a vontade real e a declarada na escritura de cessão de quotas, falecia - como acima já se deixou dito - o "animus decipiendi" ou o "animus nocendi", como, de resto, reconheceram as instâncias.
A A., ora recorrida, havia alegado (o que veio a demonstrar) que o preço declarado na escritura de cessão de quotas não era o preço realmente querido pelos outorgantes e que fora convencionado no contrato-promessa, preço esse que tão pouco havia sido por si recebido.
Ora, conforme postula o nº 1 do artigo 371° do C. Civil, o valor probatório pleno do documento autêntico respeita tão-somente aos factos que nele se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora.
Assim se no documento o notário afirma que perante ele o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção ou que o acto não seja simulado; se o vendedor declara que recebeu o preço convencionado, o documento só faz prova plena de que essa declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago" (conf. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed, pág. 328, citando o Ac do STJ de 18-7-69, in BMJ nº 189, pág 246 e ss ).
A situação configurada nos autos representa precisamente um exemplo prático de discrepância entre a verdade "formal" do documento e a verdade "material" que lhe subjaz, sendo esta a traduzida no contrato-promessa anteriormente celebrado entre as partes.
Assim, mesmo dando de barato que houvesse existido uma "simulação de preço", tal não implicaria, no caso vertente, a nulidade de todo o negócio, mas apenas que se procurasse adregar a determinação do preço real, que ficaria a ser o preço realmente querido pelas partes e, como tal, o exigível designadamente pela via judicial.
Preço real esse (da cessão da quota social em apreço) que a Relação - soberanamente em sede factual - concluiu cifrar-se em 17.500.000$00, e que o Réu marido, ora recorrente, se obrigou a pagar à recorrida nas condições acordadas no contrato promessa datado de 30-3-98, o qual, contrariamente ao declarado na escritura de cessão de quotas de 28 de Abril desse ano, não se mostrava ainda totalmente recebido.
Tal como «ab initio» sustentou a A. ora recorrida - com o beneplácito da Relação - o contrato promessa de cessão de quotas era válido.
O recorrente pretende a declaração de "nulidade do negócio" (do contrato-promessa) chamando, para tanto, à colação a estatuição/previsão dos artºs 280º, nº 1 e 294º do C. Civil, mas totalmente a despropósito.
Nos termos do nº 1 do artigo 280º do C. Civil é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
O objecto é legalmente impossível quando a ordem jurídica não prevê determinados tipos negociais ou meios para a sua realização ou quando não o admite sequer em relações jurídico-privadas e é contrário à lei quando o negócio é materialmente possível, mas todavia contradiz normas legais imperativas (ou de interesse e ordem pública).
A este propósito, Mota Pinto, in ob cit, considera contrários à lei, não só os negócios que frontalmente a ofendem (negócios" contra legem" ), mas também, quando se constate, por interpretação, que a lei quis impedir, de todo em todo, um certo resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu (negócios em fraude à lei).
Nenhuma dessas situações se demonstrou serem as dos negócios jurídicos sob apreciação.
E onde surpreender um qualquer negócio "celebrado contra disposição legal de carácter imperativo" que o artº 294º exige para que um determinado negócio possa ser declarado nulo?
As partes celebraram o contrato-promessa, e acordaram o respectivo "programa", com inteira liberdade, e com pleno respaldo no artº 405º do C. Civil, sendo que não lhes impunha para tanto a lei quaisquer limites específicos (princípio da liberdade contratual).
E não pode considerar-se - ao invés do considerado na decisão de 1ª instância - que esse contrato-promessa, onde se achava vertido o preço real e cujo cumprimento integral a recorrida pretendia e reclamava, possuía um objecto contrário à lei (imperativa) só por que os seus outorgantes resolveram convencionar (futuramente) a celebração do negócio jurídico (escritura do negócio definitivo) com atribuição de um preço não correspondente ao que realmente possuíam em mente.
Pese embora do contrato-promessa derivar a obrigação de as partes celebrarem o contrato prometido, a celebração deste último pode não esgotar todas as cláusulas estipuladas no contrato-promessa e que constituem a chamada "lex contractus".
Daí que não se não haja tido - e bem - por cumprido, através da realização do contrato definitivo de cessão de quotas a que se reportam o autos, o contrato-promessa que lhe subjaz e e cujas obrigações (ou cláusulas) lhe sobrevivem, entre estas o montante do preço realmente convencionado e a forma e prazos do respectivo pagamento.
Encontra-se, assim, o réu marido obrigado ao pagamento do preço em falta e dos correspondentes juros moratórios vencidos e vincendos, tal como fora peticionado, responsabilidade que - tal como a Relação já decidiu - não é extensível à Ré mulher, por não se haver provado o proveito comum do casal, nos termos e para os efeitos do artigo 1691°do C. Civil.
15. Não se descortina pois em que é que o acórdão revidendo haja violado as disposições legais invocadas pelo recorrente.
16. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares