Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
MANDADO DE DESPEJO
EXECUÇÃO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
CÔNJUGE
EMBARGOS DE TERCEIRO
Sumário
I - Em execução de mandado de despejo, o cônjuge não arrendatário, que não foi demandado na acção declarativa, onde foi decretada a resolução do contrato de arrendamento habitacional e ordenado o despejo, pode usar de embargos terceiro contra tal execução. II - A especial protecção da casa de morada de família impõe que se considere tão relevante a posição do cônjuge arrendatário como a do não arrendatário. III - Trata-se da integração de uma lacuna da lei, exigida pelo espírito, coerência e unidade do sistema jurídico, por não fazer sentido que este, depois de impor o dever de demandar ambos os cônjuges, vede uma reacção posterior do cônjuge não demandado contra a violação desse dever.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 6-12-02, A deduziu contra B oposição, por embargos de terceiro, com função preventiva, contra o mandado de despejo, judicialmente ordenado, relativamente à casa de morada da família, sita na Rua do Salitre, nº. ..., em Lisboa, com o fundamento essencial de não ter sido demandada para a acção de despejo que declarou denunciado o contrato de arrendamento para habitação, de que era titular seu marido, C, com quem vivia e restante família, em comunhão de mesa e habitação.
Após a produção de prova informatória, o Exmo. Juiz proferiu o despacho de 19-11-03, que julgou inviáveis os presentes embargos de terceiro e decidiu não os receber, com fundamento em que o meio processual utilizado não é o legalmente adequado para defender o seu direito.
Agravou a embargante, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 6-11-03, negou provimento ao agravo e confirmou a decisão recorrida.
Continuando inconformada, a agravante interpôs recurso de agravo para este Supremo, onde conclui:
1 - O Acórdão recorrido, ao negar à recorrente a possibilidade de embargar de terceiro, ofende a eficácia relativa do caso julgado, já que a sentença proferida na acção de despejo não vincula a embargante, que nela não foi parte.
2 - O Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita a possibilidade da recorrente, enquanto contitular de um direito com pertinência locatícia, utilizar o instituto dos embargos de terceiro, com vista à defesa do seu direito de fruição da casa de morada da família.
A embargada contra-alegou em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Factos a considerar:
1 - A embargante é casada com C desde 18-8-77.
2 - O marido da embargante era o arrendatário do prédio sito na Rua do Salitre, nº. ..., em Lisboa.
3 - Por sentença, transitada em julgado, proferida em 17-1-94, na acção de despejo nº. 9103/93, do 4º Juízo Cível de Lisboa, que a ora embargada moveu contra o marido da embargante, foi declarado denunciado o mencionado contrato de arrendamento existente entre aquela e o marido da embargante, relativamente ao prédio em questão, tendo sido ordenado que o local arrendado fosse entregue à ora embargada, livre de pessoas e bens, mediante o pagamento da quantia de dois anos e meio de renda (fls. 53/54).
4 - A referida acção não foi contestada pelo réu.
5 - A embargante não foi demandada, nem teve intervenção nessa causa.
6 - Na sequência do trânsito da referida sentença, foi ordenada a emissão de mandado de despejo.
7 - O referido prédio é a casa de morada de família, onde a embargante e o marido vivem, com os filhos, desde há mais de 20 anos.
A questão a decidir consiste em saber se a recorrente, que não foi demandada, nem interveio na acção declarativa em que foi considerado denunciado do contrato de arrendamento para habitação, celebrado pelo cônjuge marido e em que foi decretado o despejo da casa de morada de família, pode usar de embargos de terceiro para defender o seu uso e fruição sobre aquela casa, na qualidade de consorte do titular do direito ao arrendamento.
Vejamos:
Dispõe o art. 351, nº. 1, do C.P.C.:
"Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro".
O art. 352º do mesmo diploma acrescenta:
"O cônjuge que tenha a posição de terceiro pode, sem autorização do outro, defender por meio de embargos os direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência prevista no artigo anterior ".
Perante estes preceitos, uma importante corrente da doutrina e da jurisprudência entende que ao cônjuge do arrendatário habitacional está vedado fazer uso dos embargos de terceiro contra a decisão que mande executar o despejo, já que este afecta apenas um direito próprio do arrendatário e não um direito comum dos cônjuges (Acs. S.T.J. de 6-3-86, Bol. 355-346; de 15-4-86, Bol. 356-291; de 28-5-86, Bol. 357-345, Antunes Varela, R.L.J. 119-249; Pereira Coelho, R.L.J. 122-142; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª ed., pág. 3967397).
Tal corrente baseia-se nos seguintes argumentos:
- seja qual for o regime matrimonial em que tenha siso celebrado o casamento, a posição do arrendatário habitacional não se comunica ao cônjuge - art. 83º do RAU;
- não sendo terceiro, não é licito ao cônjuge do arrendatário defender, por meio de embargos de terceiro, a posse ou composse derivada do contrato de arrendamento habitacional, por não a possuir;
- é certo que, no tocante à casa da morada de família, o cônjuge não arrendatário deve ser também demandado na acção de despejo, face ao disposto nos art. 1682º-B, al. a) do Cód. Civil e 28º-A, nº. 3 do C.P.C., por ser necessário o consentimento de ambos os cônjuges para a resolução ou denúncia do contrato de arrendamento a ela respeitante;
- mas a sua não intervenção é questão que interessa à acção de despejo e não aos embargos, na medida em que essa intervenção não lhe conferiria a posição de arrendatário;
- a violação do preceituado no citado art. 1682º-B, al. a) do C.C. tem apenas, como sanção, a especial anulabilidade prevista no art. 1687º do mesmo Código, não se justificando qualquer outro procedimento;
- o art. 1037º, nº. 2, do C.C., que concede tutela possessória ao arrendatário em situação de mera detenção ou posse precária, é uma norma excepcional que, por falta de comunicação da posição de arrendatário, não pode ir além da sua pessoa;
- não pode recorrer-se à integração analógica para colmatar uma lacuna que não existe no arrendamento habitacional, em relação ao cônjuge do arrendatário habitacional.
Que dizer ?
Julga-se ser possível outro entendimento.
Sem dúvida que a incomunicabilidade do arrendamento habitacional se encontra consagrada no art. 83º do RAU.
Mas o alcance prático deste princípio tem sofrido fortes limitações.
A protecção da casa de morada da família, com carácter global e integrado, operou-se com a reforma que o dec-lei 496/77, de 25 de Novembro, veio instituir no direito civil português.
Trata-se, como escreve Pereira Coelho (R.L.J. 122-136/137) "de defender a estabilidade da habitação familiar - de a defender, agora, não apenas contra ameaças ou perigos externos, senão também contra ameaças ou perigos internos - no interesse dos cônjuges e eventualmente dos filhos, tanto no decurso da vida conjugal, em termos normais, como nas situações de crise, provocadas quer pelo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, quer pelo falecimento de alguns dos cônjuges.
Mais concretamente:
A lei pretenderá, no primeiro caso, proteger cada um dos cônjuges contra actos de disposição sobre a casa de morada da família praticados pelo outro cônjuge e que possam pôr em perigo a estabilidade da vida familiar; no segundo caso, a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta as necessidades do outro; finalmente, no terceiro caso, o propósito da lei será o de assegurar ao cônjuge sobrevivo, tanto quanto possível, a sua permanência na casa da morada da família depois do falecimento do outro cônjuge.
Ao falar-se de protecção da casa de morada da família, são estes, fundamentalmente, os reais interesses que a lei tem intenção de proteger".
Tal política visa dar protecção à habitação da família, na sequência do pensamento programático da acção do Estado delineada nos arts. 65º e 67º da Constituição da República.
O objectivo transparente da lei "é proteger o interesse de qualquer dos cônjuges (e do agregado familiar em geral) à habitação contra os actos de disposição do outro cônjuge, a título de (cônjuge) arrendatário" (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed, pág. 306).
Assim, para garantir a protecção da casa de morada de família contra actos que possam prejudicar a sua utilização, a lei atribui aos beneficiários da protecção, que são os cônjuges, uma panóplia de direitos:
- a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família carece de consentimento de ambos os cônjuges, mesmo que vigore entre eles o regime da separação - art. 1682º-A, nº. 2, do C.C.;
- nenhum dos cônjuges pode dispor do direito ao arrendamento da casa de morada de família por qualquer dos modos previstos nas alíneas a), b) e c) do art. 1682º-B, sem consentimento do outro;
- a anulação dos actos de alienação, oneração arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família que sejam realizados sem o consentimento do outro cônjuge - art. 1687º do C.C.
- a constituição, ex novo, de arrendamento a favor de qualquer dos cônjuges, na sequência de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens - art. 1793º do C.C.;
- fixação de regime provisório, quanto à utilização da casa de morada de família, na pendência da acção de divórcio ou de separação litigiosos - art. 1407º, nº. 7 do C.P.C.
- transmissão do arrendamento por divórcio ou separação judicial de pessoas e bens - art. 84º do RAU.;
- transmissão do arrendamento por morte - art. 85º do RAU;
- encabeçamento, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada da família - art. 2103º-A do C.C.;
- necessidade de serem demandados ambos os cônjuges, sempre que estejam em causa acções que tenham por objecto directa ou indirectamente a casa de morada da família - art. único da Lei 35/81, de 27 de Agosto, e art. 28º-A, nº. 3, do C.P.C.
A política de protecção da casa de morada da família "pretende ser global, no sentido de que os instrumentos legais em que se traduz devem aplicar-se qualquer que seja o regime de bens do casamento e qualquer que seja o direito através do qual a casa de morada de família é assegurada: direito real (de propriedade, usufruto ou outro) ou direito de crédito (arrendamento)" (Pereira Coelho, R.L.J. 122-136).
Se o cônjuge não arrendatário tem o direito de pedir a anulação dos actos de que resulte a perda do direito ao abrigo do qual a casa de morada de família é utilizada, o sentido teleológico da protecção da casa de morada de família exige que ele se possa opor a todos os actos, ainda que judicialmente ordenados, que tenham posto em causa o direito que o cônjuge substancialmente poderia anular.
O cônjuge não arrendatário deverá poder defender-se de todas as agressões ao seu poder de utilização da casa de morada de família.
Por outro lado, poderá acrescentar-se que o meio de tutela da posse do locatário não é excepcional - arts. 1037º, nº. 2 do C.C.
É que esse meio não é concedido exclusivamente ao arrendatário, mas, de um modo geral, a todos os que possuem em nome de outrem - art. 1253º, al. c), 2ª parte do C.C.
Por isso, também dele gozam o parceiro pensador, o comodatário e o depositário - arts. 1125º, nº. 2, 1133º, nº. 2 e 1188º, nº. 2, do C.C.
À sombra do preceituado no citado art. 1253º, al. c), 2ª parte, do C.C., outras situações poderão ainda beneficiar, por via analógica, de protecção idêntica, sempre que haja "relações creditórias que confiram o gozo autónomo do respectivo objecto (v.g. no contrato promessa de alienação de coisa, quando esta seja entregue ao promitente adquirente antes da celebração do negócio definitivo" (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs 50/51).
Recusando a tese da excepcionalidade, também Lopes Cardoso (Manual da Acção Executiva, Reimpressão, 1987, pág. 385) e Palma Carlos (Acção Executiva, pág. 163), aceitam a extensão da tutela dos possuidores nomine alieno para além dos casos expressamente previstos na lei, desde que haja um "título semelhante" ao daqueles casos.
Não sofre dúvida que, in casu, não há preceito legal que expressamente confira à embargante a defesa da sua situação, como cônjuge do arrendatário, que não foi demandada na acção declarativa onde foi considerado denunciado o contrato de arrendamento da casa de morada de família e decretado o despejo.
A Comissão de Revisão do Código de Processo Civil, presidida pelo Prof. Antunes Varela (Actas no Bol. 402-47 e 52; Bol. 404-10; Bol. 414-25 e Bol. 415-8 e 15) pretendeu resolver a omissão, introduzindo um nº. 5, no art. 986º, com a seguinte redacção, a propósito dos casos de sustação da execução:
"Fica salva a possibilidade de oposição de terceiro, nos termos gerais, inclusive, do cônjuge do executado, se não tiver sido parte na acção declarativa".
Mas a questão ficou por resolver pela posterior Comissão de Revisão do Cód. Proc. Civil de 1995/1996.
O que permite a sua resolução em preenchimento de real lacuna, de acordo com a norma a criar pelo intérprete, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.
Como defende Nuno Salter Cid (A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, 262), o novo espírito subjacente à ideia de protecção da casa de morada de família, patente em diversos preceitos, impõe a conclusão de que o legislador, neste domínio, considera tão relevante a posição do cônjuge arrendatário, como a do não arrendatário, devendo, por isso, considerar-se que a possibilidade de utilização dos meios defesa da posse àquele facultada também a este aproveita, em tal situação. Tratar-se-ia, aqui, da integração, perfeitamente legítima, de uma verdadeira lacuna da lei, nos termos do art. 10º, nº. 3, do C.C., "reclamada pelo espírito e pela unidade (coerência) do sistema, já que não faz sentido que este, depois de estabelecer o dever de demandar ambos os cônjuges, vede uma reacção posterior do cônjuge não demandado contra a violação desse dever".
No mesmo sentido, opinam o Cons. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 3ª ed., pág. 404; Cons. Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 6ª ed. pág. 183.
Não se trata aqui "do problema da comunicação patrimonial da situação do arrendatário (o que acontece no arrendamento de cariz material, como é o caso do arrendamento comercial ou semelhante); trata-se da especial protecção da casa de morada da família, na linha do direito constitucional à habitação, - art. 65º da Constituição- e à protecção da família" (Pais de Sousa, Cardona Ferreira, Lemos Jorge, Arrendamento Urbano, Notas Práticas, 1995, Rei dos Livros, pág. 202).
Na jurisprudência, os Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 28-1-97 (Col. Ac. S.T.J., V, 1º, 74) e de 17-6-97 (Col. Ac. S.T.J., V, 2º, 130), entre outros, também decidiram no sentido da admissibilidade dos embargos de terceiro, em situação idêntica à destes autos.
Tudo justificado pela existência de uma lacuna e por uma interpretação actualista do sistema, "iniciada pelos preceitos constitucionais - arts. 65º e 67º - passando depois pelos arts. 1682º-B do C.C. e art. único da Lei 35/81, visando a protecção da casa de morada da família, que levará a dar igualitária relevância à posição do cônjuge arrendatário e à do não arrendatário" e por ser "incompreensível que o sistema imponha em defesa da família, o dever de demandar ambos os cônjuges, em litisconsórcio necessário passivo, e depois, em plena quebra da sua unidade, venha, pelo silêncio, ou por meios indirectos, a obstacular à ulterior defesa do não demandado, em violação daquele dever" (Ac. do S.T.J. de 28-1-97, Col. Ac. S.T.J, V., 1º, 74).
Em face do exposto, como a sentença proferida na acção de despejo não faz caso julgado contra a embargante, são admissíveis os presentes embargos de terceiro, face à prova informatória produzida - art. 354º do C.P.C.
Termos em que, no provimento do agravo, revogam o Acórdão recorrido e, com ele, a decisão da primeira instância, que deverá ser substituída por outra que receba os embargos de terceiro e ordene os seus termos subsequentes.
Custas pela embargada.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão