CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
CRIME
CIRCUNSTÂNCIAS
MEDIDA DA PENA
Sumário

1º - No domínio dos crimes cometidos por negligência na circulação rodoviária as exigências de prevenção geral quanto à violação dos deveres de unidade são de forte intensidade; porém as imposições preventivas são, nestas circunstâncias, muito da dimensão funcionalista de prevenção geral, para garantia e confiança da comunidade na preservação dos mais relevantes bens jurídicos, salientando a absoluta necessidade de conformação e actuação segundo os comportamentos devidos no exercício de uma actividade que comporta riscos para tais valores e que impõem a observância de estritas regras de cuidado.
2º - A distância no tempo, para além de limites razoáveis, entre os factos e a aplicação da pena, esbate a utilidade e a função específica de prevenção geral, com o necessário reflexo na proporcionalidade entre meios (a natureza e a medida da pena) e os fins (a prevenção geral); para além de um tempo adequado e razoável, o afastamento entre os factos e a aplicação da pena dilui a perspectiva utilitária de prevenção, enfraquecendo a necessidade de uma pena mais intensa e exigente.
3º - O decurso de um período de cinco anos entre os factos e a aplicação da pena em primeira instância faz com que uma pena de prisão efectiva já não seja estritamente necessária na dimensão funcional da prevenção geral; não se opondo, por isso, as finalidades de prevenção de uma pena de outra natureza.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", identificado no processo, foi acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de uma contra-ordenacão prevista e punida pelo artigo 72°, n.° 2, alínea b) e n.° 3, e art. 133º do Código da Estrada, com as alterações introduzidas pelo DL. N.° 2/98, de 03-01; uma contra-ordenacão prevista e punida pelo artigo 72°, n.° 2, alínea d) e n.° 4, e art. 133° do Código da Estrada, com as alterações introduzidas pelo DL. N.° 2/98, de 03-01; e, por via delas, em concurso real um crime de homicídio por negligência grosseira, punido pelo artigo 137°, n.° 2; dois crimes de ofensas corporais por negligência, ambos previstos e punidos nos termos do art. 148°, n.° 1, com referência à alínea a) do art. 15°; e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291°, n.° 1, alínea b), todos do Código Penal;
Após julgamento pelo tribunal colectivo, a acusação foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, o arguido condenado peio prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137°, n.°s 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Ao abrigo do disposto no n.° 1 do art. 1° da Lei n.° 29/99, de 12 de Maio, declarou-se perdoado ao arguido l (um) ano da pena de prisão em que foi condenado.
2. Não se conformando com o decidido, mas apenas na parte em que o acórdão não declarou a suspensão da execução da pena, o arguido interpõe recurso para este Supremo Tribunal, que motivou e termina com as seguintes conclusões:
1ª- O recurso visa tão só o reexame de matéria de direito e esta circunscrita à não suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
2ª- Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal a quo atendeu ao grau de ilicitude do facto, ao grau de violação dos deveres impostos ao arguido, à intensidade da negligência e à ausência de antecedentes criminais.
3ª- Nessa medida, o tribunal a quo entendeu como adequada uma pena de 2 ( dois ) anos de prisão, ou seja, uma pena abaixo da metade do limite máximo que é de 5 anos - art° 137°, n° 2, do Código Penal.
4ª- O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art° 50°, n° 1, do Código Penal.
5ª- O tribunal a quo entendeu que atentas as circunstâncias do crime, o acentuado grau de culpa do recorrente e as fortes exigências de prevenção geral atenta a elevada sinistralidade existente, não estavam verificados os pressupostos da suspensão.
6ª- O tribunal a quo não atendeu à personalidade do recorrente, nem às condições da sua vida, nem à sua conduta anterior e posterior à pratica do crime porque foi condenado, quando deu como provado que o recorrente confessou os factos integralmente e sem reservas, mostrando arrependimento, que é uma pessoa trabalhadora, sendo empresário em nome individual, com dois empregados, que vive com a mulher e dois filhos gémeos, actualmente com 5 anos de idade, e que não tem antecedentes criminais.
7ª. O recorrente já foi fortemente penalizado durante 5 anos com a ameaça de consequência penal.
8ª- O recorrente encontra-se bem inserido familiar, social e profissionalmente.
9ª- A privação da liberdade do recorrente afigura-se extremamente gravosa e desproporcionada nesta fase da sua vida, na medida em que põe em causa a subsistência familiar, a da sua empresa e a dos próprios empregados que dela dependem.
10ª- O recorrente não tem incidências criminais ou estradais, quer antes, quer após o acidente de há 5 anos, tratando-se, por conseguinte, de pessoa capaz e responsável.
11ª- Atenta a personalidade, condições de vida e a conduta anterior e posterior ao crime, a ameaça de execução da pena de prisão, ainda que alongada no tempo, constitui em si uma séria censura do facto e realizará de forma adequada e manifestamente suficiente as finalidades da punição;
12ª- Verificam-se, no caso do recorrente, todos os pressupostos para a suspensão da execução da pena de prisão, previstos no n° 1, do art° 50°, do Código Penal, excepto, no entender do Tribunal a quo, o respeitante às circunstâncias do crime, mas, mesmo esse já se encontra mitigado e esbatido com o decurso do tempo e a interiorização que o recorrente dele fez;
13ª- Ao não suspender a execução da pena de prisão, a decisão recorrida violou o disposto no art° 50°, n° 1, do Código Penal.
14ª- Tendo em consideração a medida concreta da pena aplicada - a metade do limite máximo -, o período de suspensão deverá, segundo o princípio da proporcionalidade, ser fixado entre dois e três anos, de acordo com o estabelecido no n° 5, do art° 50°, do Código Penal.
Pede, assim, o provimento do recuso e, em consequência, que a pena de um ano de prisão aplicada ao recorrente, seja suspensa na sua execução, por um período entre dois e três anos, na medida em que no caso concreto, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na resposta à motivação, o magistrado do Ministério Público defende a manutenção da decisão, considerando que a suspensão da pena, nas circunstâncias do caso, constituiria «uma quebra ou fractura no sistema, perante as expectativas da comunidade», que assim veria «defraudada a sua confiança no sistema e na justiça penal», uma vez que a conduta do recorrente «acabaria por não ter qualquer consequência penal não desincentivando sequer, antes pelo contrário, [o] tipo de comportamentos» como o que vem provado.
3. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve vista do processo, nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações. Nas alegações, a Exmª Procuradora-Geral, reconhecendo que as exigências de prevenção geral são as que prevalecem no caso de crimes cometidos no exercício da condução automóvel e que, em abstracto, a suspensão da execução da pena pode não satisfazer o conteúdo mínimo das finalidades da punição, considera, porém, que, no caso, a ausência de antecedentes do arguido e, especialmente, o tempo decorrido desde a data da prática dos factos, permitem aceitar a aplicação de uma pena de substituição.
Por seu lado, o recorrente, pelo seu defensor, reafirmou a posição e os fundamentos da motivação.
Cumpre apreciar e decidir.
4. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Setembro de 1998, cerca das 12H30, na Auto-Estrada A8, ao Km 18,6, área da comarca de Mafra, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula n.° R..., do qual é proprietário, seguindo no sentido Loures/Torres Vedras.
2. A estrada naquele local comporta dois sentidos de trânsito, cada um com duas faixas de rodagem com 7,20 metros de largura.
3. A via no referido local configura uma recta e o estado do piso da estrada encontrava-se seco e em bom estado.
4. As condições de visibilidade sobre a estrada eram boas, o tempo estava limpo e existia luminosidade.
5. O arguido circulava na faixa de rodagem da direita da via, atento o referido sentido de marcha Loures/Torres Vedras.
6. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar seguiam, pela mesma via e no mesmo sentido, algumas dezenas de metros atrás da viatura do arguido, três veículos automóveis, pela seguinte ordem: em primeiro lugar, logo atrás do veículo do arguido, o veículo com a matrícula n.° HN; logo a seguir a este, o veículo com a matrícula n. XF; e, por fim, atrás deste, o veículo com a matrícula n. IZ.
7. Nas circunstâncias acima descritas, o arguido, depois de ultrapassar um veículo, travou e depois mudou bruscamente a sua viatura para a faixa direita da via, altura em que imobilizou o seu veículo na auto-estrada.
A descrita manobra do arguido deveu-se ao facto de o mesmo se ter enganado no percurso, pois pretendia seguir em direcção Mafra/Malveira e acabara de passar pela saída da auto-estrada que dava acesso a tal destino.
9. O arguido travou assim se apercebeu do seu erro, isto poucas dezenas de metros a seguir à referida saída da auto-estrada que dava acesso à Malveira e Mafra.
10. Logo depois de ter imobilizado o seu veículo, o arguido iniciou uma manobra de marcha atrás, visando recuar o veículo até à referida saída que dava acesso à Malveira e depois seguir pela mesma.
11. Ao engrenar a marcha atrás do veículo, foi automaticamente accionado o sistema de luzes avisadoras, na zona da traseira, as quais eram apenas visíveis para o condutor do veículo que seguia imediatamente na retaguarda do veículo conduzido pelo arguido.
12. Nesta altura, os condutores dos veículos de matrícula n.° HN e n.° XF, B e C, respectivamente, que tinham sido ultrapassados pela viatura do arguido e seguiam pela faixa da direita, foram surpreendidos pela manobra efectuada pelo arguido.
13. E, ao aperceberem-se da manobra, viram-se forçados a executar uma manobra de recurso, para evitarem embater com os seus veículos na parte traseira da viatura do arguido.
14. Por isso, guinaram as viaturas que conduziam, bruscamente e sem qualquer aviso, para a faixa da esquerda da referida via, logrando assim desviar-se do veículo do arguido e evitar o embate no mesmo.
15. Igual sorte não teve D, condutor e proprietário do veículo com a matrícula n.° IZ, onde seguiam também a sua mulher, E e F, filho do casal.
16. Com efeito, a viatura com a matrícula n.° IZ seguia também pela faixa direita da via, a uma velocidade de cerca de 80 Km/hora, imediatamente atrás dos veículos acima referidos.
17. Tal posicionamento relativo determinou que D não tivesse visibilidade sobre a zona onde o arguido parou o seu veículo e iniciou a manobra de marcha atrás, dado que os dois veículos que seguiam à sua frente tapavam a visibilidade sobre aquele veículo.
18. Foi assim que, depois dos veículos com as matrículas n.°s HN e XF terem guinado bruscamente para a esquerda, D deparou subitamente com a viatura do arguido R... a uma distância de poucos metros à sua frente, a efectuar a referida manobra de marcha atrás, ziguezagueando em marcha lenta na parte direita da aludida faixa de rodagem, atento o sentido Loures-Torres Vedras.
19. Em virtude da manobra imprevisível efectuada pelo veículo do arguido, que já tinha percorrido, em marcha atrás, uma distância de cerca de 50 metros, D não conseguiu desviar-se do veículo a tempo.
20. Tendo o veículo conduzido por D embatido com a sua parte frontal na traseira da viatura conduzida pelo arguido.
21. O embate entre os dois veículos verificou-se sensivelmente a meio da hemi-faixa de rodagem da direita da referida auto-estrada, atendendo ao sentido Loures-Torres Vedras, tendo ficado vestígios de vidros partidos no local do embate.
22. O embate foi maior pelo facto dos dois veículos seguirem em sentidos opostos.
23. Após o embate, as duas viaturas envolvidas imobilizaram-se na faixa de rodagem a curta distância uma da outra, tendo a parte traseira da viatura conduzida pelo arguido ficado situada 8,5 metros a frente do local da colisão,
24. Enquanto a retaguarda do veículo com a matrícula IZ ficou a uma distância de 4 metros à frente do local do embate.
25. Em consequência do descrito acidente, D, E e F foram projectados para a frente.
26. Em resultado do acidente, D e ambos os ocupantes que seguiam na viatura por ele conduzida, sofreram os ferimentos a seguir descriminados: (...).
27. F, foi transportado para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde acabou por falecer no próprio dia 26/09/98, pelas 15H15.
28. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, F sofreu as seguintes lesões, detectadas aquando da realização de autópsia ao seu cadáver: no hábito interno: laceração do baço; hemoperitoneu de cerca de 1200 ml; infiltração sanguínea do peritoneu; edema do encéfalo; congestão e ligeiro edema do parênquima pulmonar; congestão dos rins; cicatrizes no miocárdio do ventrículo esquerdo do coração.
29. Segundo as conclusões do relatório de autópsia: "A morte de F foi devida a hemoperitoneu consecutivo à rotura traumática do baço descrita" e "As lesões traumáticas descritas no n.° 4 do Hábito Externo alínea b) do Hábito Interno resultaram de traumatismo violento de natureza contundente, podendo ter sido devidas a "acidente de viação" como consta da informação"
30. Sendo certo que tais lesões resultaram de traumatismo violento de natureza contundente e foram provocadas pelo acidente de viação supra descrito.
31. Na sequência do acidente, E foi transportada ao Hospital de Santa Maria onde foi observada e medicada, constando da sua ficha clínica que sofreu "Fractura transversal do corpo esternal desalinhada". 32. As lesões sofridas por E foram causa directa, necessária e adequada de 90 dias de doença, os primeiros 30 com incapacidade para o trabalho.
33. O acidente de viação atrás relatado foi causa directa, necessária e exclusiva das lesões supra descritas.
34 E o acidente deveu-se ao facto do arguido ter efectuado a manobra de marcha atrás em plena auto-estrada.
35. O arguido sabia que estava obrigado a circular na referida via de circulação de forma a não criar perigo para a condução automóvel, e tinha conhecimento de que nas auto-estradas é expressamente proibido parar ou estacionar, inverter o sentido de marcha e fazer marcha atrás.
36. O arguido sabia que em virtude de se ter enganado no percurso só podia sair da auto-estrada no próximo acesso de saída a tal fim especificamente destinado.
37. Em vez disso, o arguido resolveu, voluntária e temerariamente, parar viatura e fazer marcha atrás, para regressar ao acesso de saída para a Malveira que, por descuido, tinha acabado de passar.
38. O arguido tinha plena consciência que a manobra de parar e efectuar a marcha atrás em plena auto-estrada era susceptível de criar sério perigo de colisão com outros veículos.
39. A manobra realizada pelo arguido implicava um alto grau de probabilidade de ocorrência de uma colisão com veículos que seguissem atrás, nomeadamente risco de um choque em cadeia, com as naturais consequências de morte ou ofensas corporais para os intervenientes.
40. Mas, ao invés de se abster de parar a viatura e efectuar marcha atrás em plena auto-estrada, o arguido confiou temerariamente que conseguiria efectuar tal manobra sem provocar o embate com outras viaturas.
41. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos e mostrou-se arrependido.
42. O arguido é pessoa trabalhadora, sendo empresário em nome individual e tendo dois empregados.
43. Vive com a mulher e os dois filhos gémeos que têm actualmente 5 anos de idade.
44. O arguido não tem antecedentes criminais.
5. Não vem discutida a medida da pena aplicada, sendo o objecto do recurso limitado à verificação dos pressupostos da suspensão da pena, que o recorrente pede e o Ministério Público contesta.
As penas curtas de prisão, que a lei segundo o seu próprio critério entendeu delimitar até aos três anos, devem ser substituídas pela suspensão da execução se «atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» - dispõe o artigo 50°, n° 1, do Código Penal.
A suspensão da execução da pena constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pêlos valores ao direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.
A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pêlos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laborai e comportamental como factores de exclusão.
Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, como resulta dos termos de imposição do artigo 50º, nº 1, do Código Penal («o tribunal suspende»), do exercido de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.
A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar sua a vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa.
Para além das circunstâncias do facto e das condições pessoais do agente, a satisfação das finalidades da punição constitui um dos pressupostos relevantes da suspensão da pena, no sentido de que esta medida não poderá ser decretada quando não satisfaça, em concreto, aquelas finalidades.
O artigo 40º, n.º 1, do Código Penal estabelece que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Esta disposição apresenta «uma forma plástica de um programa político criminal, cujo conteúdo e principais proposições cabe ao legislador fixar», condensado em «três proposições fundamentais» - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena (cfr., Anabela Miranda Rodrigues, "O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade", in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Homenagem a Claus Roxin, Lisboa, 2002, pags. 179 segs., desig. pág. 185-186).
As finalidades das penas (na previsão, na aplicação e na execução) são assim, na filosofia da lei penal portuguesa expressamente afirmada, a protecção de bens jurídicos e a integração de agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores, ou seja, de prevenção geral. A previsão, a aplicação ou a execução da pena devem prosseguir igualmente a realização de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes, ou seja uma finalidade de prevenção especial.
As finalidades das penas (de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização) conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
Num caso concreto, a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir, por isso, o motivo e o fundamento da escolha do modelo e da medida da pena; de tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas, e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
As imposições preventivas, especialmente de prevenção geral, são, porém, funcionalmente utilitaristas; uma pena serve, mas só serve, as finalidades de prevenção sempre que a sua natureza e medida em concreto sejam obtidas a partir desses mesmos fins. Por isso, no programa da lei, para evitar a expansão da lógica utilitarista preventiva, a culpa intervém como factor de legitimação da necessidade preventiva, sendo, assim, a funcionalidade subordinada pela «densidade axiológica»; a culpa tem determinada uma função de moderação, contraponto ou garantia contra uma lógica de utilitarismo preventivo (cfr. Anabela Miranda Rodrigues, loc. cit.).
6. Tendo presentes os princípios de política criminal que o legislador estabeleceu, há que apreciar as circunstâncias do caso sub judice na perspectiva da intervenção e aplicação das normas que abrigam tais princípios.
Na determinação dos pressupostos de suspensão da pena, as exigências de prevenção surgem num segundo momento de intervenção, segundo estritos critérios de necessidade: a efectividade da função (finalidade) preventiva apresenta-se como critério de sobreposição ao princípio da suspensão inscrito no artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
A pena em que o recorrente foi condenado - fixada em medida que não vem discutida - deve, pois, ser suspensa na sua execução, a não ser que, entre outras, exigências de prevenção se oponham à suspensão.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, cometido no exercício da condução, em resultado de uma manobra inconsiderada, em infracção às regras específicas da circulação rodoviária, que o Código da Estrada qualifica, no plano da valoração da contra-ordenações, como "muito grave" - artigos 137º e 147º, alínea g).
A infracção ás regras da condução em auto-estrada é, pois, avaliada pelo ligislador num acentuado plano de gravidade, tendo em conta a extraordinária potenciação dos riscos e das consequências que podem determinar para bens jurídicos da mais valiosa intensidade, como a vida e a integridade física. A confiança que as características próprias das auto-estradas transmite aos utilizadores, a fluidez de tráfego que permitem e a que se destinam, e as velocidades autorizadas, impõem aos condutores o estrito respeito pelas disposições e regras específicas de condução neste tipo de vias, aptas a prevenir a ocorrência de factos com possíveis consequências devastadoras.
Por isso, considerando a frequência com que se sucedem acidentes em auto-estradas, com resultados muito pesados para a vida e a integridade física dos utilizadores, as exigências de prevenção geral quanto à violação dos deveres de cuidado são aqui, como se refere na decisão recorrida, de forte intensidade.
No que respeita aos crimes cometidos por negligência, no domínio da circulação rodoviária, as imposições preventivas são, porém, muito da dimensão funcionalista da prevenção geral, sendo por aí que, a um tempo, se garante a confiança da comunidade na preservação dos mais relevantes bens jurídicos, e se firma, relembra e salienta a absoluta necessidade de conformação e actuação segundo os comportamentos devidos no exercício de actividades que comportam riscos para aqueles valores e que impõem, por isso, a observância de estritas regras de cuidado.
Neste domínio, a prevenção especial não exige, por regra, nem é imediata e adequadamente satisfeita pela pena, mas sobretudo pelas medidas acessórias de que esta possa ser acompanhada.
A prevenção geral assume, deste modo, uma função primordial de imposição dos comportamentos devidos e esperados no domínio de actividades sociais de intenso risco, e aptos a evitar consequências sérias e graves para bens fundamentais. A perspectiva da intervenção das finalidades de prevenção é, pois, de considerável pendor utilitarista, temperada, como a lei impõe, pela consideração da medida da culpa.
Mas, sendo assim, a intervenção preventiva geral na punição nos crimes negligentes cometidos no domínio da circulação rodoviária, só poderá realizar-se eficazmente quando a aplicação da pena for pronta, no sentido de próxima dos factos e da recordação comunitária das suas consequências, de modo a fazer sentir na comunidade a relação entre o comportamento ou a omissão dos deveres de cuidado e o resultado e a punição, podendo, assim, tal relação ser lembrada e razoavelmente apreensível.
De outro modo, a distância no tempo, para além de limites razoáveis, esbate a utilidade e a função, aqui específica, da prevenção geral, com necessários reflexos na proporcionalidade entre meios (a natureza e a medida da pena) e os fins (a prevenção geral primária); para além de um tempo adequado e razoável, o afastamento entre os factos e a aplicação da pena dilui a perspectiva utilitária da prevenção, e por isso, pode enfraquecer a necessidade de uma determinada pena mais intensa e exigente.
No caso sob apreciação, decorreram quase cinco anos entes os factos e aplicação da pena. A uma tal distância não pode já dizer-se, com segurança, que a pena de prisão efectiva seja necessária na dimensão funcional da prevenção geral; não sendo estritamente necessária, as necessidades de prevenção não se opõem à aplicação de uma pena de outra natureza.
Também, por outro lado, o comportamento posterior do agente e as circunstâncias do facto, podem fazer razoavelmente supor que a simples censura e a ameaça de execução da pena serão injunções fortes e suficientes para garantir a irrepetibilidade de comportamento semelhante, satisfazendo as finalidades da punição.
Verificam-se, assim, os pressupostos de aplicação do artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
7. Nestes termos, e em aplicação do disposto no artigo 50º, nºs 1 e 5, do Código Penal, concede-se provimento ao recurso, suspendendo-se por três anos a execução da pena em que o recorrente foi condenado.
Por exigências de reparação social, a suspensão vai, de acordo com o permitido no artigo 51º, nº 1, alínea c), do Código Penal, subordinada ao pagamento, no prazo de dois anos, da quantia de dois mil e quinhentos euros a uma instituição de solidariedade social, da escolha do recorrente e que intervenha na área da sua residência, ou a instituição pública ou privada que tenha por objecto o apoio à reabilitação de deficientes em consequência de acidentes rodoviários.
Não é devida taxa de justiça.

Lisboa, 17 de Abril de 2004
Henriques Gaspar
Antunes Grancho
Silva Flor