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IMÓVEL DESTINADO A LONGA DURAÇÃO
CONTRATO DE EMPREITADA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
DEFEITO DA OBRA
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
ACÇÃO DE CONDENAÇÃO
Sumário
Nas empreitadas de imóveis de longa duração, em caso de reparação urgente e não tendo a ré empreiteira procedido à eliminação dos defeitos atempadamente denunciados pelos autores donos da obra, podem estes ultrapassar a sequência procedimental prevista nos artigos 1222 e 1223 do Código Civil e, ao abrigo do artigo 1225 do mesmo Código, exigir judicialmente à ré o pagamento do que tiverem gasto, através de terceiros, na reparação desses defeitos.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Nesta acção ordinária os autores A e mulher B pedem que a ré C seja condenada a pagar-lhes a quantia de 4.401.554$00, como juros de mora desde a citação, com fundamento no incumprimento de um contrato de empreitada, pelo preço de 16.337.186$00, IVA incluído, para construção de uma moradia dos autores, unifamiliar, com anexos, na qual surgiram defeitos, que, apesar de denunciados à ré, esta não os eliminou, pelo que tiveram de ser os autores a corrigi-los.
A ré contestou, alegando, em síntese, que:
-não executou a obra com defeitos;
-nunca se recusou a eliminar os defeitos denunciados;
-o orçamento ascendeu ao montante de 17.392.186$00, tendo os autores desistido da aplicação do aquecimento central no valor de 855.000$00.
Em reconvenção pede a condenação dos autores no pagamento da importância de 2.872.806$00, com juros, respeitante à execução de obras e aplicações de materiais não contemplados no orçamento inicial.
Houve réplica e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, na procedência parcial da acção e da reconvenção, decidiu condenar a ré a pagar aos autores a quantia de 4.888,69 euros, deduzidos daquilo que se vier a liquidar em execução de sentença, como correspondendo ao acréscimo da despesa e trabalho pelas alterações discriminadas no facto 123, com o limite máximo de 4.080,17 euros.
Apelaram os autores e, subordinadamente, a ré para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, em procedência parcial da apelação do autores e na total improcedência da apelação da ré, revogou em parte a sentença e condenou a ré a pagar aos autores a quantia de 14.971,70 euros, mantendo tudo o mais sentenciado.
Pede agora a ré revista deste acórdão, com as seguintes conclusões:
1. Perante o cumprimento defeituoso de um contrato de empreitada deve o dono da obra seguir o iter legal, previsto nos artigos 1220 a 1223 do Código Civil.
2. Deverá o dono da obra, seguindo este iter legal, pedir primeiro a eliminação dos defeitos ou construção de obra nova pelo empreiteiro, ou, não sendo os mesmos elimináveis voluntariamente por este, obter a sua condenação judicial para prestação de facto.
3. Somente se não for possível eliminar os defeitos, o que não é o caso, pode o dono da obra pedir a resolução do contrato e a indemnização devida.
4. O artigo 1225 do C. Civil deve ser interpretado, no caso de imóveis destinados a longa duração, no sentido de que, sendo os defeitos elimináveis, tem aplicação o disposto nos artigos 1219 e ss. do C. Civil e deve o dono da obra seguir o iter legal aí previsto, valendo a ressalva inicial do nº1 deste articulado, não assistindo a este um direito de indemnização autónomo, tudo com os prazos de denúncia e propositura de acção alargados nos termos deste normativo legal.
5. Somente no caso dos defeitos não serem elimináveis, por impossibilidade, assiste ao dono da obra, dentro dos prazos aí fixados, mais dilatados que o previsto nos artigos 1219 e ss., o direito a ser indemnizado autonomamente nos termos do artigo 1225 do Código Civil.
6. Os autores, na sua petição inicial, admitindo a eliminação dos defeitos, que já tinham concretizado, reconheceram a natureza reparável ou suprimível dos mesmos, pelo que pedindo a condenação da ré a suportar os custos desta eliminação, não concretizaram um pedido autónomo de indemnização.
7. Estariam, assim, os autores sujeitos, para eliminação destes defeitos, à disciplina e ao iter regulado nos artigos 1220 e ss. do C. Civil.
8. Carece, assim, de fundamento legal o pedido de indemnização pelo pagamento das obras realizadas pelos autores, devendo a acção improceder.
