ENFERMEIRO
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
VÍCIOS DO CONSENTIMENTO
ANULABILIDADE
Sumário

1. A referência do artigo 2194º do Código Civil ao enfermeiro reporta-se ao que tem a qualidade legal de enfermeiro, não abrangendo quaisquer outras pessoas que, movidas por razões de amizade ou de solidariedade, hajam prestado ao testador serviços e cuidados de enfermagem.
2. A estas pessoas, na medida em que possam ter conduzido e determinado o testador a beneficiá-las no testamento, são aplicáveis as disposições relativas à anulabilidade resultante de vícios de vontade ou de negócio usurário.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A e mulher B, C e marido D e E e marido F intentaram, no Tribunal Judicial de Paredes, acção declarativa, com processo ordinário, contra G, H e I, peticionando que se declare nulo, nos termos do art. 2194º do Código Civil, o testamento que J, seu tio, outorgou em 2 de Abril de 1997, nele beneficiando os réus, porquanto o 1º réu e seu pai,
L, agiram em relação ao testador como se de verdadeiros enfermeiros se tratasse.
Contestaram os réus, pugnando pela improcedência do pedido, aludindo aos fortes laços de amizade que os uniam ao testador e assegurando nunca ter prestado cuidados de enfermagem ao falecido. Sem prescindir, alegaram ainda que o art. 2194º do Cód. Civil abrange apenas o médico ou o enfermeiro diplomado e não a pessoa que trata de enfermos ou que faz as vezes de enfermeiro.

Exarado despacho saneador tabelar, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu os réus do pedido.
Inconformados, apelaram os autores, sem êxito, uma vez que o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 24 de Novembro de 2003 (fls. 481 a 485) julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.

Interpuseram, desta feita, os mesmos autores recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado, declarando-se nulo o testamento que J declarou outorgar em 2 de Abril de 1997.
Em contra-alegações bateram-se os recorridos pela manutenção do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Os recorrentes findaram as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. O testador J faleceu em 05/04/1997 e, durante a sua doença, fez testamento, no dia 02/04/1997, a favor dos recorridos, filhos de L.

2. O recorrido G e seu pai, apesar de não serem enfermeiros diplomados, prestaram ao testador cuidados próprios da enfermagem.
3. É para os recorrentes indiscutível que o exercício da enfermagem ou da medicina enquanto profissão depende da posse e titularidade da respectiva cédula profissional.
4. Porém, a questão interpretativa em apreço, não visa apurar sobre quem pode exercer legalmente a actividade profissional de médico ou enfermeiro, mas se o termo "enfermeiro", para efeitos do art. 2194º do Código Civil, é apenas aquele que exerce a actividade devidamente titulado ou se, pelo contrário, é todo aquele que exerça essa actividade esteja ou não munido de título bastante para o seu exercício.
5. Torna-se, pois, necessário recorrer aos elementos da interpretação para determinar o sentido e alcance da norma constante do art. 2194º do Código Civil.
6. Atendendo, apenas, ao elemento gramatical, a expressão "enfermeiro" comporta, sem esforço, aquele que exerce a actividade ou acção de enfermagem, aí abrangendo tanto o enfermeiro diplomado, como o falso enfermeiro, ou aquele que se apresenta a exercer a enfermagem sem se arrogar a qualquer título.
7. Por isso, e considerando isoladamente o texto da lei, não deve o intérprete eliminar, à partida, qualquer um dos vários sentidos que o termo "enfermeiro" comporta.
8. Qualquer outro entendimento, fundamentado na mera análise exegética do art. 2194º do Código Civil, que considere que o termo enfermeiro apenas abrange o enfermeiro diplomado significaria que, se alguém, invocando falsamente a sua qualidade de enfermeiro, se apresentasse perante um enfermo e obtivesse dele, enquanto tratava de uma doença de que este viesse a falecer, qualquer deixa testamentária a seu favor, não ocorreria a indisponibilidade relativa a que se reporta o art. 2194º do Código Civil.
9. E nada disso quer a lei; nada disso pretende o legislador; pelo que urge buscar a interpretação da norma com base nos demais elementos ou critérios interpretativos.
10. A ratio legis do art. 2194º do Código Civil visa evitar que a pessoa que trata do testador na sua doença, actuando como enfermeiro, se sirva do ascendente natural que ganha sobre o testador e o leve a testar a seu favor. Para tal, basta a verificação objectiva da feitura do testamento durante a doença do testador a favor da pessoa que o trata como enfermeiro.
11. Sendo este o fim visado pelo art. 2194º do Código Civil, a verdade é que o falso enfermeiro ou o mero enfermeiro de facto gozam da mesma autoridade e ascendente que o enfermeiro profissional goza sobre o enfermo, pelo que, para os fins da supra citada disposição legal, é absolutamente indiferente a existência ou inexistência de título para o exercício da enfermagem.
12. A Comissão Revisora do actual Código Civil pretendeu incluir na disposição legal quer os enfermeiros, quer aqueles que, embora ilegalmente, exerçam de facto funções médicas, tendo aceite que a actual redacção do art. 2194º do Código Civil traduzia esse objectivo.
13. Tal significa que o termo "médico" tanto abrange aquele que exerce a medicina devidamente titulado como aquele que exerce tais funções, embora sem título.
14. Para os efeitos do art. 2194º do Código Civil não se descortinam diferenças substanciais entre as funções de médico e de enfermeiro.
15. Dessa forma, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, tanto é nula a disposição testamentária feita a favor daquele que exerce de facto as funções de médico, como é nula a disposição testamentária feita a favor daquele que exerce de facto as funções de enfermagem.
16. Para efeitos de aplicação da norma constante do art. 2194º do Código Civil o que realmente releva é a especificidade da actuação do beneficiário em relação ao testador e não a legalidade ou ilegalidade dessa actividade no campo sócio-profissional.
17. Quer o amigo, quer o bom samaritano, ou até mesmo aquele que, de um modo interessado e egoísta, socorra outrem na sua doença e lhe preste a assistência própria da enfermagem, poderão suceder em bens ou valores determinados - cfr. alínea a) do art. 2195º do Código Civil - destinados a remunerar os serviços prestados ao testador.
18. E, no caso dos autos, o testador até remunerou os visados através de doação, que se não impugnou.
19. A interpretação diz-se declarativa quando se limita a eleger um dos vários sentidos que o texto legislativo claramente comporta, por ser esse (subentende-se) o que corresponde ao pensamento legislativo.
20. O que significa que, compreendendo quer a letra quer o espírito do art. 2194º do Código Civil o "enfermeiro de facto", não se coloca a questão - como erradamente faz o Tribunal a quo - da aplicação analógica daquela disposição legal já que, para que tal fosse possível, seria necessário que o "enfermeiro de facto" não coubesse nem na letra nem no espírito da mencionada disposição, o que in casu não se verifica.
21. Dado o exposto, o acórdão recorrido ao considerar que o conceito de "enfermeiro" a que se refere o art. 2194º do Código Civil é o de enfermeiro diplomado, não fez, salvo o devido respeito, a correcta interpretação e aplicação da aludida disposição legal, porquanto o termo "enfermeiro" aí empregue abrange quer o enfermeiro diplomado, quer o falso enfermeiro, quer o mero enfermeiro de facto.
22. Assim não decidindo, o acórdão recorrido violou, salvo o devido respeito, a norma constante do art. 2194º do Código Civil, pelo que deve ser revogado.
Mostra-se definitivamente fixada a seguinte matéria fáctica:
a) - em 5 de Abril de 1997 faleceu J - doc. de fls. 22, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) - os autores A, C e E são sobrinhos do falecido J, por serem filhos de um irmão daquele, M, também já falecido - doc. de fls. 23 a 27, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) - em 13 de Abril de 1988 o falecido J celebrou o testamento público que se encontra junto a fls. 28 a 31;
d) - em 2 de Abril de 1997 foi celebrado o testamento que consta de fls. 32/33;
e) - nesse testamento serviram de testemunhas N e O, vizinhas do testador;
f) - o testador J era uma pessoa de educação esmerada e personalidade forte;
g) - tendo enviuvado aos 66 anos, nunca teve filhos;
h) - antes de casar residira no Porto, passando depois a viver em Recarei, voltando novamente ao Porto nos últimos anos de vida da sua mulher;
i) - após o falecimento desta voltou para Recarei onde viveu até à sua morte;
j) - o testador J era padrinho de baptismo de C e de E e padrinho de casamento de A;
k) - em Fevereiro de 1997, J, até aí saudável, foi acometido por alguns problemas de saúde, sendo examinado por diversos médicos;
l) - ao J, foi diagnosticado um cancro já em adiantado estado de malignidade e que o veio a vitimar em poucas semanas;
m) - L, pai dos réus, conhecia o tio dos autores há vários anos;
n) - o tio dos autores era assistido por médico;
o) - os réus G e L não possuíam qualificações profissionais para o exercício de enfermagem;
p) - dão-se por reproduzidas as certidões de nascimento de fls. 67 a 69;
q) - o facto da alínea i) ocorreu apesar de os autores terem proposto ao J, com quem mantinham boas relações, que ele ficasse a morar com eles ou perto deles;
r) - o falecido J mantinha bom relacionamento com os autores, seus sobrinhos, filhos de um seu irmão já falecido;
s) - enquanto viveu no Porto, o testador era visita da casa de todos os autores, seus sobrinhos;
t) - mesmo depois de voltar para Recarei, onde passou a viver após a morte de sua mulher, os autores telefonavam e visitavam, esporadicamente, o testador;
u) - em Março de 1997, o autor A, por ter sido informado pelo pai dos réus, compareceu a uma consulta do J na Ordem de S. Francisco, para a qual este se fez acompanhar do réu G; numa outra consulta ocorrida nesse mesmo mês, compareceu a autora C, por ser empregada do Hospital de S. João do Porto, estando aí a trabalhar no dia em que o tio fez exames, altura em que foi confirmado o diagnóstico de cancro em adiantado estado de malignidade;
v) - aquando desse facto, o médico deu a conhecer ao autor A o facto descrito na alínea l);
w) - perante esse diagnóstico, o autor A propôs ao seu tio J que este fosse viver consigo para o Porto, onde teria todo o apoio e auxílio necessários;
x) - o testador recusou a proposta do A, dizendo que o entristecia deixar as suas coisas, atitude que aquele autor houve por bem respeitar;
y) - no mês de Março o estado do tio dos autores agravou-se, tendo-se deslocado ao Hospital de S. João onde se submeteu a exames médicos;
z) - os médicos do Hospital de S. João do Porto sugeriram ao testador que permanecesse no hospital por mais alguns dias, de modo a submeter-se a exames mais detalhados, o que este recusou;
aa) - há já vários anos o L e o G transportavam o testador nas suas viaturas;
ab) - os autores souberam da recusa do seu tio à sugestão médica aludida na alínea z) e respeitaram-na, até porque foram medicamente informados de que o estado dele era muito grave e exigia, sobretudo, cuidados paliativos quando surgissem dores, como era de esperar;
ac) - o estado de saúde do testador veio a agravar-se rápida e consideravelmente a partir da última semana de Março, e J acamou e praticamente não se levantou mais da cama;
ad) - padecendo de dores fortes e constantes;
ae) - sendo-lhe penoso mover-se ou até falar;
af) - o médico referido na alínea n) prescrevia a medicação e entregava a prescrição ao L e/ou ao filho deste, G, aqui primeiro réu;
ag) - a medicação paliativa, a partir da última semana de Março, era administrada ao testador pelo L e/ou pelo G;
ah) - medicação que este passou a estar incapacitado de auto-ministrar e que ansiava que lhe fosse dada para supressão das fortíssimas dores que iam crescendo à medida que a doença avançava com enorme rapidez;
ai) - na verdade, nas últimas três semanas de vida do testador foram permanentes as presenças junto dele do réu G e de seu pai L;
aj) - estes passaram a assumir a responsabilidade pela administração dos medicamentos receitados ao testador;
ak) - todas as instruções do médico eram transmitidas ao G ou ao seu pai, a estes sendo entregues as receitas que os mesmos se encarregavam de aviar e de fazer cumprir nos cuidados paliativos ao testador;
al) - a eles o médico confiou mesmo uma tabela ou esquema dos medicamentos que deveriam ser administrados, que especificava quais os remédios que o doente deveria tomar, a respectiva dosagem e periodicidade de ministração;
am) - na altura do referido na alínea d) o testador vivia na dependência do apoio do G e de seu pai, L, e da ministração de medicamentos por eles feita para diminuição ou supressão das pungentes dores que o martirizavam;
an) - de tal modo que na data do testamento o estado de J era tão crítico que praticamente já não se alimentava e quase só carecia dos tratamentos paliativos referidos;
ao) - ao testador era quase impossível mover-se e tinha dificuldade em falar;
ap) - encontrando-se sempre sob os efeitos de forte medicação analgésica, que lhe era administrada pelo primeiro Réu G e também por seu pai L;
aq) - no dia 3 de Abril de 1997, o autor A tentou por diversas vezes entrar em contacto telefónico como o seu tio, mas tal não lhe foi possível;
ar) - devido a essa dificuldade de contacto, os autores, no dia seguinte, 4 de Abril, dirigiram-se logo pela manhã a casa do tio;
as) - as dores do testador nos últimos dias de vida eram de tal forma insuportáveis que lhe chegou a ser prescrita morfina;
at) - perante o estado do tio dos autores, na altura referida em ar), o L disse-lhe que estivessem descansados porque "trataria de tudo";
au) - o falecido conhecia os réus desde a data do seu nascimento, bem como o pai e avô dos réus;
av) - pois sempre foram todos vizinhos no lugar de Outeiro, freguesia de Recarei, até há cerca de um ano e meio antes do falecimento daquele;
aw) - o falecido vivia sozinho desde a altura em que enviuvou e gostava muito de crianças;
ax) - as relações de amizade entre o falecido e o pai dos réus intensificaram-se com o nascimento dos réus, em especial do primeiro réu;
ay) - o falecido acompanhou o nascimento e crescimento dos ora réus até à data em que veio a falecer;
az) - os réus durante o período de infância brincavam na residência do falecido J a chamamento deste e vice-versa, fazendo aquele questão, por várias vezes, de os fotografar e ser fotografado com eles, como se de família se tratasse;
ba) - o falecido passeava com os réus e pais destes, frequentemente, indo a convívios com eles;
bb) - o falecido J passou com os réus e seus pais algumas festas de Natal;
bc) - o testador foi convidado e esteve presente em festas de comunhão e de aniversário dos réus;
bd) - o falecido J sempre foi e era tratado como pessoa da família dos réus, que era amiga, estimada e querida por todos (quer pelos réus, quer pelos pais destes) e que o falecido muito prezava;
be) - mesmo cerca de um ano e meio antes do falecimento do J, os réus e seus pais foram viver para Valongo e, durante esse tempo, o testador telefonava-lhes frequentemente e vice-versa, deslocando-se também os réus e seus pais algumas vezes à casa do falecido, quer para o visitar, quer para o auxiliar no que fosse necessário, quer para lhe fazerem companhia;
bf) - algumas vezes o falecido J deslocou-se a casa dos réus, quando estes já residiam em Valongo, para tomar banho;
bh) - relativamente ao primeiro réu, sempre o falecido nutriu por ele um especial afecto e carinho que, aliás, era retribuído por aquele, e que se manteve na sua infância, na adolescência e até ao momento da morte daquele;
bi) - o primeiro réu G desde muito cedo cultivou essa amizade com o falecido, chegando, não obstante serem vizinhos, a escrever postais quer de Natal, quer de aniversário, ao falecido J;
bj) - por várias vezes o falecido fotografava o primeiro réu no jardim e residência de sua casa, fazendo questão de acompanhar a evolução do seu crescimento;
bk) - o falecido tratava o primeiro réu como se de um filho se tratasse, e tinha com ele preocupações próprias de um pai ou avô, designadamente preocupações a nível pessoal, dando-lhe conselhos sobre as companhias que devia ter, sobre o modo de agir e prudência que devia ter no seu dia-a-dia, bem como preocupações a nível económico com o seu futuro;
bl) - motivo pelo qual, já em 5 de Abril de 1991, o falecido abriu uma conta bancária na Caixa Geral de Depósitos unicamente em nome do primeiro réu G, naquela data menor;
bm) - o falecido J passou a depositar regularmente dinheiro nessa conta até à data em que aquele atingiu a maioridade;
bn) - mesmo depois de atingir a maioridade, o primeiro réu sempre fez, até à data da morte do testador, muita companhia a este, quer na sua residência, quer levando-o a passear;
bo) - acompanhava-o ao médico sempre que este pretendesse (conduzindo-o no seu próprio carro ou em carro de aluguer) para as consultas de rotina, deslocava-se com ele às compras, ao Banco, à farmácia, aos funerais;
bp) - quer mesmo a nível doméstico, quer na prestação de outros serviços, designadamente nos últimos dois/três anos de vida do falecido, o primeiro réu efectuava-lhe o pagamento das contas de água, luz, telefone, através da sua conta bancária, dinheiro que o falecido depois lhe restituía;
bq) - em meados de Fevereiro de 1997, quando o falecido começou a sentir-se mal fisicamente, o primeiro réu levou-o, de imediato, a vários médicos a fim de ser examinado, bem como o acompanhou em todas as consultas, como até aí o fazia;
br) - em datas anteriores ao início da última semana de Março de 1997, o falecido teve de se deslocar a diversas instituições hospitalares para ser submetido a diversos exames, tendo sido o réu G quem o acompanhou e conduziu a todos os exames e consultas;
bs) - nas duas últimas semanas de vida do falecido, o primeiro réu acompanhou-o diariamente, prestando-lhe todos os cuidados e assistência necessária, designadamente assistiu a todas as visitas que o médico fez ao falecido na sua residência, chegou a cozinhar para ele, a prestar-lhe cuidados de higiene pessoal e a dormir em casa do falecido, para que este não se sentisse sozinho e desamparado;
bt) - também os 2º e 3º réus mantiveram uma boa relação de amizade com o testador, quer na sua infância, pois iam brincar para a casa deste, quer no período de adolescência, no que respeita ao réu H;
bu) - nas duas últimas semanas de vida do J, o réu H visitou-o;
bw) - também os pais dos réus, nas últimas semanas de vida do falecido, lhe prestaram toda a assistência e cuidados;
bx) - nas últimas semanas de vida do falecido, a mãe dos réus, no final do dia, também se deslocava a Paredes para visitar o falecido Sr. J e prestar-lhe alguns serviços, nomeadamente era a mãe dos réus que, por vezes, sozinha ou juntamente com uma vizinha do falecido, tratava das lidas domésticas, fazia-lhe a cama, limpava o chão e móveis, lavava louça;
by) - o falecido era uma pessoa prudente;
bz) - para expressar a sua gratidão ao primeiro réu o falecido deslocou-se ao Cartório Notarial e fez-lhe uma doação com reserva de usufruto vitalício a favor do doador;
ca) - o falecido tinha guardado um papel do qual constavam os nomes completos dos réus e dos pais destes;
cb) - o autor A telefonou algumas vezes ao testador para saber da evolução do seu estado de saúde;
cc) - os autores visitaram o J no dia anterior ao seu falecimento;
cd) - os autores não trataram do funeral do seu tio;
ce) - em 26 de Março de 1997 o testador mandou chamar à sua residência a Exma. Notária de Paredes que só acabaria por aí se deslocar no dia 2 de Abril de 1997;
cf) - na data do testamento referido na alínea d) o cancro, que veio a vitimar o testador, não lhe obnubilava a inteligência ou enfraquecia a vontade, entendendo perfeitamente o que disse à oficial pública e os motivos que o determinaram a dispor dos seus bens dessa forma;
cg) - à data desse testamento, o testador J mantinha boas relações com as duas testemunhas referidas na alínea e);
ch) - dá-se aqui por reproduzido o conteúdo da escritura pública de doação outorgada em 21 de Março de 1997 no Cartório Notarial de Valongo, a fls. 145 a 148 dos autos.
Importa, sobretudo, no âmbito do recurso, averiguar da melhor interpretação da norma do art. 2194º do Código Civil (1), nos termos da qual "é nula a disposição (testamentária) a favor do médico ou enfermeiro que tratar o testador, ou do sacerdote que lhe prestar assistência espiritual, se o testamento for feito durante a doença e o seu autor vier a falecer dela".
Sustentam os recorrentes que a única correcta interpretação é a de que o legislador quis abranger, com a restrição à capacidade de beneficiar de deixa testamentária, todo aquele que exerce a actividade própria de enfermeiro, ainda que não seja profissional de enfermagem e esteja ou não munido de título bastante para o seu exercício, pelo que, in casu, há-de ter-se como nulo o testamento feito a favor dos réus (designadamente porque o primeiro réu, G, acompanhou e assistiu o testador, prestando-lhe cuidados de enfermagem durante a doença que o vitimou).
Em contrapartida, entenderam as instâncias que a preocupação do legislador na formulação do art. 2194º foi tão só evitar que determinadas pessoas, em função das específicas profissões que exercem, pudessem condicionar a vontade do testador, razão por que as disposições proibitivas do art. 2194º não se podem estender a outras pessoas que não as referidas por aquela norma.
Que dizer ?
A esta questão já se respondeu com a afirmação de que "a referência do artigo 2194º do Código Civil ao enfermeiro reporta-se ao que tem a qualidade legal de enfermeiro". (2)
E não apenas no que respeita a pessoas singulares, mas também no concernente a pessoas colectivas que, visando essencialmente fins de carácter social e de solidariedade, assistiram o testador durante os últimos tempos de vida, no decurso de doença de que veio a falecer. (3)
Vejamos então.
E, antes de mais, retomando a matéria de facto provada, enunciaremos o que, de especialmente relevante para a situação em apreço, se pode constatar:
- a partir da última semana de Março, altura em que a doença fatal que acometeu o testador se agravou rápida e consideravelmente, o médico que o assistia passou a prescrever a medicação que devia ser-lhe dada, entregando a prescrição ao L e/ou ao seu filho G;
- eram estes que ministravam ao testador a medicação paliativa prescrita pelo médico, uma vez que o J não tinha capacidade para tomar sozinho os medicamentos;
- todas as instruções do médico eram transmitidas ao G ou ao seu pai, a estes sendo entregues as receitas que os mesmos se encarregavam de aviar e de fazer cumprir nos cuidados paliativos ao testador;
- a eles o médico confiou mesmo uma tabela ou esquema dos medicamentos que deveriam ser administrados, que especificava quais os remédios que o doente deveria tomar, a respectiva dosagem e periodicidade de ministração;
- na altura da outorga do testamento, em 2 de Abril de 1997, o testador vivia na dependência do apoio do G e de seu pai, L, e da ministração de medicamentos por eles feita para diminuição ou supressão das pungentes dores que o martirizavam;
- de tal modo que na data do testamento o estado de J era tão crítico que praticamente já não se alimentava e quase só carecia dos tratamentos paliativos referidos;
- sendo-lhe quase impossível mover-se e tinha dificuldade em falar, encontrando-se sempre sob os efeitos de forte medicação analgésica, que lhe era administrada pelo primeiro réu G e também por seu pai L;
- nas duas últimas semanas de vida do testador, o 1º réu cozinhou para ele, prestou-lhe cuidados de higiene pessoal e dormiu em casa do falecido para que este não se sentisse sozinho e desamparado;
- o testador viria a falecer em 5 de Abril de 1997, em consequência da doença de que sofria.
Passando à apreciação jurídica da questão acima equacionada, podemos começar por referir que o artigo 2194º, que trata da indisponibilidade relativa fundada no acompanhamento médico, nos tratamentos de enfermagem ou na assistência espiritual ou religiosa prestada ao testador durante a enfermidade de que ele veio a falecer, teve como precedente o artigo 1769º do Código Civil de 1867.
Este preceito dispunha que "não produzirão efeitos as disposições do enfermo em favor dos facultativos, que lhe assistirem na sua moléstia, ou dos confessores que, durante ela os confessarem, se morrer dessa moléstia".
Estabelecia, assim, uma verdadeira incapacidade de testar, desde que verificadas as circunstâncias seguintes: "1º que o testamento seja feito durante a última moléstia do testador; 2º que o facultativo ou o confessor tenha assistido ao testador durante a mesma moléstia; 3º que o testador tenha falecido desta moléstia". (4)
Sustentava Cunha Gonçalves, a propósito dessa disposição, que "a palavra facultativos refere-se, decerto, a médicos diplomados; mas, em muitos lugares (situação que hoje já não acontece tão frequentemente) não existem médicos e os tratamentos são feitos por farmacêuticos, enfermeiros, parteiras, curandeiros, charlatães, magnetizadores. Todos estes indivíduos devem ser incluídos no termo facultativos, pois a captação é muito mais de recear da parte destes médicos de contrabando, já porque não oferecem garantias de probidade, já porque a sua clientela é, quasi sempre, composta de pessoas incultas e facilmente sugestionáveis, como os numerosos tolos que se deixam ludibriar com o estafado conto do vigário". (5).

Em contrapartida, Dias Ferreira (6) entendia que "a razão das proibições contidas nos arts. 1768º e 1769º é a mesma que determinou a proibição do art. 1767º. O ascendente que têm sobre o espírito do enfermo os facultativos e os confessores, faz presumir que a disposição não foi dicitada por afectos pessoais, mas sim extorquida por sugestões e pela fraude. (…) Na proibição do art. 1769º não estão compreendidos os pharmaceuticos nem os sangradores, porque as disposições proibitivas não se ampliam".
Note-se, aliás, que mesmo Cunha Gonçalves, ao defender, ao que parece, uma interpretação alargada do termo facultativos, abrangia apenas na teologia da norma aqueles que, embora não diplomados ou autorizados a exercer a profissão, assistiam o doente a título profissional, omitindo qualquer referência aos que, imbuídos de espírito evangélico de caridade, amigos do testador ou simplesmente por sentimentos de solidariedade ou altruísmo, auxiliaram o doente, prestando-lhe os cuidados entendidos como adequados a minorar o sofrimento e as angústias que, naturalmente, o acompanharam naquela fase da vida.
Ora, perante esses entendimentos - e outros - que o legislador de 1966 não desconhecia, propôs Galvão Telles, para a correspondente norma (art. 198º) a seguinte redacção: "são nulas as disposições a favor dos médicos que tratarem o testador, ou dos sacerdotes que o confessarem durante a doença de que ele falecer". (7)
E, apesar de propostas apresentadas no sentido de se alterar a redacção - "todos aqueles que por contrato de prestação de serviços médicos ou de enfermagem" (Prof. Gomes da Silva); "os que no exercício da profissão tratarem o doente" (Prof. Vaz Serra) - "a Comissão não aprovou nenhuma destas fórmulas, ficando o Prof. Galvão Telles encarregado de procurar uma redacção que abranja os enfermeiros e bem assim aqueles que, embora ilegalmente, exercem de facto funções médicas". (8)
Terá havido, desta forma, no actual Código Civil (e respectivos trabalhos preparatórios) a ideia de alargar o âmbito do art. 2194º aos enfermeiros, tendo ainda na sua elaboração perpassado a ideia de ampliar a incapacidade relativamente aos que, embora ilegalmente, exercessem de facto funções médicas (quiçá também de enfermagem), mas nem sequer foi discutida a questão de considerar abrangidos pelo preceito aqueles que, por algum outro motivo que não profissional, prestassem assistência ao testador.
"De resto (escreveu-se no acima citado Ac. STJ de 04/07/75) encarregado o Prof. Galvão Telles pela Comissão Revisora do Projecto do Código Civil (que apenas aludia, como o artigo 1679º do Código de 1967, aos médicos e aos sacerdotes) de encontrar redacção que incluísse os enfermeiros e bem assim aqueles que, embora ilegalmente, exercem de facto funções médicas - duas categorias ! - e só a primeira ficando expressa na lei, poderá justificadamente concluir-se que a solução final adoptada prescindiu de consagrar a segunda, talvez pelas dificuldades… que levariam a abranger mais do que o razoável".
Ademais, o próprio anotador do BMJ (pag. 501) refere que "a solução do acórdão que agora se anota parece estar de harmonia com o sentido para que apontam os elementos constantes dessas Actas. De facto, Vaz Serra que lembrara a inclusão dos enfermeiros sugeriu a seguinte redacção: os que no exercício da profissão tratarem o doente. Galvão Telles criticou-a por demasiado ampla e a Comissão não a aprovou".
Consequentemente, "na sua redacção final, a novidade substancial do artigo 2194º está no facto de se ter acrescentado às duas categorias de disposições fulminadas pelo Código de 1867 e alvejadas pelo Anteprojecto de Galvão Telles - as disposições testamentárias a favor dos médicos que trataram o testador e em benefício dos sacerdotes que lhe prestaram assistência espiritual - um terceiro lote, de inspiração paralela, que é o das disposições a favor dos enfermeiros que trataram o testador". (9)
Assim, porque se deve entender que o legislador soube exprimir em termos adequados o seu pensamento, certamente traduzido na letra da norma consagrada, a partir da qual, em primeira análise deve ser reconstituído o pensamento legislativo (art. 9º, nºs 1 e 3) não pode deixar de se ter como resultado interpretativo que o art. 2194º fez uma enunciação taxativa das pessoas relativamente às quais não pode o doente dispor através de testamento.
Tanto quanto é certo que o intérprete não pode considerar, na actividade de interpretação, um resultado que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9º, nº 2), e tal mínimo de correspondência (no sentido da ampliação) não existe na redacção do art. 2194º.
Dir-se-á que nada obsta à interpretação extensiva daquela norma, atendendo aos elementos racional e teleológico de interpretação, por forma a abranger as demais pessoas que prestaram tratamentos ao testador durante a doença de que aquele veio a falecer.
Nesta "o intérprete chega à conclusão de que a letra do texto fica aquém do espírito da lei, que a fórmula verbal adoptada peca por defeito, pois diz menos do que aquilo que pretendia dizer. Alarga ou estende então o texto, dando-lhe um alcance conforme ao pensamento legislativo, isto é, fazendo corresponder a letra da lei ao espírito da lei. (…) A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma". (10)
Não constituindo impedimento à interpretação extensiva o facto de nos encontrarmos, como in casu, perante uma norma de carácter excepcional (art. 11º).
Com efeito, essa interpretação deve ser feita em todas as hipóteses em que "o legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa espécie quando queria aludir ao género, ou formula para um caso singular um conceito que deve valer para toda uma categoria". (11)
Será uma interpretação correctiva em que o intérprete deve procurar uma formulação que traduza correctamente a regra contida na lei. Aqui, para se respeitar a regra, deve-se exprimi-la com formulação diversa do texto legal. A regra que do texto se retira deve ter uma formulação correcta, mais ampla que a utilizada pelo legislador. (12)

É que, tendo-se averiguado qual a ratio legis duma lei, o princípio superior e geral de direito, o valor ou a valoração que a inspiram, resultaria absurdo ou injusto não estender a sua aplicação a um caso que, embora não abrangido na sua letra, está manifestamente abrangido no seu espírito. (13)
Todavia, nem o elemento racional nem sobretudo o sistemático nos permitem deduzir que outro sentido que não o que resulta da letra do art. 2194º haja sido querido pelo legislador.
Em primeiro lugar, a razão determinante da norma em causa - tal como sucede em relação a todos os preceitos incluídos no Capítulo III do Título IV do Livro V do Código Civil (arts. 2192º a 2198º) - é a protecção do testador que, em todas as situações ali previstas, atentos os vínculos especiais que o ligam a certas pessoas e tornam duvidosa a liberdade negocial com que agiu, se presume ter actuado com a vontade viciada (fez o que, na posse de uma livre vontade e consciência, não faria, isto é, declarou aquilo que realmente quis, mas que não teria querido se tivesse livre poder de determinação).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (14), "a verdadeira causa da nulidade das disposições por eles abrangidos (arts. 2192º e seguintes) assenta na relação jurídica ou no nexo psicológico existente entre o testador e outras pessoas".
A ratio legis assenta, por isso, em primeira análise, no facto de o testador poder ser induzido à deixa de bens, quando dependa de actos médicos, de enfermagem ou espirituais, em favor dos profissionais que lhe prestam esses cuidados durante a doença de que venha a falecer (facto que o legislador entendeu dever ser acautelado, taxando o negócio de nulo).
Ora, enquanto nos demais casos de vícios de vontade do testador - alinhados logo a seguir no Capítulo IV - se consagra a mera anulabilidade do testamento, cujos requisitos têm que ser alegados e provados pelo interessado na respectiva invalidade (arts. 287º, nº 1 e 342º, nº 1), em contrapartida, no art. 2194º fulmina-se o testamento com a nulidade, estabelecendo-se, aliás, uma verdadeira presunção juris et de jure a favor dos interessados na declaração da invalidade, porquanto as pessoas abrangidas no texto da norma não podem evitar a nulidade do negócio alegando e provando que, não obstante terem assistido o testador na sua doença, o não determinaram, de algum modo, a beneficiá-los no testamento.
Por isso, a situação de qualquer beneficiado em testamento, que haja assistido o testador - e não seja médico, enfermeiro ou sacerdote - há-de inserir-se nas demais disposições sobre vícios de vontade, conduzindo à invalidade do testamento apenas na medida em que a sua actuação tenha determinado o testador, privando-o de vontade esclarecida (dolo ou coação) ou aproveitando-se de uma deficiência desta vontade (erro, incapacidade acidental) a celebrar o testamento ou a beneficiá-lo nele.
Ou então, atenta a natureza genérica do art. 282º (negócios usurários) aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso das disposições testamentárias, ficarão sujeitos à anulabilidade advinda do facto de terem explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador para deste obterem a concessão de benefícios excessivos ou injustificados. (15)
Aliás, é bom de ver que o legislador não quis estabelecer aquela mesma presunção juris et de jure relativamente a todos aqueles que, muitas vezes, por caridade, amizade ou dedicação ao próximo, se dispuseram a acompanhar o enfermo, executando tarefas que se podem enquadrar nas atribuições de um enfermeiro, tais como administração de medicamentos (havendo incapacidade de auto-ministração do doente) e cuidados de higiene pessoal (havendo incapacidade de mobilidade ou locomoção do doente). Não podem por tal facto essas pessoas ser impedidas de figurar como beneficiárias dum testamento feito pelo doente, posto que não exista qualquer vício na vontade de testar. O quadro proibitivo do art. 2194º, com as excepções do art. 2195º (16), não pode ser de tal modo amplo que abarque situações que significariam um sério impedimento à vontade de um qualquer testador deixar, por exemplo, os seus bens, ou parte deles, a um amigo ou a um samaritano que dele tratasse na fase terminal da sua doença.
Outra solução conduziria, ademais, a resultados absurdos e profundamente injustos, que a ordem jurídica não poderia tutelar: pense-se no caso de um afilhado que sempre viveu com o padrinho, apenas porque na fase terminal da vida deste lhe deu umas injecções ou o massajou conforme explicado pelo médico assistente, ser preterido (por nulidade da deixa testamentária) por um primo afastado do testador, de cuja existência nem este sabia (estamos apenas a hipotizar, porquanto no caso sub judice está bem demonstrado que os autores sempre mostraram respeito, interesse e até amizade pelo seu tio). Ou na situação da dedicada empregada doméstica que, ouvindo falar das propriedades curativas do xarope de aloé, se decide, sem qualquer indicação médica nesse sentido, a adquiri-lo e dá-lo a beber ao testador doente até ao fim da vida deste, impossibilitada, por esse simples facto, de figurar como beneficiária em testamento por aquele feito.
Acresce que no caso sub judice razões ponderosas justificam sem dúvida a intenção do testador de beneficiar os herdeiros que nomeou no testamento.
Na verdade:
- tais beneficiários eram pessoas com quem o testador convivia e com quem mantinha fortes relações de amizade;
- por eles sempre foi tratado como pessoa da família, que era amiga, estimada e querida por todos e que muito prezava;
- o testador, relativamente ao 1º réu, sempre por ele nutriu um especial afecto e carinho que lhe era retribuído e que se manteve na sua infância, adolescência e até ao momento da morte daquele, tratando-o inclusivamente como se fosse seu filho;
- este 1º réu sempre fez companhia ao testador, quer na sua residência, quer levando-o a passear, quer mesmo acompanhando-o ao médico sempre que este pretendesse (conduzindo-o no seu próprio carro ou em carro de aluguer) para as consultas de rotina, e deslocava-se com ele às compras, ao banco, à farmácia, aos funerais;
- assistia-o a nível doméstico bem como na prestação de outros serviços, designadamente efectuando o pagamento das contas de água, luz, telefone, através da sua conta bancária, dinheiro que o falecido depois lhe restituía;
- em meados de Fevereiro de 1997, quando o falecido começou a sentir-se mal fisicamente, o primeiro réu levou-o, de imediato, a vários médicos a fim de ser examinado, bem como o acompanhou em todas as consultas, como até aí o fazia, conduzindo-o e acompanhando-o a diversas instituições hospitalares para ser submetido a exames;
- e também os 2º e 3º réus mantiveram uma boa relação de amizade com o testador, quer na sua infância, pois iam brincar para a casa deste, quer no período de adolescência, no que respeita ao réu G;
- além de tudo o mais o testador era uma pessoa prudente, tinha guardado um papel do qual constavam os nomes completos dos réus e dos pais destes e já beneficiara o 1º réu com uma doação e a abertura de uma conta bancária onde, até à maioridade deste, depositou dinheiro.
- na altura em que fez o testamento o cancro, que o veio a vitimar, não lhe obnubilava a inteligência ou enfraquecia a vontade, entendendo perfeitamente o que disse à oficial pública e os motivos que o determinaram a dispor dos seus bens dessa forma.
De todos estes factos se infere, sem dúvida, que o testamento foi outorgado pelo testador em perfeita consciência e no domínio pleno da sua vontade, pretendendo, quiçá, retribuir uma longa e dedicada amizade.
Parece, assim, claro, não apenas que não é possível interpretar extensivamente o art. 2194º, mas ainda que é de concluir que a real intenção do legislador foi a de consagrar a solução que resulta, sem margem para dúvidas, da respectiva redacção.
E que, in casu, a deixa testamentária correspondeu por inteiro à expressão da vontade livre e consciente do testador.
Não merece, pois, qualquer censura o acórdão recorrido, que há-de ser confirmado.
Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores A, B, C, D, E e F;
b) - confirmar o acórdão recorrido;
c) - condenar os recorrentes nas custas da revista.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante indicadas sem outra referência.
(2) Ac. STJ de 04/07/75, in BMJ nº 249, pag. 496 (relator Arala Chaves); Ac. RL de 07/07/94, in BMJ nº 439, pag. 642 (relator Cruz Broco).
(3) Cfr. Ac. STJ de 21/03/95, in BMJ nº 445, pag. 480 (relator Ramiro Vidigal) onde se entendeu que "uma entidade personalizada de solidariedade social, designadamente uma Fundação, de natureza duradoura e que prossegue fins sociais, que se propõe prestar assistência ou tratamento a carentes deles, a fim de lhes assegurar condições de sobrevivência condignas, não é de equiparar aos profissionais referidos nos artigos 953º e 2194º do Código Civil, que, para além de não ser natural que assegurem bastantemente as necessidades do doador, podem ser eventualmente movidos por interesses meramente particulares de proveito próprio, situação que está na base da exclusão aí prevenida".
(4) Cunha Gonçalves, in "Tratado de Direito Civil", vol. IX, Coimbra, 1934, pag. 668.
(5) Ibidem, pag. 669.
(6) "Código Civil Portuguez Anotado", Vol. IV, Lisboa, 1875, pag. 315.
(7) Estudo publicado no BMJ nº 54, pag. 88.
(8) Actas da Comissão Revisora do Anteprojecto do Direito das Sucessões, apud Rodrigues Bastos, in "Direito das Sucessões segundo o Código Civil de 1966", 1982, pag. 148.
(9) Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. VI, Coimbra, 1998, pag. 315.
(10) J. Baptista Machado, in "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", Coimbra, 1990, pags. 185 e 186.
(11) Francesco Ferrara, "Interpretação e Aplicação das Leis", tradução de Manuel de Andrade, 4ª edição, Coimbra, 1987, pag. 150.
(12) Cfr. José de Oliveira Ascensão, in "O Direito - Introdução e Teoria Geral" 7ª edição, Coimbra, 1993, pags. 407 e 408.
(13) Cabral de Moncada, "Lições de Direito Civil", 2ª edição, Coimbra, 1954, pag. 153.
(14) Obra e volume citados, pag. 316.
(15) Ac. STJ de 22/05/2003, no Proc. 1300/03 da 7ª secção (relator Salvador da Costa).
(16) "A nulidade estabelecida no artigo anterior não abrange: a) os legados remuneratórios de serviços recebidos pelo doente; b) as disposições a favor das pessoas designadas no nº 3 do art. 2192º" (descendentes, ascendentes, colaterais até ao terceiro grau ou cônjuge do testador).
A este propósito dir-se-á que à doação feita ao 1º réu pelo testador, em 21 de Março de 1997, bem como à doação em que se traduziu a abertura por ele de uma conta bancária em nome do citado 1º réu, não pode atribuir-se, sem mais, natureza remuneratória.