CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
QUALIFICAÇÃO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
RELAÇÃO CONTRATUAL DE FACTO
NULIDADE DO CONTRATO
EFEITOS
Sumário

I - A qualificação de um contrato é questão jurídico-normativa a solucionar por subsunção da factualidade clausulada aos preceitos legais, uma operação que abstrai da concreta vontade das partes dirigida a um ou outro modelo negocial, sendo por isso também relativamente despiciendo na qualificação o nomen iuris que os contraentes tenham decidido atribuir ao negócio;
II - Não obsta à qualificação jurídica como contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a circunstância de o negócio em apreço, celebrado em 20 de Outubro de 1999, ter sido titulado sub specie de «Contrato-promessa de cessão de exploração» e de na introdução ao articulado as partes prometerem, respectivamente, ceder e tomar a exploração do estabelecimento, quando nenhuma das cláusulas visa adjectivar um contrato-promessa, antes todas se consubstanciam na regulação detalhada de um contrato de cessão de exploração, cuja execução, por três anos renováveis, se iniciou no dia 30 de Outubro do mesmo ano previsto na cláusula 1.ª;
III - A lei nova que sujeita um certo tipo de contrato a determinada forma apenas se aplica, em princípio, aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor (artigo 12.º, n.º 1, primeira parte, do Código Civil);
IV - Declarado nulo o contrato por inobservância da forma legal, o efeito retroactivo da declaração de nulidade (artigo 289.º, n.º 1, do mesmo corpo de leis) não significa que tudo se passe como se o negócio jurídico não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos; posto que o evento da celebração do contrato teve lugar, não está ao alcance da ordem jurídica tratá-lo como se este não houvesse realmente ocorrido;
V - Tendo as partes efectuado prestações com fundamento no contrato nulo ou posto em execução uma relação obrigacional duradoura, deve o contrato inválido ser valorado, no tocante à ulterior composição inter-relacional dos contraentes, como «relação contratual de facto» susceptível de enquadrar os efeitos em causa, perspectivados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato nulo, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do acto na realidade praticado;
VI - No domínio das relações obrigacionais duradouras em curso de execução tudo se passará, por consequência, nos aspectos considerados, tal como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) produzisse os seus efeitos;
VII - As rendas devidas pela exploração do estabelecimento comercial, ao abrigo de contrato de cessão de exploração nulo, devem ser solvidas em execução do contrato nulo valorado como contrato de facto.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A" e "B", residentes na freguesia de Soajo, concelho de Arcos de Valdevez, propuseram no Tribunal de Viana do Castelo, em 10 de Novembro de 2000, contra C (1) , residente na freguesia de Darque, deste último concelho, acção ordinária visando: a declaração da resolução de contrato--promessa de cessão de exploração de restaurante e snack-bar do réu por iniciativa exclusiva deste, sem causa justificativa; e a sua condenação a restituir aos autores a caução de 400 000$00, e a pagar-lhes as indemnizações de 9 434 180$00, e de 1 000 000$00 a cada um por danos morais, acrescidas de juros à taxa legal a contar da citação até integral pagamento.
Contestou o réu e deduziu reconvenção, pedindo, por seu lado, a condenação dos autores no quantitativo de 3 990 000$00 a título de indemnização pela ilegal resolução do contrato de cessão de exploração e, como litigantes de má fé, em indemnização não inferior a 500 000$00. Na réplica aditam igualmente os demandantes idêntico pedido de condenação em multa e indemnização de 500 000$00 a cada um por litigância maliciosa do demandado.
Prosseguindo o processo neste quadro os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final em 12 de Junho de 2002, que declarou resolvido o contrato de cessão de exploração por culpa exclusiva do réu, condenando-o a pagar aos autores, por compensação parcial, a quantia de 17 192,7 € inerente a responsabilidade contratual, e a de 1 446,51 € inerente a responsabilidade por facto ilícito, acrescidas de juros à taxa anual de 7%, desde 21 de Novembro de 2000, data da citação, até efectivo pagamento.
A reconvenção improcedeu, julgando-se ademais inexistente litigância de má fé por banda de qualquer uma das partes.
Apelou o réu para a Relação de Guimarães, a qual, por um lado, confirmou a sentença no tocante à resolução do contrato, condenando o réu a restituir aos autores a importância de 1 995,19 € (equivalente a 400 000$00), e a pagar-lhes a indemnização de 1 446,51 € (equivalente a 290 000$00), ambas com juros à taxa legal a partir da citação.
Por outro lado, julgou parcialmente procedente a reconvenção, condenando os autores, da globalidade do pedido, a solverem ao réu tão-somente a quantia de 262,27 € (equivalente a 52 580$60).
Do acórdão neste sentido proferido, em 9 de Abril de 2003, trazem os autores a presente revista.
E o seu objecto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste estritamente em saber, como adiante se precisará, se as partes respondem, com que fundamentos, pelas importâncias em que foram condenadas na 2.ª instância.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, que se reproduz do acórdão em revista com referência às respectivas fontes da especificação e questionário:
1.1. «O réu é dono do prédio urbano de casa com dois pavimentos destinado a habitação e comércio ou indústria, sito em Santoinho, Darque, [alínea A) da especificação];
1.2. «Em 20 de Outubro de 1999 autores e réu celebraram o contrato escrito junto com a petição inicial como documento l, com a denominação ‘contrato promessa de cessão de exploração’, o que fizeram nos termos das cláusulas dele constantes e do qual é parte integrante uma relação de bens, cujo teor aqui se dá por reproduzido [alínea B),];
1.3. «Na data da assinatura do contrato mencionado em B), o réu recebeu dos autores a quantia de 400 000$00, destinada a caucionar os bens móveis existentes no estabelecimento [alínea C)].;
1.4. «Aquando da entrega do estabelecimento os autores pagaram ao réu a quantia de 70 000$00 a título de renda referente ao mês de Novembro de 1999 [alínea D)];
1.5. «O réu entregou o estabelecimento aos autores em 30 de Outubro de 1999 (quesitos 1° e 2°), e o estabelecimento abriu as portas ao público em 11 de Novembro de 1999 (quesito 4.°);
1.6. «Quando os Autores optaram por alterar a hora de abertura do estabelecimento das 7 para as 9 horas, mantendo a hora de fecho às 24 horas, o réu opôs-se (5.°);
1.7. «Na tarde de 7 de Dezembro de 1999 o réu e os autores discutiram (11.º), tendo a autora chamado a G.N.R. ao local (15.°);
1.8. «No dia 8 de Dezembro de 1999, pela manhã cedo, o réu introduziu-se contra a vontade dos autores no estabelecimento fechado, arrombando-o e chamando em seguida a G.N.R. (16.°) acabando os autores por ser informados por esta que o réu lhe havia transmitido que tinha ocorrido um roubo (17.°), o que era falso (l8.°);
1.9. «Apesar da insistência dos autores para entregar a chave do estabelecimento, o réu recusou fazê-lo (19.°);
1.10. «Os autores deixaram no estabelecimento uma máquina de jogo de vídeo e uma máquina de café que não lhes pertenciam, bem como os seguintes artigos, que lhes pertenciam:
- um fogão no valor de 30 000$00;
- um frigorífico no valor de 30 000$00;
- um móvel louceiro no valor de 50.000$00;
- uma máquina de cortar fiambre no valor de 30 000$00;
- géneros alimentícios, bebidas, toalhas, artigos de limpeza e cigarros no valor de 150 000$00 (20.°);
1.11. «Os autores pagaram à Câmara Municipal de Viana do Castelo a quantia de 4 180$00 a título de depósito de garantia de água (21.°);
1.12. «Os autores dedicaram-se até 8 de Dezembro de 1999 a tempo inteiro à exploração directa do estabelecimento, podendo obter um lucro líquido anual, a repartir pelos dois, de um milhão e cem mil escudos (22.°);
1.13. «Em 8 de Dezembro de 1999 o réu substituiu as chaves do estabelecimento (29.°).»
2. Com fundamento na factualidade que acaba de se descrever, o Tribunal de Viana do Castelo resolveu o litígio, à luz do direito tido por aplicável, pela forma que seguidamente se resume.
2.1. Desde logo, o contrato escrito, de 20 de Outubro de 1999, que as partes designaram como «contrato-promessa de cessão de exploração» (supra, II, 1.2.), foi validado quanto à forma como contrato de cessão de exploração pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril - em vigor a 1 de Maio seguinte (artigo 3.º) -, na medida em que, devendo anteriormente ser celebrado por escritura pública (2), passou, por este diploma, a estar sujeito a simples documento escrito (3) - cita-se na sentença em conjugação o artigo 12.º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil.
Através, por conseguinte, do contrato em causa, o réu obrigou-se a ceder aos autores a exploração do seu estabelecimento de restaurante e snack-bar referido nos autos, durante 3 anos renováveis por períodos sucessivos de 1 ano, com início em 30 de Outubro de 1999 e termo previsto para 30 de Setembro de 2002, mediante uma retribuição global mínima de 5 121 600$00 (4).
Entregue o restaurante aos autores a 30 de Outubro de 1999 (supra, II, 1.5.), o réu decidiu, todavia, pôr fim unilateralmente ao contrato em 8 de Dezembro seguinte, ocupando o local, mudando as fechaduras e recusando aos autores a entrega das chaves do estabelecimento (supra, II, 1.8., 1.9. e 1.13.).
Nesta última data, afirma a sentença, os autores deviam ao réu 30 contos da renda do mês de Novembro e 100 contos do mês de Dezembro, mas tais incumprimentos não permitiam ao réu resolver o contrato sem prévia conversão da mora em incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808.º do Código Civil.
A atitude do réu tornou impossível a manutenção do contrato, determinando-lhe o dever de indemnizar os autores pelos prejuízos ocasionados (artigos 801.º, n.º 1, 798.º, 799.º, n.º 2, 562.º e 564.º, n.º 1, do Código Civil) -, maxime os lucros (cessantes) que estes previsivelmente deixaram de auferir por todo o prazo contratual restante (de 8 de Dezembro de 1999 a 30 de Setembro de 2002) (5) -, computados em 3 099 406$30, além de 400 000$00 da caução a devolver pelo réu, tudo atingindo o quantitativo global de 3 499 406$30.
Mas os autores deviam 30 000$00 da renda de Novembro e 22 580$60 relativos a 7 dias de Dezembro de 1999 - a partir de 8 deste mês o réu deixou de ter título para lhes exigir retribuição -, isto é, 52 580$60 a compensar naquele quantitativo, que assim ficava reduzido a 3 446 826$00.
Por fim, o réu tem que indemnizar os autores pelos móveis e artigos a eles pertencentes, no valor de 290 contos (supra, II, 1.10.), de que se apossou ilicitamente (artigo 483.º).
2.2. Nos termos expostos, foi declarado resolvido o contrato de cessão de exploração desde 8 de Dezembro de 1999, por impossibilidade de cumprimento imputável a culpa exclusiva do réu, sendo este condenado a solver aos autores as importâncias de 17 192,7 € (correspondente a 3 446 826$00), a título de responsabilidade contratual, e de 1 446,51 € (equivalente a 290 000$00), com fundamento em responsabilidade por facto ilícito, acrescidas de juros à taxa legal de 7% desde a citação.
A reconvenção improcedeu na totalidade, «uma vez que - pondera a sentença - o crédito reconhecido ao réu sobre os autores não excede o valor do pedido pecuniário formulado por estes».
3. A posição assumida pela Relação de Guimarães com base nos mesmos factos divergiu, todavia, substancialmente da sentença do Tribunal de Viana do Castelo.
3.1. De imediato, no tocante à qualificação e condições de validade do contrato.
Importa de facto conhecer com algum detalhe as construções jurídicas ensaiadas na 2.ª instância, pesem os ónus daí resultantes na economia do presente recurso.
Pondera o aresto em revista, que as condições de validade formal de um contrato se aferem pela lei vigente no momento em que foi celebrado (artigo 12.º n.º 2, primeira parte, do Código Civil). E nos termos da alínea m) do n.º 2 do artigo 80.º do Código do Notariado (6), vigente na data de celebração do presente contrato - 20 de Outubro de 1999, como sabemos -, a cessão de exploração de estabelecimento estava sujeita a escritura pública. Pelo que, a qualificação nesse sentido, perfilhada na sentença, do negócio sub iudicio, celebrado por simples documento escrito, conduz à sua nulidade por inobservância de forma legal (artigo 220.º do Código Civil).
Analisando o contrato - que as partes epigrafaram como contrato-promessa, e pelo qual, em síntese, o réu promete ceder temporariamente a exploração do seu restaurante e snack-bar aos autores mediante certa retribuição, prometendo estes, por seu turno, explorá-lo nessas condições -, conclui a Relação que as cláusulas contratuais contêm os elementos integradores do contrato definitivo, podendo o convénio merecer a qualificação de cessão de exploração de estabelecimento comercial.
Nesta óptica o contrato seria nulo por inobservância da forma legal da escritura pública, como se viu.
Todavia, o clausulado específico do contrato de cessão não impede a qualificação do negócio em apreço como contrato-promessa de cessão de exploração. Tanto mais que «na moderna função do contrato-promessa» vai implicada a «antecipação dos efeitos» do contrato prometido (7). E as partes, argumenta o aresto, assim titularam o negócio celebrado, vindo qualquer delas a accionar na presente acção a responsabilidade civil da outra com base no incumprimento, justamente, do contrato-promessa.
Neste conspecto, o acórdão recorrido reconhece, é certo, «que o fim prosseguido pelas partes foi o de garantir os resultados jurídicos e patrimoniais oriundos do contrato prometido», dando a este efectiva execução a partir de 30 de Outubro de 1999, com a exploração do restaurante e o pagamento de uma parte da renda prevista para o mês de Novembro. Mas propende no sentido de que a vontade real das partes terá sido a de celebrarem um semelhante negócio preliminar. E, a entender-se que pretenderam concluir o contrato de cessão de exploração - aliás, nulo -, à mesma solução se chegaria por conversão deste naquele (artigo 293.º do Código Civil), posto que sempre a sua vontade hipotética seria essa, caso tivessem previsto a nulidade.
3.2. Assim qualificado o negócio jurídico como contrato-promessa de cessão de exploração, interessava seguidamente apurar se houve incumprimento, sua imputabilidade, e admissibilidade da resolução.
Neste plano entendeu a Relação que o comportamento do réu no dia 8 de Dezembro de 1999 demonstrara inequivocamente a vontade de não cumprir.
E quando o devedor declara que não quer cumprir, ou pratica actos e adopta comportamentos concludentes no mesmo sentido, considera a doutrina ser esse um dos casos, entre outros - com destaque para as situações delineadas no artigo 808.º, n.º 1 -, equiparados a incumprimento definitivo (8).
Não se trata, portanto, de um caso de impossibilidade da prestação à luz do artigo 801.º, n.º 1, como julgou a sentença, mas de incumprimento definitivo pelo réu.
Pois bem. Este incumprimento confere aos autores o direito à resolução do contrato-promessa, nos termos do artigo 432.º, com a consequente restituição da caução de 400 contos, conforme os artigos 433.º e 289.º, e, ainda, o direito de indemnização dos danos resultantes da inexecução do contrato.
3.3. Todavia, os danos indemnizáveis não são os correspondentes à lesão do interesse contratual positivo, à perda, por conseguinte, dos benefícios que os autores normalmente aufeririam do cumprimento e execução do contrato, como se decidiu na 1.ª instância.
Uma vez que a resolução é equiparada, em princípio, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433.º), os autores apenas têm direito à indemnização do prejuízo resultante da celebração do contrato, que não sofreriam se o contrato não tivesse sido celebrado, perfilando-se estritamente, dito de outro modo, a indemnização do interesse negativo ou de confiança.
Não têm, pois, direito à indemnização de 3 099 406$00 arbitrada na sentença a título de responsabilidade contratual, mas apenas o direito de serem indemnizados em 290 contos correspondentes ao valor dos bens de que ficaram privados mercê da conduta do réu, nos termos dos artigos 483.º e 562.º
3. 4. Quanto à reconvenção, o réu não logrou provar que os autores abandonaram sem qualquer explicação a exploração do estabelecimento em 7 de Dezembro de 1999, improcedendo assim o pedido de resolução do contrato deduzido com esse fundamento, e, consequentemente, o pedido de condenação dos autores no pagamento de 3 050 contos relativos ás rendas da cessão.
Improcederam do mesmo modo os pedidos de condenação dos autores a pagarem ao réu 900 contos (valor das bebidas) e 440 contos (material danificado), por falta de prova dos respectivos factos fundamentadores.
Subsiste apenas a condenação dos demandantes na quantia de 52 580$00 concernente a parte da renda de Novembro (30 contos) e a 7 dias de Dezembro (22 580$00), conforme decidido na sentença, nesse ponto transitada em julgado posto que não impugnada por qualquer das partes.
Entendera-se, porém, aí compensar aquela importância na indemnização de 3 449 406$30 a solver pelo réu aos autores, mas não sendo esta devida queda a compensação prejudicada.
3.4. Sintetizando em conclusão os aspectos precedentemente sumariados, o acórdão recorrido decidiu, por um lado, julgar parcialmente procedente a acção, declarando resolvido o contrato de cessão de exploração desde 8 de Dezembro de 1999, por incumprimento do réu; e condenar este a restituir aos autores a quantia de 1 995,19 € (equivalente a 400 contos), bem como a pagar-lhes a indemnização de 1 446,51 € (equivalente a 290 contos), acrescendo em ambos os casos os juros legais desde a citação.
Por outro lado, julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional, condenando os autores a pagarem ao réu o montante de 262,27 € (correspondente a 52 580$00).
4. Da decisão dissentem os autores mediante a presente revista, sintetizando a alegação nas conclusões seguintes:
4.1. «O contrato celebrado entre recorrentes e recorrido é plenamente eficaz e válido inter-partes, até porque elas não o puseram sequer em crise;
4.2. «O pedido de resolução e a consequente indemnização reclamada, foram causados por forma ilícita e abusiva pelo recorrido, tanto mais que se as partes são responsáveis civilmente pela consequências nefastas na elaboração de um contrato, isto é, em sede pré-negocial, por maioria de razão terão de ser responsabilizadas pelas consequências negativas do rompimento dos contratos já celebrados;
4.3. «A declaração de uma nulidade formal, neste caso e nestas condições, é completamente desvirtuadora do sentido da lei, mesmo porque pode acontecer oficiosamente, e porque no caso sub judice, efectivamente não foram as partes que levantaram tal questão, é estranho que o tribunal se sobreponha aos interessados, quando eles até reclamam indemnizações uns aos outros, por imputação de factos;
4.4. «A decisão recorrida violou os artigos 334.°, 410.°, 483.°, 562.°, 801.°, 790.°, e 791.°, todos do Código Civil.», pelo que, «deve ser dado provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido e confirmando-se a decisão da primeira instância, por ser de elementar justiça.»
5. O réu não apresentou contra-alegação.
III
Coligidos nos termos expostos os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.
E neste sentido importa desde já salientar que os factos disponíveis e o direito por estes convocado nos sugerem um percurso diferente daquele trilhado pela Relação de Guimarães.
1. Primacialmente no tocante à compreensão jurídica do negócio que constitui elemento integrador das causas de pedir complexas de acção e reconvenção.
Advirta-se, com efeito, liminarmente que a qualificação de um contrato, na perspectiva da definição do respectivo regime, é uma questão jurídico-normativa a solucionar fundamentalmente por subsunção da factualidade convencionada aos módulos legais. Traduzindo-se a liberdade que o artigo 405.º do Código Civil reconhece aos contraentes essencialmente na definição desse conteúdo, e de modo nenhum na livre escolha de um tipo contratual envolvente do clausulado, como quer que este se configure, trata-se, na qualificação jurídica de um contrato, de operação que abstrai da concreta vontade das partes dirigida a um ou outro modelo negocial, sendo por isso mesmo relativamente despiciendo na qualificação o nomen iuris que as partes tenham decidido aplicar ao convénio.
Sucede justamente que as partes intitularam o negócio jurídico em apreço como «Contrato-promessa de cessão de exploração». Mas, para além desta epígrafe e da introdução ao articulado, onde o réu «promete ceder» aos autores a exploração do restaurante e snack--bar, «prometendo estes tomar-lhes o mesmo a esse título», nenhuma cláusula do contrato se pode verdadeiramente dizer adjectiva de um contrato promessa - quando com razoabilidade se esperaria, v. g., pelo menos a inserção de uma previsão, conquanto não essencial, acerca do momento da celebração do contrato definitivo.
Bem ao invés, das 15 cláusulas do contrato todas vão impressivamente dedicadas à regulação, razoavelmente detalhada, de um contrato efectivo de cessão de exploração, concitando por isso esta qualificação, como a Relação não deixou de admitir, com preferência à de contrato-promessa.
Considere-se, a título de exemplo, a cláusula 1.ª: «A cessão é feita pelo prazo de três anos, inicia-se no dia trinta de Outubro de mil novecentos e noventa e nove e terminará no dia trinta de Setembro de dois mil e dois, renovando-se por períodos sucessivos de um ano enquanto não for denunciado por qualquer dos contratantes nos termo da lei em vigor.»
Admite-se, em tais condições, que no período inicial de vigência do contrato - entre a data da celebração, a 20 de Outubro de 1999, até 30 do mesmo mês - quiescesse o negócio sub species de contrato-promessa.
O facto, contudo, é que a partir desta última data se inicia a cessão, pelo prazo de três anos, aliás renovável por períodos sucessivos de um ano enquanto não for denunciada por qualquer dos contraentes - mecanismo que afinal tornava desnecessária qualquer especial previsão, no denominado «contrato-promessa», em torno da celebração do contrato prometido.
Se, pois, o contrato em apreço fosse juridicamente qualificado como contrato--promessa, bem podia o mesmo permanecer nessa veste até ao termo de extinção previsto, em 30 de Setembro de 2002, e para além dele ainda, através de sucessivas renovações, por tempo indeterminado. E convocando paradoxalmente o regime jurídico dos pré-contratos, apesar de a sua execução se desenvolver, entre os contraentes e frente à clientela, como contrato definitivo.
Por isso propendemos a caracterizá-lo como contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, e não como simples contrato-promessa desta espécie negocial.
Poderia objectar-se, em detrimento da qualificação, que se tratou meramente de antecipar efeitos do contrato prometido, como de resto é vulgar na prática jurídica. Reconheça-se, porém, face ao clausulado contratual em presença, ter sido bem mais do que isso, posto que, pelo menos a partir de 30 de Outubro de 1999, como se mostrou, passou realmente a vigorar entre as partes um efectivo contrato de cessão de exploração do restaurante e snack-bar do réu.
Aliás, a ideia de que no contrato preliminar vai geneticamente implicado o contrato definitivo não poderá, salvo o devido respeito, explicar juridicamente que este se execute com normalidade na investidura precária daquele, do primeiro ao último dia de vigência.
Observar-se-á, por fim, que o tópico metodológico da conservação dos negócios jurídicos não deve, sem mais, redundar em preterição do escopo visado mediante a exigência de uma determinada forma legal, como aconteceria no nosso caso, uma vez que o contrato de cessão estava sujeito a escritura pública, sendo por isso nulo - a Relação bem o demonstrou.
2. Efectivamente, era essa a forma exigida pela alínea m) do n.º 2 do artigo 80.º do Código do Notariado, em vigor no momento da celebração do contrato, que só veio a ser revogada pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril - assim o vimos oportunamente (cfr. supra, notas 2 e 3).
Ora, neste caso a lei nova apenas se aplicava à forma dos contratos futuros, nos termos expressivos da primeira parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil - razão pela qual, de resto, não poderia o contrato resultar convalidado mercê do citado diploma, consoante admitiu o Tribunal de Viana do Castelo.
Sendo, por conseguinte, o contrato nulo - e o vício é de conhecimento oficioso a todo o tempo (artigo 286.º) -, dir-se-ia, pelo «efeito retroactivo» da declaração de nulidade, que tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado, ou produzido quaisquer efeitos, nessa medida, justamente, «devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente», como dispõe o n.º 1 do artigo 289.º
Todavia, a afirmação deve ser entendida em termos hábeis.
Consoante se ponderou em recente aresto deste Supremo Tribunal de Justiça (9), a nulidade, conquanto tipificada por categóricos predicados de neutralização do contrato operando ex tunc, não significa que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido (10).
A celebração do negócio revela-o existente como evento e por isso não está ao alcance da ordem jurídica tratar o acto realizado como se este não houvesse realmente ocorrido, mas apenas recusar-lhe a produção de efeitos jurídicos que lhe vão implicados.
Não é assim rigorosa a asserção de que, mercê da nulidade, tudo se passe como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Exactamente porque o contrato na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes.
Os contraentes podem realmente ter efectuado prestações com fundamento no contrato nulo, ou posto in essere uma relação obrigacional duradoura, dando lugar à abertura de uma composição inter-relacional dos interesses respectivos - v. g., sendo nulo o contrato de trabalho, todavia o trabalhador prestara efectivamente os seus serviços à entidade patronal; em execução de contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial nulo, o cedente entregou o estabelecimento ao cessionário, que o explorou, solvendo as respectivas retribuições ou tendo deixado de pagar alguma delas, ali acondicionando móveis e produtos do seu comércio.
Neste conspecto, observa-se estar hoje generalizado o entendimento segundo o qual deve o contrato nulo ser valorado, em semelhante circunstancialismo, no tocante ao desenvolvimento ulterior da aludida composição entre as partes, como «relação contratual de facto» (faktisches Vertragsverhältnis), susceptível de fundamentar os efeitos em causa (v. g., a remuneração do trabalho prestado no quadro do contrato laboral nulo por incapacidade negocial do trabalhador; a restituição do estabelecimento ao cedente e dos móveis e produtos ou do respectivo valor ao cessionário da exploração comercial, verificada a cessação desta, o pagamento da renda quiçá em atraso), encarados agora, não como efeitos jurídico-negociais de contrato inválido, mas na dimensão de efeitos (ex lege) do acto na realidade praticado (11).
E deste modo, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do «contrato de facto» - «contrato imperfeito» (fehlerhafter Vertrag), noutra terminologia; de «errada perfeição», como no assento deste Supremo citado há momentos - tudo se passará, nos aspectos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) operasse os seus efeitos (12).
Recordar-se-á apenas que as próprias relações contratuais de facto que fluem do contrato de cessão de exploração nulo, já em 8 de Dezembro de 1999 tinham cessado, em virtude do comportamento do réu dado como provado, pelo qual, ocupando o estabelecimento e impedindo peremptoriamente o acesso dos autores, pôs termo à sua exploração.
3. Em conclusão, as relações litigiosas emergentes do contrato discutido no processo devem ser apreciadas e resolvidas à luz da fundamentação esboçada.
Trata-se afinal, com distinta fundamentação, dos mesmos resultados a que se chegou no acórdão recorrido.
As rendas em dívida pelos autores, no valor de 52 580$00 (262,27 €), devem ser solvidas em execução do contrato nulo valorado como contrato de facto - pela mesma razão não tendo que ser devolvida a parte da renda paga, apesar do efeito retroactivo da invalidade.
O valor dos móveis e produtos pertencentes aos autores, no montante de 290 contos (1 446,51 €) deve ser-lhes indemnizado, uma vez extinta a relação de facto entre os litigantes a 8 de Dezembro de 1999 e, primacialmente, com base na responsabilidade extracontratual do réu, que das coisas se apossou, como vem decidido.
Por cessação na aludida data do contrato de facto, e, numa fundamentação de direito positivo, por força do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, deve igualmente ser restituída aos autores a caução de 400 contos (1 995,19 €).
Sobre as quantias em que o réu é condenado incidem os juros moratórios decididos na Relação.
3. Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando com outra fundamentação o acórdão recorrido.
Custas pelos autores recorrentes (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 6 de Maio de 2004
Lucas Coelho
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
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(1) Que litiga com apoio judiciário oportunamente concedido (fls.42/43).
(2 ) Alínea m) do n.º 2 do artigo 80.º do Código do Notariado, na redacção do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 40/96, de 7 de Maio.
(3) Isto, por um lado, mercê da revogação expressa da citada alínea m) pelo artigo 2.º do Decreto-lei n.º 64--A/2000. Por outro lado, em virtude da alteração que o artigo 1.º deste diploma introduziu no n.º 3 do artigo 111.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, passou este na nova redacção a preceituar: «A cessão de exploração do estabelecimento comercial deve constar de documento escrito, sob pena de nulidade.».
(4) Efectivamente, nos termos da cláusula 2.ª, a renda anual ajustada para o primeiro ano de vigência do contrato cifrava-se em 1 320 contos, a pagar, em duodécimos mensais de 100 contos no primeiro semestre e 120 contos no segundo semestre, nos primeiros 5 dias úteis do mês respectivo (cláusula 4.ª); a cláusula 3.ª previa, por outro lado, actualizações da renda por acordo no início do segundo e terceiro anos, com um aumento mínimo de 20% desde logo estipulado..
(5) Não se provando os danos morais pedidos pelos autores, e considerando-se ademais que o réu não respondia pelos 4 180$00 pagos à Câmara de Viana do Castelo título de garantia de abastecimento de água (supra, II, 1.11.).
(6) Cita-se no acórdão por lapso manifesto a alínea k) do artigo 89.º (cfr. supra, nota 2).
(7) Nesta linha de pensamento evoca a Relação o acórdão do Supremo, de 15 de Outubro de 1996, «Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça», Ano VI (1996), Tomo III, pág. 59
(8) Refira-se neste sentido, efectivamente - além dos subsídios doutrinários e jurisprudenciais recenseados pela Relação de Guimarães -, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição (Reimpressão da 7.º edição, de 1997), Almedina, Coimbra, Julho de 2001, págs. 92 e 107, nota 1.
(9) Acórdão, de 16 de Outubro de 2003, na revista n.º 484/03, 2.ª Secção, que se acompanha por instantes muito de perto, citando Larenz/Wolf, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts
(10) No assento n.º 4/95, de 28 de Março de 1995, apud acórdão citado na nota 9, escreve-se, justamente que o «contrato nulo não é um nada jurídico, mas algo de existente (embora de errada perfeição)»
(11) Larenz/Wolf, op. cit., apud acórdão referenciado supra, nota 9.
(12) Larenz/Wolf, ibidem.