9. Sem prescindir, admitindo-se que os autores poderiam realizar as obras urgentes, sem obter previamente a condenação da ré na realização das mesmas, não pode esta ser condenada a pagar as obras resultantes de defeitos que não houvesse urgência em eliminar.
10. Devendo, neste caso, e só neste caso, a ré ser condenada a pagar a aludida quantia de 250.000$00 + IVA 17%, relativas às referidas nas alíneas b) e c) da resposta do artigo 70º da base instrutória.
11. Não havia urgência na realização das restantes obras realizadas pelos autores, que se compadeciam com a eventual condenação da ré na sua realização, nomeadamente as referidas nas alíneas a), d) a i) da resposta do artigo 70º da base instrutória.
12. Não tendo os autores seguido o iter legal para a realização destas obras não é o valor das mesmas feito à custa de terceiros, indemnizável pela ré, por aqueles não terem seguido o iter legal previsto nos artigos 1221 a 1223 do Código Civil.
13. Não ficaram provados quaisquer danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo a ré ser absolvida dessa condenação, revogando-se nesta parte o douto acórdão recorrido.
14. Por os autores não terem seguido o iter legal previsto nos artigos 1221 e ss. do Código Civil, deve a ré ser absolvida do pedido formulado, revogando-se o douto acórdão recorrido.
15. O douto acórdão recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 1221 a 1223, 1225 e 496, todos do Código Civil.
Os recorridos contra-alegaram no sentido do improvimento do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Uma vez que não vem impugnada, nem há lugar à sua alteração, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido, nos termos do nº6 do artigo 713, ex vi artigo 726, ambos do Código de Processo Civil (CPC).
As conclusões da recorrente - balizas delimitadoras do objecto do recurso (artigos 684, nº3 e 690, nº1 do CPC) - comportam as seguintes três questões para solucionar :
1ª-INCUMPRIMENTO PELOS RECORRIDOS DO ITER LEGAL PREVISTO NOS ARTIGOS 1220 A 1223 DO CÓDIGO CIVIL;
2ª-CARIZ NÃO URGENTE DAS OBRAS REFERIDAS NAS ALÍNEAS A) E D) A I) DA RESPOSTA AO ARTIGO 70º DA BASE INSTRUTÓRIA;
3º-INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS.
1ª QUESTÃO
Segundo a recorrente empreiteira, os recorridos donos da obra não têm direito à indemnização que pedem na presente acção, por não terem respeitado o que a recorrente designa por iter legal, regulado nos artigos 1221 a 1223 do Código Civil, traduzido na seguinte sequência comportamental por parte do dono da obra que pretenda exercer os seus direitos quando detecta defeitos na obra:
-denúncia dos defeitos e exigência da sua eliminação pelo empreiteiro;
-se os defeitos não puderem ser eliminados, exigência da realização de uma obra nova pelo empreiteiro;
-não sendo eliminados os defeitos nem construída de novo a obra, exigência da redução do preço ou da resolução do contrato;
-exigência de uma indemnização nos termos gerais, a acrescer ao exercício de qualquer destes direitos.
Era este, de facto, o entendimento geralmente aceite, consentâneo, aliás, com os princípios da obrigação de indemnizar por responsabilidade civil, em que se privilegia a reconstituição natural, a cargo do responsável, relativamente à fixação da indemnização em dinheiro (artigo 566, nº1 do Código Civil).
O certo, porém, é que o bom que se tem vindo a verificar, de alguns anos a esta parte, na área da construção civil, vem concomitantemente evidenciando que este regime é, de todo, incompaginável com os respectivos contratos de empreitada, sob pena de graves e irremediáveis prejuízos para os donos da obra.
Na verdade, como lucidamente se salienta no acórdão do STJ, de 8/3/2001, CJSTJ, ano IX, tomo I, página 160:
«Nos imóveis construídos para longa duração e com a tecnologia crescentemente complexa usada na construção, os vícios (sobretudo e principalmente os ocultos) manifestam-se com frequência anos depois.
De tal sorte que bem pode suceder que, no momento em que os vícios se patenteiam, a utilização dos direitos clássicos do dono da obra ou se revela já inviável, ou é uma miragem ou representa uma sobrecarga na economia jurídica do contrato que nada os legitima. Daí que se justifique a concessão (nestes casos de imóveis edificados para perdurar) de um novo direito - de cariz indemnizatório - e que acresce àqueles outros.».
Este novo direito indemnizatório está previsto no nº1 do artigo 1225 do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 3º do DL 267/94, de 25 de Outubro e traduz-se em que, sem prejuízo do disposto nos artigos 1219 e seguintes, se a empreitada tiver por objecto a construção, modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis destinados por sua natureza a longa duração e, no decurso de cinco anos a contar da entrega, ou no decurso do prazo de garantia convencionado, a obra, por vício do solo ou da construção, modificação ou reparação, ou por erros na execução dos trabalhos, ruir total ou parcialmente, ou apresentar defeitos, o empreiteiro é responsável pelo prejuízo causado ao dono da obra ou a terceiro adquirente.
A remissão feita no início desta norma para o disposto nos artigos 1219 e seguintes significa, quanto a nós, que o peticionante da indemnização (o dono da obra ou o terceiro adquirente), no caso de esta se basear em defeitos, além de os denunciar ao empreiteiro, deve exigir que este os elimine e só depois, perante a sua inércia ou a sua recusa em os eliminar (ou a fazer nova construção, no caso de os defeitos não serem elimináveis), é que poderá ultrapassar os demais passos da referida sequência legal e optar pela formulação do pedido indemnizatório previsto no artigo 1225 do CC, destinada designadamente - como é o caso dos autos - a ressarcir o dono da obra (ou o terceiro adquirente) do custo das reparações que, pela sua urgência, se viu obrigado a fazer.
No caso concreto resulta da prova que:
-no dia 2/3/2000 foi enviado à ré o relatório da vistoria efectuada pelo técnico contratado pelos autores, acompanhado dos orçamentos para reparação dos defeitos, num total de 3.526.600$00 +IVA (Y);
-pedia-se que a ré respondesse em 5 dias posteriores à recepção da carta, pois o chão continuava a levantar mais ondas tornando cada vez mais difícil a utilização da casa (Z);
-a ré nada respondeu à carta mencionada em Y (AA);
-o soalho de madeira revestia o chão das salas e quartos de dormir, o hall de entrada e corredores (BB);
-os autores, através do seu mandatário, enviaram nova carta à ré no dia 3/4/2000, solicitando a resolução dos defeitos no prazo máximo de 30 dias, pedindo ainda que as obras tivessem início até ao dia 10 desse mês (CC);
-na mesma carta solicitavam os autores o livro de obra e os recibos correspondentes aos pagamentos por eles à ré num total de 15.824.096$00 (DD);
-a ré não deu qualquer resposta à carta referida em DD (EE);
-o acumular da humidade e o enrugamento sistemático do chão, o empenamento das portas interiores e exteriores tornaram inabitável a moradia (FF).
Está, assim provado que os recorridos, por duas vezes, denunciaram à recorrida os defeitos e exigiram que ela os eliminasse, não tendo obtido qualquer resposta a qualquer dessas consecutivas solicitações.
Por outro lado, o constante da alínea FF) evidencia a urgência da correcção dos defeitos, o que é enfatizado pelo acórdão recorrido, ao ajuizar valorativamente toda a factualidade apurada no sentido de que «os AA. foram habitar a moradia quando esta lhes foi entregue pela ré, e naturalmente que necessitavam de aí permanecer em condições condignas que o defeituoso cumprimento do contrato pela ré impediu. Não se trata de pequenas deficiências de construção, mas sim de deficiências importantes conexionadas com aquele mínimo de habitabilidade que qualquer edifício destinado a habitação deverá ter.».
Para além de se nos impor como juízo de valor extraído dos factos provados - e constituir, por isso, matéria de facto, cuja fixação é da exclusiva competência das instâncias -, não há dúvida nenhuma que a urgência da reparação dos defeitos ressalta claramente dessa factualidade apurada.
Daí que, sem qualquer rebuço, acompanhemos o acórdão quando, impressivamente, conclui ser «inaceitável que, descobertos os defeitos logo a seguir à entrega da obra, os AA. permanecessem na moradia convivendo com humidades, tropeçassem no soalho ondulado, suportassem uma rede de esgotos inadequada, portas interiores e exteriores empenadas, etc., aguardando estoicamente os remédios sequenciais clássicos dos arts.1221 e 1222.».
É inexigível, de facto, tal estoicismo aos recorridos ou a qualquer normal dono da obra em idênticas circunstâncias.
Assim o vem entendendo a jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, como se pode ver dos acórdãos de 1/7/2003, proferido na revista nº909/03-1ªe de 25/9/2003, proferido na revista 2348/03-7ª - cfr.«Sumários...», nº73, páginas 22-23 e 85, respectivamente.
E, para além do que prevê o já analisado nº1 do artigo 1225 do Código Civil, se dúvidas houvesse que tal problemática também tem vindo a ser alvo da preocupação do legislador, basta atentar na actual redacção - inaplicável ao caso, face ao disposto no artigo 12 deste mesmo Código - do nº1 do artigo 12 da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº24/96, de 31/7 e alterada pelo DL nº67/2003, de 8/4:
«O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.».
Improcede, assim e por tudo quanto se acaba de expor, a primeira questão.
2ª QUESTÃO
Defende a recorrente que, a considerar-se legal o procedimento dos recorridos, há obras de reparação efectuadas que não se podem catalogar de urgentes e, por isso, não pode ser condenada a pagá-las, como é o caso das obras discriminadas nas alíneas a) e d) a i) do artigo 70º da base instrutória.
Quanto a este aspecto pode ler-se no acórdão recorrido:
«Sucede que perante o que a tal respeito vem provado (item II.1 - 47 a 75), não vemos motivo para não incluir nesse cômputo as quantias de 1.098.048$00 e 2.316.599$00 pagas pelos AA. às firmas «Construções Vera Cruz» e «Holzaco», respectivamente, já que os trabalhos por elas realizadas a pedido daqueles se traduziu em reparações urgentes.» (o sublinhado é nosso).
Portanto, o acórdão qualificou de urgentes todos os trabalhos de reparação dos defeitos, que os recorridos encomendaram e pagaram às duas identificadas firmas.
Ora, pelas razões já acima aduzidas, este juízo de valor sobre o cariz urgente das reparações efectuadas merece-nos inteiro acatamento - nº1 do artigo 729 do Código de Processo Civil -, pelo que nada mais se nos oferece argumentar no sentido da inexorável improcedência desta segunda questão.
3ª QUESTÃO
É hoje indiscutível que a indemnização por danos não patrimoniais é também devida no âmbito da responsabilidade contratual, desde que, como é óbvio, e além do mais, os desgostos e as dores morais sofridas pelos lesados com os actos dos lesantes assumam, pela sua gravidade, dignidade ressarcível (nº1 do artigo 496 do Código Civil).
O acórdão sob recurso considerou verificados esses pressupostos, decorrentes dos factos provados, evidenciadores de que os recorridos sofreram incómodos e arrelias pela circunstância de terem ficado impedidos de usufruírem plenamente a sua casa, por virtude dos vícios que a mesma apresentava, tendo que suportar as reparações que se seguiram e, consonantemente, fixou a compensação por este dano no montante de 300.000$00, a favor de ambos os recorridos.
Ao contrário do que defende a recorrente, entendemos justificar-se esta condenação, quer pela verificação dos respectivos pressupostos legais, quer pelo equilíbrio do montante indemnizatório fixado.
Não estamos, na realidade, perante simples e inócuos contratempos.
Relembremos que «os autores puseram todo o cuidado na construção da sua casa, sendo esta para eles algo de muito importante» (facto 78) e que, por causa dos defeitos, «o acumular da humidade e o enrugamento sistemático do chão, o empenamento das portas interiores e exteriores tornaram inabitável a moradia» (facto FF)), sendo certo que, aquando da realização das obras de reparação dos defeitos, «...os autores saíram por diversas vezes de casa».
É notório que todo este circunstancialismo negativo e obstaculizador do natural e legítimo anseio de usufruir a sua própria casa, em cuja construção tanto se empenharam, causou sofrimento nos recorridos, merecedor de tutela jurídico-indemnizatória.
Improcede, portanto e também, esta última questão.
DECISÃO
Pelo exposto, nega-se a revista, com custas pela recorrente.
Lisboa, 28 de Maio de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho