PROPRIEDADE DE IMÓVEL
PROPRIEDADE PRIVADA
SUBSOLO
INTERESSE PÚBLICO
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
Sumário

I. O proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, do uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas" - artº 1305º do C. Civil.
II. A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico - artº 1344º, nº 1, do C. Civil.
III. O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir - artº 1344º nº 2.
IV. Ao direito de propriedade correspondem restrições, quer de direito privado, quer de direito público.
V. O conceito de "prédio" tal como emerge da vida social hodierna deve limitar-se, em profundidade, àquela porção que for efectivamente ocupada, em concretização prática das chamadas "função social da propriedade" ou da "socialização da riqueza", as quais assumiram foros de dignidade constitucional na Lei Fundamental de 1976 - conf. artº 62º, nºs 1 e 2.
VI. Entre as restrições de interesse público geral encontram-se as que se prendem com a realização de obras de urbanização, de construção de infra-estruturas ou de instalação de equipamentos sociais, actos esses que muitas vezes se encontram obrigatoriamente sujeitos, nos termos da lei, a expropriação, requisição e constituição de servidões administrativas.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. A e mulher, B, propuseram no Círculo Judicial de Viana do Castelo, com data de 17-9-01, acção ordinária contra o "C - INSTITUTO PARA A CONSTRUÇÃO RODOVIÁRIA", solicitando se declarassem os AA donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial e se condenasse o Réu a retirar todas as escoras em ferro e cimento que introduziu no subsolo do mesmo prédio e a repor o subsolo no estado em que se encontrava, e, bem assim, na indemnização que se liquidasse em execução de sentença e ainda se ordenasse o cancelamento de quaisquer registos a favor do Réu no prédio em causa.

2. Contestou o Réu, impugnando a forma como as escoras em ferro e cimento que introduziu no subsolo do prédio dos AA se encontravam colocadas e sustentando que o fez no exercício do direito atribuído pelo disposto no artº 1.344º, nº2, do C. Civil, assim propugnando a improcedência da acção.

3. Por sentença de 10-2-03, a Mma Juíza do Círculo Judicial de Viana do Castelo julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- declarou que os AA são proprietários do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, 1º andar e logradouro, com a superfície coberta de 41 m2 e logradouro com 810 m2, a confrontar do norte, sul e nascente com D e do poente com caminho público, sito no lugar da Felgueiras, Perre, Viana do Castelo, inscrito na matriz sob o artº 288° e descrito na Conservatórla do Registo Predial sob o nº 184/Perre;
- ordenou o cancelamento de quaisquer registos a favor do Réu relativamente ao mesmo prédio.
No mais, julgou a acção improcedente, absolvendo, em consequência, o Réu da restante parte do pedido.

4. Inconformados com a parte desfavorável dessa sentença, dela vieram os AA apelar, mas o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 22-10-03, negou provimento à apelação.

5. De novo irresignados, desta feita com tal aresto, dela vieram os AA recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:
1ª- Ficou provado que o recorrido, sem autorização dos recorrentes, introduziu no subsolo de um prédio urbano destes, identificado nos autos, duas fiadas, na horizontal, de ancoragens, distantes umas das outras cerca de 3 metros, sendo a primeira a 1,80 metros da superfície e, a segunda, a 2,70 metros, num comprimento de 11,7 metros;
2ª- Estas ancoragens constituem uma espécie de malha que não permite a construção em profundidade de uma cave ou sub-cave, ou outro tipo de construção no subsolo do prédio urbano dos recorrentes.;
3ª- A manterem-se estas ancoragens, ficará constituída uma servidão atípica do IP9 sob o prédio dos recorrentes;
4ª- As servidões constituem-se de forma voluntária, por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família, ou, então, por sentença judicial ou decisão administrativa;
5ª- No caso «sub judice», para além da oposição dos recorrentes à introdução no subsolo do seu prédio das referidas ancoragens, não houve qualquer sentença ou decisão administrativa a autorizar tal constituição de servidão;
6ª- Os recorrentes, a manterem-se as ancoragens, ficam impedidos de, no futuro, construírem no subsolo do seu prédio urbano qualquer tipo de construção;
7ª- No acórdão recorrido, com o devido respeito, fez-se errada aplicação da lei aos factos dados como provados, já que não se considerou a constituição de uma servidão atípica e, por isso, violaram-se os artºs 1543º e 1544º do C. Civil;
8ª- E, ainda, quando se considerou na interpretação do nº 2 do artº 1344º do C. Civil, que os recorrentes não tinham interesse em impedir a colocação das ancoragens no subsolo do seu prédio, fez-se errada interpretação desta norma;
9ª- A interpretação correcta será no sentido de que o proprietário só não terá interesse em impedir qualquer obra em profundidade se, no presente ou no futuro, tais obras em profundidade não embaraçarem a utilização do subsolo pelo proprietário do terreno, neste caso concreto com a construção de uma cave ou subcave;
10ª- Foi, pois, violado, por erro de interpretação, o nº 2 do artº 1344º do C. Civil;
11ª- Se assim não for entendido, a interpretação que considera que terceiros podem utilizar o subsolo de um prédio, desde que o proprietário deste não tenha um interesse prático, concreto e efectivo, actual ou hipotético;
12ª- Nomeadamente, constituindo uma servidão atípica que, no caso «sub judice», impede a construção em profundidade, sem obrigar ao pagamento de indemnização justa;
13ª- Tal interpretação viola o artº 13º, nº 1, e 62º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa,
14ª- já que impõe uma servidão atípica aos recorrentes sobre o seu prédio, a favor da comunidade, sem ter como contrapartida uma justa indemnização, contribuindo os recorrentes para o bem comum público, mais do que os restantes cidadãos;
15ª- Será, pois, inconstitucional a interpretação feita nos autos do nº 2 do art. 1344º do C. Civil, por violação do artº 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
6. Contra-alegou o Réu sustentando a correcção do julgado, para o que formulou as seguintes conclusões:
1ª- O proprietário só pode proibir a utilização do subsolo do seu prédio quando tenha interesse objectivo em impedi-la;
2ª- No caso, não se fez prova de que os recorrentes tenham qualquer interesse objectivo, efectivo e actual, em impedir a colocação e manutenção das amarrações que o IEP colocou no subsolo do seu prédio para garantir a estabilidade do muro de suporte das terras, de forma a não caírem na auto-estrada;
3ª- Antes se provou que o interesse alegado pelos ora recorrentes não existe;
4ª- Pelo que, não ocorrendo a situação prevista no nº2 do artº 1344º do C. Civil, a acção tenha de ser julgada improcedente, como de facto sucedeu;
5ª- Nada por isso há a censurar na decisão das instâncias, que deve ser mantida.
7. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
8. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1º- Está inscrito na matriz sob o artº 288º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº184/Perre, e registado em nome dos AA, o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, 1º andar e logradouro, com a superfície coberta de 41 m2 e logradouro com 810 m2, a confrontar do norte, sul e nascente com D e do poente com caminho público, sito no lugar da Felgueira, Perre, Viana do Castelo;
2º- O Réu está a abrir uma estrada entre a Meadela e Nogueira, denominada IP9, estrada que fica a sul desse prédio;
3º- O Réu, na sequência do processo de expropriação, construiu um muro em betão com a altura de 5 m que corre toda a parte sul do mesmo prédio;
4º- As obras feitas pelo Réu sob a casa dos AA foram feitas sem autorização destes;
5º- O Réu executou ancoragens sob esse prédio, cuja penetração, medida em projecção horizontal, atingiu, no máximo, 11,27 m;
6º- Tomando como referência o nível inferior da viga de bordadura do muro ancorado, o 1º nível de ancoragens situa-se 1,80 m abaixo do solo, e o 2º nível de ancoragens, em número de sete, é variável entre o mínimo de 2,70 m e o máximo de 5 m;
7º- O afastamento horizontal entre ancoragens é de 3 m e os afastamentos verticais variáveis entre 3,20 m e 1,5 m, formando com o plano horizontal um ângulo de 20º;
8º- Os furos para as ancoragens são cheios com ferro e calda de betão, envolvidas numa manga plástica, com um diâmetro aproximado de 0,15 m;
9º- As ancoragens têm como finalidade conferir estabilidade estrutural ao muro de suporte;
10º- A passagem, no IP9, de camiões de grande tonelagem, provoca trepidações instantâneas no prédio referido em causa, por ser adjacente à via;
11º- Durante a execução da obra da construção da estrada, abriram-se algumas fissuras nas paredes da casa referida;
12º- O descrito em 10º causa incómodo aos AA;
13- Entre a estrada IP9 e o prédio dos AA existe uma faixa de 2 m de terreno expropriada pelo Réu;
14º- O supra-referido muro de betão separa o IP9 da faixa de terreno de 2 m referida em 14º;
15- As ancoragens iniciam-se no muro de suporte, atravessando essa faixa de terreno;
16º- No seu ponto extremo, a ancoragem do 1º nível situa-se a 8,99 m de profundidade e a do 2º nível a 11,99 m;
17º- Os AA podem construir um poço a mais de 11,27 m da estrema do prédio e entre as fiadas das amarrações.
Passemos ao direito aplicável.
9. O "thema decidendum" centra-se em indagar em que medida a invocação do disposto no artº 1344°do C. Civil favorece a posição dos AA ora recorrentes e, em caso afirmativo, se a interpretação que dele foi feita pelas instâncias se encontra ou não em conformidade do mesmo com os princípios constitucionais pertinentes.
Vem assente que a entidade recorrida, agindo, no âmbito das suas atribuições de direito público, e na sequência de um processo de expropriação por utilidade pública adrede instaurado, e destinado à abertura de uma nova estrada entre a Meadela e Nogueira, denominada IP9, situada a sul do prédio referido em 8-1º - pertença dos ora recorrentes - construiu um muro em betão com a altura de 5 m ao longo de toda a parte sul desse mesmo prédio.
Com a finalidade de conferir estabilidade estrutural a esse muro de suporte, e sem autorização prévia da banda dos ora recorrentes, o C executou ancoragens sob esse prédio, cuja penetração, medida em projecção horizontal, atingiu, no máximo, 11,27 m, tomando como referência o nível inferior da viga de bordadura do muro ancorado. O 1º nível de ancoragens situa-se 1,80 m abaixo do solo e o 2° nível de ancoragens, em número de sete, é variável entre o mínimo de 2,70 m e o máximo de 5 m, sendo que o afastamento horizontal entre ancoragens é de 3 m e os afastamentos verticais variáveis entre 3,20 m e 1,5 m, formando com o plano horizontal um ângulo de 20° e os furos para as ancoragens são cheios com ferro e calda de betão, envolvidas numa manga plástica, com um diâmetro aproximado de 0, 15 m.
Em que medida a implantação de tais obras implica violação do direito de propriedade dos recorrentes ou a criação de uma servidão predial ao arrepio dos requisitos legais, com a consequente violação das normas constitucionais, é o que importa analisar.
É aqui de chamar à colação o disposto no nº 1 do artº 1344°, nº 1, do C. Civil, nos termos do qual "a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico".
Acrescenta, todavia, o nº 2 do mesma norma que "o proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir".
Pelo que respeita a esse nº 1, mantém-se em substância a estatuição do respectivo homólogo, o artº 2288º do CCIV 867 (Código de Seabra), consagradora da velha concepção medieval "qui dominus est soli, dominus est usque ad coelum e ut usque ad inferos". Apenas se precisou a "indicação dos elementos do subsolo ou do espaço aéreo que devem considerar-se desintegrados da propriedade superficiária e cujo domínio é, consequentemente, atribuído a terceiro " - conf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol III, 2ª ed., pág 173.
Já aquele nº 2 "não reconhece ao proprietário a faculdade de proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir. Esses últimos autores citados dão mesmo (conf. ob cit, pág 174) como exemplo de escola, e pelo que respeita às obras no subsolo, que "não há interesse em impedir as obras feitas a grande profundidade, como por ex, a abertura de um túnel por baixo dos Alpes" (sic).
Tais disposições têm contudo de ser devidamente conjugadas e articuladas com a estatuição-previsão do artº 1305º do C. Civil, nos termos do qual "o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, do uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas".
Direito exclusivo esse consubstanciado na máxima «jus excludendi omnes allios», mas a que, também, correspondem restrições, quer de direito privado, quer de direito público, sobressaindo entre estas últimas "pela gravidade do sacrifício imposto ao titular do direito de propriedade, a expropriação por utilidade pública (artº 1308º do C. Civil) " na expressão ainda dos mesmos autores, in ob cit, pág 94.
O direito "real" do proprietário deve ser encarado não apenas sob uma perspectiva subjectiva, em que releve apenas o interesse egoístico do seu titular, mas como categoria objectiva ou económico-social em termos de o interesse abstracto, potencial e eventual não poder excluir a actividade de outrem (terceiro entidade pública ou privada) que assuma interesse manifestamente relevante.
Tal como bem observa José de Oliveira Ascenção, in "Direito Civil - Reais", págs 178 e179, a propósito do conceito de "prédio", este, tal como emerge da vida social, deve limitar-se, em profundidade, àquela porção que for efectivamente ocupada". Não obstante a lei outorgar a cada titular, entre os poderes que compõem o direito, também um poder de expansão a novas zonas, permitindo, assim, a extensão em profundidade do prédio",...; "também aqui a regra da função social se vai repercutir: não podemos aceitar poderes de expansão que não correspondam já a nenhum interesse efectivo".
O que no fundo corresponde à concretização prática das chamadas "função social da propriedade" ou da "socialização da riqueza", as quais assumiram foros de dignidade constitucional na Lei Fundamental de 1976 depois revista em 30-9-82 - conf. artº 62º, nºs 1 e 2.
E o que tudo conduz a que o proprietário só possa impedir actos de terceiro no subsolo ou no espaço aéreo correspondente à superficie do imóvel, quando seja portador de um interesse (actual ou potencial) devidamente concretizável e materializável, que não de um interesse meramente abstracto ou conjectural, de natureza simplesmente egoística.
Tal como escreveu M. H. Mesquita, in "Direitos Reais", 1967, pág 138, "é irrealista dizer que os poderes do proprietário se estendem "usque ad inferos", porquanto o domínio efectivo do proprietário termina, no seu limite inferior, nas caves ou galerias e, se bem que haja sempre a possibilidade (teórica) de ampliar esse domínio, tal possibilidade não pode considerar-se ilimitada.
Contudo - como salienta a Relação - como interesses concretos e efectivos a tutelar, os ora recorrentes começaram por alegar que a colocação das escoras provocava estremecimento, ou seja trepidação, na casa de sua propriedade, facto que, de resto, não lograram provar. Não se provou, com efeito, que tais obras fossem «a se» geradoras de qualquer dano (trepidação, prejuízo para a solidez das edificações ou construções, etc), mas tão-somente que essas trepidações são provocadas pelo tráfego de veículos de grande tonelagem na via adjacente. Em todo o caso, entre essa via pública (o IP9) e o prédio dos ora recorrentes medeia um faixa de 2 metros de terreno previamente expropriado pela entidade Ré.
O restante da sua alegação inicial (de manifesta concretização deficitária) reporta-se à hipotética eventualidade de pretensão de construção, em profundidade, de uma garagem ou de um poço - que, de resto, se não provou ter-se tornado inviabilizada pela actuação desenvolvida pela entidade recorrida nos termos supra-descritos, ónus que impendia sobre eles AA. (conf. artº 342º, nº 1 do C. Civil).
E não se diga que, deste modo, se estaria a dar cobertura à constituição de uma servidão predial por meio não permitido por lei e portanto de carácter atípico.
Para que se deparasse a figura da servidão predial tornar-se-ia necessário que se objectivasse um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a outro diferente (conf. artº 1543º do C. Civil). Não se mostra porém onde possa surpreender-se na situação a que se reportam os autos um qualquer "prédio" dominante relativamente a um outro "prédio serviente".
Na hipótese vertente não ocorre, pois, restrição ao gozo do direito de direito de proprietário, precisamente porque a mesma se move fora dos limites materiais do conteúdo essencial (cerne) do mesmo, entendido com o sentido que se deixou referido.
Nem se diga, outrossim, que uma tal interpretação do nº 2 do artigo 1344°, do C. Civil conflitua com qualquer princípio ou norma constitucional.
No nº 1 do respectivo artigo 62°, a Lei Fundamental postula que "a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição"; mas, tal como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa - Anotada", 3.ª edição revista, página 331, "tal conceito não coincide com o conceito civilístico tradicional;... o alargamento do conceito de propriedade a outros bens, para além da "proprietas rerum ",... traduz por um lado, uma diversificação do objectivo do direito de propriedade para fora do seu paradigma burguês e, por outro lado, a descaracterização do seu figurino originário de garantia absoluta de livre utilização e disposição exclusiva de uma determinado bem" (sic).
Para esses constitucionalistas "o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição".
Parafraseando Luís A. Carvalho Fernandes, in "Lições de Direitos Reais", 1997, pág 183 "a propósito da delimitação negativa do conteúdo dos direitos reais, quando se questiona o conteúdo do direito de propriedade, cabe sem dúvida averiguar desde logo o conjunto das faculdades atribuídas ao proprietário; mas cabe também apurar as restrições postas ao seu exercício e decorrentes de várias causas, em que avultam a função social da propriedade e a necessidade de tutela de interesses alheios, que podem ser de ordem pública e privada".
E entre essas restrições de interesse público geral encontram-se, sem dúvida, as limitações que se prendem com a realização de obras de urbanização, de construção de infraestruturas ou de instalação de equipamentos sociais, actos esses que muitas vezes se encontram obrigatoriamente sujeitos, nos termos da lei, a expropriação, requisição e constituição de servidões administrativas.
De qualquer modo, não lograram os recorrentes demonstrar em sede factual que do que se terá tratado teria sido de uma (ilegal) expropriação da utilização do subsolo do seu prédio ou de uma imposição (também ilegal) de uma "servidão non aedificandi" sobre esse subsolo; os recorrentes haviam alegado a impossibilidade em que teriam ficado v.g de construírem uma garagem ou um poço nesse subsolo, mas do elenco da matéria de facto ficou assente (conf. 8.17º) terem ficado a poder construir um poço a mais de 11,27 m da estrema do prédio e entre as fiadas das amarrações, nada se tendo provado acerca da impossibilidade de construção da aventada garagem.
E era essa a destinação efectiva que os ora recorrentes alegadamente se propunham dar no futuro a esse considerado espaço, sendo que - repete-se - o proprietário "não pode proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir " (conf. artº 1344º, nº 2 do C. Civil). Apreciação essa necessariamente de carácter casuístico e sempre pautada por critérios aferidores de carácter objectivo.
Fora pois de demonstração a alegação dos ora recorrentes - conclusão 2ª - de que as aludidas ancoragens constituíssem uma espécie de malha que não permitiria a construção em profundidade de uma cave ou sub-cave, ou outro tipo de construção no subsolo do prédio urbano dos recorrentes.
Não se perfila, por isso, uma tal interpretação colidente com a letra e com o espírito da Constituição, tal como as instâncias bem concluíam.

10. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão revidendo qualquer censura.

11. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares