Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE ORIGINÁRIA
POSSE PRECÁRIA
ANIMUS SIBI HABENDI
INVERSÃO DE TÍTULO
Sumário
I - A inversão do título da posse por oposição do detentor tem uma natureza receptícia, tendo de se exteriorizar face àquele perante quem produzirá efeitos jurídicos, ou seja, aquele que constituiu a posse precária. II - Num contrato promessa de compra e venda de fracção autónoma, a tradição da coisa, com o pagamento integral do preço, implica uma posse originária, dado que, nesse caso, o animus originário do promitente comprador é o de proprietário.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
A, B e C moveram a presente acção ordinária contra D, pedindo que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre determinada fracção autónoma, condenando-se o réu a restituir-lhes a posse da mesma.
Em resumo, alegam a aquisição do referido direito de propriedade por usucapião.
Contestou o réu.
Houve réplica dos autores.
O processo seguiu os seus trâmites e, após julgamento, foi proferida sentença em que se absolveu o réu do pedido.
Recorreram os autores, tendo o Tribunal da Relação concedido a apelação e, consequentemente, julgado aqueles proprietários do imóvel em causa e condenado o réu na sua restituição.
Recorre, agora, este último, o qual nas suas alegações de recurso apresenta as seguintes conclusões:
1- O contrato promessa celebrado pelo antecessor dos autores não era susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador. Tendo os autores e o seu antecessor obtido a entrega do imóvel antes da celebração do negócio translativo, adquiriram o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando, pois, na situação de meros detentores ou possuidores precários. (artº 1253º b).
2- Possuíram a título de mera tolerância, tendo, como detentores precários praticado meros actos de administração, sem contudo exercerem domínio de facto sobre o imóvel.
3- Para que tivesse havido posse era preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto; era preciso que tivesse havido por parte do detentor a intenção "animus" de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela (artº 1251º do C. C.).
4- Não há prova documental que alicerce o pagamento da totalidade do preço, bem como, no período de 10 anos de 1974 a 1984, não há prova nos autos do pagamento do condomínio, contribuições, despesas de água e luz.
5- Não se apurou em audiência de julgamento se os autores e o seu antecessor fizeram oposição àquela (Praialonga), em cujo nome possuíam, para que tenha havido inversão do título da posse cf. 1265º do C. C.). Como acto material inequívoco de oposição, de que a Praialonga tenha tomado conhecimento, só poderá ser considerada a acção específica intentada em 1984, não tendo até 1997 decorrido prazo relevante para efeitos de usucapião.
6- Ao decidir ao invés, o acórdão do Tribunal da Relação violou o correcto entendimento dos supra indicados preceitos legais.
II
Dado que a matéria de facto dada por assente pelas instâncias não foi impugnada, nem é caso da sua modificação, nos termos dos artºs 726º e 713º nº 6 do C. P. Civil, consigna-se a mesma por remissão para o que consta de fls. 507 a 508.
III
Apreciando
1- Ao corpus possessório que deriva da entrega da coisa prometida ao promitente comprador não corresponde, por regra, uma intenção de agir como verdadeiro proprietário da mesma, na medida em que a continuidade dos poderes que passam a ser exercidos por aquele, está condicionada pela futura outorga do contrato definitivo. Para que se converta em possuidor é necessário que ocorra uma inversão no animus e passe a deter em nome próprio, ou seja, que os poderes de facto que exerce sejam a aparência de um direito real seu e não de outrem. - cf. artºs 1251º, 1263º al. d) e 1265º do C. Civil. - .
A jurisprudência, no entanto admite que, em certas circunstâncias, o promitente comprador, passe logo a agir como dono, nomeadamente, quando a entrega da coisa pareça corresponder já a um cumprimento do contrato prometido. Como seria o caso do pagamento da totalidade do preço. Neste caso, ao cidadão médio o contrato de compra e venda afigura-se como uma mera formalidade, que não exclui que em termos sócio-económicos a venda já esteja perfeita. Pelo que exerce, originariamente, os poderes inerentes ao gozo de coisa própria: cf. o AC deste STJ de 0407.02 - Sumários 2002 236 - : "Mesmo partindo do princípio de que a entrega da coisa configura um acto de mera tolerância do promitente vendedor - artº 1253º al. b) do CC - e que tal situação não goza de tutela possessória, mesmo assim sempre seriam de admitir casos excepcionais em que a tradição parece corresponder já ao cumprimento do contrato prometido, nomeadamente, quando o preço foi todo ou quase todo pago.
Vejamos, pois, a questão dos autos à luz destas duas hipóteses.
2- A inversão do título da posse pode ocorrer por oposição, ou por acto de terceiro - artº 1265º - . O último não releva aqui. Subsiste a inversão por oposição.
"A inversão "por oposição", implica, antes de mais, uma modificação do animus por parte do detentor, relevada por actos positivos que, inequivocamente, exteriorizem a sua vontade de opor uma posse própria à pessoa em nome ou no interesse de quem vinha actuando como possuidor precário (contradictio).
Por isso mesmo tais actos são receptícios, isto é, só alcançam aquela relevância modificativa quando, por via judicial ou extrajudicial, são levados ao conhecimento do possuidor, salvo se praticados na sua presença ou de quem o represente. A oposição, uma vez notificada nos termos expostos, opera ope legis a conversão da detenção em posse..." - A. Penha Gonçalves Curso de Direitos Reais 272 - .
Compreende-se a exigência de que os actos que integra a inversão do título da posse por oposição do detentor tenham uma natureza receptícia. É que o corpus antes e depois da inversão é igual. Logo, para se avaliar da existência da mesma inversão é necessária que esta se exteriorize de forma específica em relação àquele face a quem produzirá efeitos jurídicos, ou seja, aquele que constituiu a posse precária.
Ora, no caso dos autos, não existem factos que, especificadamente, abonem uma inversão do título da posse por oposição. Nada ocorre que indicie a vontade de, expressamente, opor ao promitente vendedor uma posse própria. O promitente comprador e seus sucessores limitaram-se a exercer poderes de facto, como se fossem os donos, mas agindo em relação a terceiros.
Pelo que, pela inversão do título da posse, os autores não poderiam ter adquirido a propriedade por usucapião, dado que essa inversão não se encontra demonstrada. Não existiria, por isso, a posse em nome próprio que é um requisito dessa forma de aquisição dos direitos reais de gozo.
3- Os autores pagaram a totalidade do preço.
O recorrente lança a questão do preço não ter sido pago integralmente pago. Não alcançamos o sentido desta alegação tendo em conta o que consta dos pontos 4, 5 e 6 dos factos provados (fls. 508). Eventualmente quererá referir, porque parte do preço foi a pagar em sessenta prestações, que não está provado que esse preço tenha sido integralmente satisfeito, a tempo de decorrer o prazo prescricional, como concluiu a Relação. Mas a ilação retirada pelo Tribunal da Relação de que assim não foi, porque se trata de matéria de facto, é insindicável por este Supremo.
Temos, desta forma, o caso do promitente comprador que paga a totalidade do preço do imóvel e que passa a exercer todos os poderes inerentes à sua propriedade - pagamento de contribuições e de despesas do condomínio, assunção perante toda a gente da qualidade de donos - .
Está, portanto, verificada a hipótese do Acórdão atrás citado de que, em tal situação, o promitente comprador tem, desde que passou a dispor do bem, uma posse em nome próprio, susceptível de servir de fundamento à aquisição da propriedade pelo decurso do tempo. Os autores não conceberam que não deixariam de vir a ser proprietários do imóvel. Logo, o animus possidendi que é o seu é originário, não resultando de qualquer inversão do título da posse e pode fundar a usucapião, tal como se tivesse ocorrido a dita inversão.
A decisão recorrida fala em inversão do título da posse, mas salvo o devido respeito, exprimiu-se menos claramente, uma vez que acaba por defender solução igual à que entendemos ser a correcta, quando cita em abono da sua tese um Acórdão deste Tribunal em que expressamente se consigna, que, paga a totalidade do preço, "a coisa é entregue ao compradores como se fosse sua e neste estado de espírito eles praticam actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade".
Com o que improcedem as conclusões do recurso.
Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 6 de Maio de 2004
Bettencourt de Faria
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida