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RECONHECIMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO
Sumário
I - São fundadas as dúvidas que o tribunal recorrido manifestou, não sobre a credibilidade da testemunha, mas sobre a fiabilidade do reconhecimento presencial feito pela testemunha relativamente a sujeito [arguido] que, cerca de 4 anos antes, viu colocar um carapuço na cabeça, num outro veículo automóvel, também em movimento. II – A prova por reconhecimento está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova.
Texto Integral
Recurso nº 451/05.4GAVCD.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.
1. Por acórdão, proferido, em 2009/12/16, no processo comum n.º 451/05.4GAVCD, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila do Conde, foi decidido, além do mais sem interesse para a presente decisão, absolver o arguido b…, com os demais sinais dos autos, da prática de um crime de roubo, previsto e punível pelo artigo 210.º, n.os 1 e 2, al. b), 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal, com referência ao art. 4.º, do DL n.º 48/95, de 15/09, e de um crime de falsidade de depoimento, previsto e punível pelo artigo 359.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, com referência ao artigo 61.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que lhe eram imputados nestes autos.
2. Inconformado com esta decisão dela recorreu o Ministério Público (MP).
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«1 – Não há fundamento válido para não dar credibilidade absoluta ao depoimento/reconhecimento da testemunha C…;
«2 – O arguido não disse, nem comprovou, onde se encontrava à data/hora em que decorreu o assalto de forma a, fundadamente, pôr em causa o depoimento daquela testemunha;
«3 – Na maior parte das investigações não se recolhem (por impossibilidade prática) vestígios lofoscópicos e não é por isso que os arguidos deixam de ser condenados desde que existam outras provas consistentes contra eles, como é o caso dos depoimentos das testemunhas presenciais;
«4 – Não se pode colocar no mesmo nível valorativo o que o arguido disse (ou não disse), atento o seu estatuto processual, e o depoimento/reconhecimento da testemunha C… que é uma pessoa sem qualquer interesse no desfecho do processo (nem sequer é ofendida) e que não conhecia o arguido. Ao seu depoimento terá de, obviamente, se dar mais valor do aquilo que referiu o arguido;
«5 – Da leitura do Acórdão emerge a conclusão de que para o reconhecimento ter valor probatório teria a testemunha que ter estado "frente a frente" com o arguido o que não se afigura correcto porque nem a lei nem a experiência fazem depender dessa circunstância a validade dos reconhecimentos;
«6 – Mas ainda que, por hipótese absurda, esse requisito fosse exigido sempre o tribunal teria que ter levado em conta que a testemunha esteve efectivamente frente a frente com o arguido pois este encontrava-se num veículo que estava a fazer a inversão de marcha quando a testemunha passou por ele sendo que quando o cruzamento entre ambos se fez, o veículo onde seguia o arguido estava de frente para o veículo onde seguia a testemunha (tendo os factos ocorridos em plena luz do dia - atenta a hora e a época do ando em que ocorreram);
«7 – Dada a singularidade da experiência vivida pela testemunha é normal que, sendo ela uma cidadã comum, veja gravada, de forma indelével, na sua memória, a cara do arguido por muito tempo que possa decorrer sobre a data dos factos;
«8 – O princípio da livre convicção do julgador princípio não é absoluto tendo o julgador, através do exame crítico dos meios de prova, que explicar, de forma fundamentada e lógica, para fundamentar a sua decisão, porque motivo não dá credibilidade a um determinado meio de prova;
«9 – Não é necessário que se tenham de reunir outros meios de prova para dar validade ao reconhecimento. Tudo depende da convicção, da espontaneidade e da objectividade com que o mesmo é efectuado, requisitos que, no caso em apreço, se verificam;
«9 – Ao não dar credibilidade ao reconhecimento que a testemunha C… efectuou e, em consequência, ao não condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de um crime de roubo o tribunal recorrido incorreu em erro na apreciação da prova violando o disposto nos arts.210.º, n.º 1 e 2, al. b) e 204.º, n.º 2, al. f), ambos do Código Penal e no art.º 127.º do Código de Processo Penal.
Terminou com o pedido de revogação do acórdão recorrido e de condenação do arguido como co-autor material do crime de roubo que lhe é imputado.
3. Notificado do recurso, o arguido não apresentou resposta ao mesmo.
4. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto juntou parecer aos autos, em que se pronunciou por que o recurso merece provimento.
5. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), de novo não foi apresentada resposta ao parecer.
6. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto, o mesmo é restrito à absolvição do arguido pelo crime de roubo, e as questões postas no recurso são as seguintes:
– Da impugnação dos factos não provados consignados no acórdão recorrido e relativos ao crime de roubo, a saber [1]
- Que o arguido tenha sido um dos referidos quatro indivíduos;
- Que o arguido seguisse no lugar do passageiro da frente do veículo Lancia;
- Que o arguido tenha participado e praticado os factos descritos na acusação e supra descritos;
2. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
«1. Factos Provados
«Considera-se assente a seguinte factualidade:
«1. Quatro indivíduos de identidade não concretamente apurada, e circulando em veículo de marca “Lancia”, de cor escura, de matrícula não apurada, porquanto se encontrassem a circular em área desta comarca, na freguesia de …, formularam o propósito de subtrair um veículo automóvel, ainda que para tal tivessem de recorrer à violência física, valendo-se ainda da posse de uma arma do tipo caçadeira de canos serrados, e ainda de capuzes com vista a ocultar as respectivas identidades.
«2. Na execução de tal plano previamente concertado, no dia 19 de Abril de 2005, os referidos indivíduos aperceberam-se que D…, que conduzia o veículo com a matrícula “..-..-MB”, de marca “Mercedes”, modelo “…”, de valor não concretamente apurado mas entre 20.000 e 30.000 euros, e propriedade de E…, o tinha parado em frente à escola, na Rua …, …, Vila do Conde, cerca das 19:45 horas, e ligado as luzes intermitentes.
«3. Então, e na prossecução dos seus propósitos, e, porque vinham na referida via, no sentido Porto-Póvoa do Varzim, procederam à inversão de marcha do veículo em que seguiam, e assim logo parado o mesmo e encostado na traseira do MB.
«4. No momento em que procediam à inversão de marcha, os referidos indivíduos passaram a proteger a respectiva identidade com a colocação de gorros ou capuzes na cabeça, de cor preta, de malha canelada, com dois orifícios para o rosto, tapando a face.
«5. Nestes termos, um dos ocupantes do referido veículo, cuja identidade não foi possível apurar, e onde seguiam também os outros três, saiu do mesmo e encapuzado e munido de uma arma caçadeira, apontou a mesma às costas da ofendida, ao mesmo tempo que lhe dizia: “passa para cá a chave”.
«6. A ofendida, - e apercebendo-se que um indivíduo saiu no interior de um veículo estacionado atrás do veículo que conduzia, saiu daquele e entrou no MB, - negou-se a entregar as chaves, dizendo que não as tinha, retorquindo-lhe então o referido indivíduo: “Já lhe disse, passe para cá as chaves, dá-me as chaves se não mato-te”, ao mesmo tempo que procurava pelas mesmas nos bolsos do casaco que a ofendida trajava.
«7. Temerosa pela sua integridade física e vida, a ofendida procedeu à entrega das chaves do MB que tinha guardado de facto num dos bolsos do casaco.
«8. Na posse das chaves o indivíduo encapuzado que a assaltou atirou as chaves a outro indivíduo também encapuzado, que passou para o lugar do passageiro do MB e dirigiu-se ao carro conduzido pela ofendida, abandonando então o local, a conduzir, mas mantendo a arma apontada àquela até saírem do alcance visual, em direcção ao entroncamento da referida via com a Estrada Nacional que liga a Barcelos, no que foi seguido pelo veículo de apoio, onde também se encontrava outro indivíduo.
«9. No interior do MB encontravam-se ainda objectos da propriedade da ofendida D…, designadamente uma carteira de senhora, de cor preta de valor não apurado, os documentos pessoais daquela, e ainda as chaves pessoais da ofendida, valores e objectos esses que os referidos indivíduos/autores dos factos fizeram coisas suas.
«10. Todos os referidos indivíduos, no âmbito previamente concertado entre si, quiseram e apoderaram-se do veículo, e demais objectos que a ofendida levava consigo e fizeram os mesmos coisas suas, que retiraram com recurso à ameaça e violência, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que actuavam contra a vontade do respectivo proprietário.
«11. Os mesmos indivíduos, em número de quatro, apesar de identidade não concretamente apurada, agiram de comum acordo e em comunhão de esforços, de uma forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
«12. No dia 12-03-2009, pelas 11:30 horas, B… foi, depois de constituído como arguido, interrogado nessa qualidade, nas instalações da Directoria do Norte da Polícia Judiciária, no âmbito dos presentes autos, tendo sido advertido pelo agente policial que realizou a diligência, de que a falta ou falsidade da resposta sobre a sua identidade e antecedentes criminais o fazia incorrer em responsabilidade penal, sendo tal consignado no auto de fls. 312 a 313.
«13. Questionado o arguido sobre os seus antecedentes criminais e perguntado se já esteve preso, quando e porque motivo e se foi ou não condenado e porque crimes, aquele respondeu “Já respondeu em Tribunal, há cerca de vinte anos, pelo crime de furto (tentativa), sendo condenado em pena suspensa que não recorda. Recentemente foi condenado diversas vezes por conduzir sem carta, sendo condenado a multas. A última está a cumprir pena de cinco meses efectiva de prisão, por não ter pago a multa ”.
«14. Sucede porém que o arguido não respondeu em tribunal apenas quanto àqueles crimes, designadamente tipos legais referidos, tendo respondido, e sido condenado, para além das condenações assumidas:
«- I - No âmbito do processo que correu os seus termos no 2.º Juízo Criminal, 2.ª Secção, do Tribunal Criminal do Porto, na pena de 180 dias de multa, pela prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
«- II - No âmbito do processo NUIPC 343/04.4PTPRT, que correu os seus termos no Tribunal de Pequena Instância Criminal, na pena de cinco meses de prisão, suspensa por 2 anos, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, do Código Penal;
«- III - No âmbito do processo NUIPC 771/01.7GBVNG, que correu os seus termos no 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, na pena de 220 dias de multa, pela prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, do Código Penal, subsequentemente convertida na pena de prisão subsidiária fixada em 146 dias;
«- IV - No âmbito do processo NUIPC 358/02.7PBGDM, que correu os seus termos no 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de catorze meses de prisão, suspensa por 2 anos, pela prática do crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, do Código Penal;
«- V - No âmbito do processo NUIPC 193/03.5PAGDM, que correu os seus termos no 1.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de um mês e três dias de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática do crime de roubo na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, e 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), e n.º 4, do Código Penal.
«15. O arguido quando prestou as aludidas declarações estava nervoso e não se lembrava das restantes condenações em que foi condenado.
«***
«2. Factos não provados
«Não se provaram os restantes factos constantes da acusação, designadamente que:
«- O arguido tenha sido um dos referidos quatro indivíduos;
«- O arguido seguisse no lugar do passageiro da frente do veículo Lancia;
«- O arguido tenha participado e praticado os factos descritos na acusação e supra descritos;
«- No interior do veículo Mercedes se encontrava a quantia de cerca de 5.400 euros em numerário, vários cheques de clientes e um anel em ouro com brilhantes, no valor declarado de 3.000 euros, valor e objectos esses que os referidos indivíduos fizeram coisas suas;
«- O arguido tenha prestado as aludidas declarações que sabia falsas, agindo de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, procurando induzir as autoridades judiciárias competentes e o tribunal em erro, o que quis.
«***
«3. Motivação da decisão sobre a matéria de facto.
«O artigo 127.º do Código de Processo Penal estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal.
«Assim, o tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo os depoimentos prestados em audiência e os documentos juntos aos autos.
«Na realidade, conjugados, confrontados e entrecruzados entre si os vários depoimentos prestados e os documentos juntos aos autos, buscando-se os seus pontos de concludência, coerência e de consistência, a prova é contundente e clarificadora nos termos supra expostos, uma vez que são factos que constituíram um denominador comum de toda a prova produzida.
«No que respeita às declarações do arguido e aos depoimentos das testemunhas, dispensamo-nos, aqui, de reproduzir tais declarações e depoimentos, uma vez que a audiência foi objecto de gravação.
Assim, o tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos provados, a partir do depoimento da ofendida D…, que descreveu com pormenor a conduta dos assaltantes e identificou o veículo objecto do assalto. Confirmou que no dia 19.04.2005, cerca das 18 horas, conduzia o veículo em causa, da marca “Mercedes”, propriedade de seu pai. A dada altura parou o referido veículo, sem o trancar, a fim de se deslocar à residência do médico do seu pai. Quando se encontrava a tocar à campainha da referida residência foi abordada pelas costas por alguém que lhe pediu as chaves do dito veículo. Acto contínuo virou-se para trás e viu alguém a entrar no Mercedes. Confirmou que alguém lhe encostou uma arma – caçadeira – às costas e lhe disse “passa para cá as chaves”. Esse indivíduo estava encapuzado e ela, cheia de medo, deu-lhe as chaves, tendo o mesmo entrado no Mercedes, que arrancou a grande velocidade. Esclareceu que no local se encontrava um outro veículo, não podendo precisar quantas pessoas lá estariam dentro, sendo que tal veículo também arrancou aquando do Mercedes. Adiantou também que não consegue identificar nenhum dos assaltantes. Por último, referiu que não recuperou nada do assalto em causa.
«Atendeu-se ainda ao depoimento das testemunhas F… e G…, respectivamente, empregada doméstica e morador na residência em causa, e que quando a ofendida tocou à campainha foram atender. Por esse motivo, explicaram que se aperceberam que estava ali um carro parado do qual saíram uns indivíduos encapuzados, sendo que um deles apontou uma arma à senhora do Mercedes e pediu-lhe a chave do mesmo, ao que ela acedeu. De seguida entraram no Mercedes e no outro veículo e puseram-se em fuga. Esclareceram que não conseguem identificar nenhum dos indivíduos até por que os mesmos usavam carapuço.
«Considerou-se também o depoimento da testemunha C…, que na ocasião se cruzou com um veículo Lancia, de cor preta, no qual seguiam quatro indivíduos. Tal veículo chamou-lhe a atenção pois a dada altura, repentinamente, virou para um campo e inverteu a marcha. Nessa altura reparou que os mesmos estavam a colocar um carapuço na cabeça. Apercebendo-se de que algo se ia passar deu a volta à escola e voltou a ver o Lancia e o Mercedes a arrancarem cada um deles com duas pessoas, que usavam carapuço, no seu interior. Esclareceu que não viu nenhuma arma mas viu que junto à residência do médico se encontrava uma senhora que ela desconhece. Confirmou que na PJ reconheceu o arguido como sendo a pessoa que seguia no Lancia ao lado do condutor, no momento em que o mesmo colocava o carapuço na cabeça. Admitiu que quando reconheceu o arguido o mesmo estava diferente relativamente ao dia do assalto.
«Atendeu igualmente o tribunal ao CRC do arguido junto de fls. 361 a 370 dos autos, bem como ao teor de fls. 312, 313, 389 e 390 e auto de reconhecimento de 315 a 317.
«Factos não provados.
«O arguido negou veementemente a prática de qualquer acto relacionado com o crime de roubo em causa, assim como negou que alguma vez tivesse circulado num veículo da marca Lancia.
«A ofendida não conseguiu identificar o arguido como um dos autores dos factos.
«O mesmo aconteceu com as testemunhas F… e G…, que apenas viram os referidos indivíduos com os carapuços enfiados na cabeça, não conseguindo, de forma alguma, identificá-los.
«Resta a testemunha C…, que segundo referiu não presenciou o assalto, apenas viu o veículo Lancia e respectivos ocupantes antes e após o mesmo, sendo que não viu qualquer arma.
«O tribunal não descurou o facto de a testemunha em causa ter identificado o arguido como sendo o indivíduo que seguia no interior do Lancia, ao lado do condutor. Contudo há que considerar vários pontos. Senão vejamos.
«Segundo é afirmado pela testemunha C…, ela encontrava-se ao volante de um veículo automóvel, em movimento, sendo que também o veículo Lancia estava em circulação. Acresce que a mesma, segundo ela, viu o arguido dentro do mesmo veículo a colocar o carapuço na cabeça.
«Quer dizer tudo se passa em movimento, com todas estas pessoas dentro dos respectivos veículos. Tudo se passa em poucos segundos, pensa-se. A testemunha em causa nunca esteve parada, frente a frente, com o arguido, sendo que não o conhecia anteriormente.
Por outro lado, não se pode esquecer que o reconhecimento feito na PJ e constante de fls. 315, foi efectuado quase quatro anos após o assalto em causa, e que a testemunha C… confirmou que nessa ocasião o arguido estava diferente relativamente ao dia do assalto.
Acrescente-se que não está em causa a veracidade do depoimento da testemunha C…, mas há que ter em conta todo o circunstancialismo que o rodeia, a realidade da vida e as regras da experiência comum.
Note-se que não foram recolhidos quaisquer vestígios lofoscópicos nos locais em questão. Nem ao veículo Mercedes que nunca foi recuperado.
Assim, o tribunal tem, por um lado, a palavra do arguido que nega os factos e, por outro, o reconhecimento do arguido feito nas circunstâncias referidas.
Por tudo isto, entende o tribunal que não foi recolhida prova que sustente base segura para uma condenação penal do arguido relativamente aos factos em causa: não pode o tribunal afirmar, para além da dúvida razoável, a autoria dos factos atinentes ao crime de roubo pelo arguido.
No que respeita aos restantes objectos (a quantia de cerca de 5.400 euros em numerário, vários cheques de clientes e um anel em ouro com brilhantes, no valor declarado de 3.000 euros) que, segundo a acusação, se encontrariam dentro do Mercedes, a ofendida D… não se lhes referiu, sendo que, relativamente aos mesmos, não foi produzida qualquer outra prova, motivo pelo qual o tribunal não considerou provado tal facto.
E que dizer quanto ao crime de falsidade de depoimento?
«O arguido declarou que aquando das perguntas relativamente aos seus antecedentes criminais estava nervoso e não se lembrou de todas as condenações.
«Não foi produzida qualquer prova em sentido contrário.
«Acresce que quando foi ouvido nos serviços do Ministério Público no dia 02.07.2009, ou seja, menos de quatro meses após, conforme resulta de fls. 389 e 390, o arguido também respondeu de forma genérica, referindo “e provavelmente outros que de momento não se recorda” e “e provavelmente outros cuja tipicidade não se recorda”.
«Também não se vislumbra o que poderia ganhar o arguido ao esconder conscientemente os seus antecedentes criminais, quando posteriormente, ainda antes da acusação, vem a revelá-los. Isto sem esquecer que o primeiro CRC do arguido se encontra junto a fls. 36 e segs., ou seja, muito antes de ter sido ouvido em tribunal.
«Assim, entende o tribunal que não foi recolhida prova que sustente base segura para uma condenação penal do arguido como autor de um crime de falsidade de depoimento: não pode o tribunal afirmar que o arguido agiu com consciência de induzir as autoridades competentes e o tribunal em erro.»
3. O arguido, absolvido, negou a sua participação nos factos.
A única prova apresentada pelo MP dessa participação é um reconhecimento presencial, feito pela testemunha C…. Não há rigorosamente mais nada susceptível de comprometer o arguido.
Na motivação da decisão de facto – análise crítica da prova – o tribunal colectivo explicita o porquê de não ter dado credibilidade à prova em causa ou, pelo menos, de não lha ter dado em termos de, apenas com base nela, formar uma convicção sobre a participação do arguido nos factos, suficientemente sólida para o condenar.
Os motivos que invoca não são insólitos, surpreendentes ou descabidos. O tribunal manifestou as suas dúvidas, baseadas, não na credibilidade da testemunha, vista tal credibilidade do ponto de vista da idoneidade pessoal dela e da boa-fé com que depôs, mas sim da fiabilidade das impressões sobre as quais ela fundou o depoimento, quer dizer, do depoimento em si mesmo. O tribunal manifestou o seu desconforto em tomar como única fonte da sua convicção um depoimento baseado numa percepção adquirida em condições materiais que a tornam pouco confiável.
Ou seja, aquilo que impediu o tribunal de formar uma convicção positiva quanto à participação do arguido nos factos não foi a pessoa da testemunha nem o modo como ela depôs, nem sequer qualquer defeito de forma no modo como foi realizado o reconhecimento.
Foi a sensação – facilmente compreensível a um observador atento –, de que as condições de percepção da pessoa avistada e o percurso posterior que levou à sua identificação como sendo o arguido, são favoráveis a que se verifique um erro nessa identificação. Note-se que não se afirma, nem o tribunal afirmou, que esse erro se tenha manifestado necessariamente. Apenas se pressente que há sérias possibilidades de ele ter ocorrido. Este impasse torna-se persistente; não há, na prova produzida de que o tribunal pode socorrer-se, meio de o ultrapassar. Está, assim, instalada, uma dúvida insanável que impede que, em consciência, o tribunal valore a prova, em termos de dar como provado o facto,
Vejamos!
O art.º 147.º do CPP dispõe o seguinte:
«Artigo 147.º
«Reconhecimento de pessoas
1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
«2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
«3 - Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação ode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
«4 - As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
«5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
«6 - As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
«7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.
À luz do disposto no artigo acabado de citar, para que se perceba a auto de reconhecimento de fls. 317, 317 há que chamar à colação o auto de inquirição de testemunha de fls. 78, e a ficha biográfica da Polícia Judiciária e a fotografia do suspeito que se lhe seguem (cfr. fls. 78 a 83).
E, sendo tal auto uma peça do inquérito e como tal vedada, em princípio, ao exame do tribunal em audiência e, logo, interdito também o seu uso como prova, a verdade é que ele contém elementos indissociáveis do exame por reconhecimento, nomeadamente no que respeita aos requisitos de forma constantes do n.º 1 – descrição e respostas a perguntas sobre circunstâncias anteriores que relevem para o reconhecimento – e do n.º 5 do citado artigo 147.º.
Nessa estrita medida, o auto de fls. 78 e ss, tem de considerar-se como integrante do auto de reconhecimento de fls. 315 e ss., sob pena de, não sendo assim, este último não ter valor como meio de prova, nos termos do disposto no n.º 7 do art.º 147, em referência.
Entre a data dos factos e a do autos de fls. 78 e ss. decorreram nove meses e vinte e um dias.
Entre a data dos factos e a do auto de fls. 315 e ss. decorreram três anos, dez meses e trinta e um dias.
A testemunha nunca tinha visto o suspeito. Viu o indivíduo que identifica como sendo ele, no curto período de tempo que pôde mediar no cruzamento do carro que conduzia, com o daquele em que o mesmo indivíduo circulava. «Quando olhou para o interior do veículo e dos seus ocupantes, terá sido nesse mesmo instante que se apercebe dos mesmos a descerem sobre a cabeça os gorros que já trariam todos eles enfiados na cabeça». Gorros esses que encobriam todas a cabeça e pescoço, com dois buracos para os olhos.
Daqui se conclui que a testemunha apenas observou a fisionomia da pessoa que identifica com o arguido, entes de ele tapar a cara como gorro, o que sucedeu no preciso momento – leia-se logo que, imediatamente a seguir – em que olhou para dentro do carro em que ele seguia.
Ainda assim, a testemunha distinguiu quatro indivíduos no interior do carro e desses descreveu dois.
E descreveu-os assim:
– «Ao condutor, como um indivíduo do sexo masculino, de pele morena. De cabelo curto, escuro, de bigode, e aparentando ter cerca de quarenta anos (…)»;
– «Ao ocupante do lugar direito da frente (…) descreve-o como um indivíduo de sexo masculino, de pele morena, de cabelo curto, escuro, de bigode mais farto do que o condutor e com bastantes marcas na cara e aparentando também ter cerca de quarenta anos».
Atentando nas duas descrições feitas, verificamos que o que distingue uma da outra é a fartura do bigode e as marcas na cara do ocupante do lugar do “pendura”, já que no mais são idênticas. E não apenas são idênticas como servem para descrever uma imensa generalidade de homens – tirando os muito jovens e os francamente maduros – que correspondem ao que poderia designar-se como o tipo físico do português padrão.
Temos, portanto, que, descontando a existência e fartura do bigode – já que bigodes crescem em muito menos de nove meses e aparam-se de um momento para o outro – o único sinal verdadeiramente distintivo do indivíduo que ocupava o lugar ao lado do do condutor, no carro dos suspeitos, eram as marcas na cara.
Marcas essas que teriam de ser marcantes, passe a redundância, para poderem ser apercebidas, como nota característica, num relance de olhos.
Conferindo agora as fotografias de fls. 83 e de fls. 317, sobretudo estas, o que se se verifica é que o fotografado é um indivíduo de feições regulares, olhos castanhos, com calvície – incipiente na fotografia de fls. 83 e já bem pronunciada nas de fls. 317 –, com bigode e sem outros sinais distintivos. Nomeadamente sem quaisquer marcas na cara susceptíveis de chamar a atenção.
A isto acresce que ignoramos totalmente que diversas fotografias foram exibidas à testemunha juntamente com a do arguido, na identificação fotográfica (cfr. fls. 80), nem qual foi o critério de selecção da amostragem, pelo que nunca poderemos saber a verdadeira amplitude da escolha que levou à selecção da fotografia em causa.
Assim como também não sabemos qual era o aspecto físico dos demais intervenientes, ao lado do arguido, na identificação de fls. 315.
No primeiro dos autos referidos diz-se apenas que foram exibidas «diversas fotografias de indivíduos conotados com a prática destes crimes».
O que, já de si, não deixa de ser intrigante, uma vez que na ficha biográfica de fls. 81 o arguido figura, além do mais, como «gatuno de veículos», o que não é o mesmo que assaltante à mão armada; e que, nas várias especialidades de prática de crimes que lhe são atribuídas na mesma ficha, a única de crime violento é a de violador (crime sem nenhumas afinidades com o dos autos). Também é curioso que, ainda na mesma ficha, são referidas, como sinais particulares do arguido, várias tatuagens – nos dois braços e na mão esquerda – mas nada de marcas na cara.
E no segundo auto, o de fls. 315 e ss. fez-se constar o nome dos funcionários que figuraram ao lado do arguido na identificação mas quanto ao seu aspecto apenas consta que eram de “aspecto e estatura semelhantes”. O que é demasiado genérico para ter valor informativo.
Ora, nos termos do disposto nos números 4 e 6 do artigo 147.º do CPP os elementos fotográficos em falta poderiam ter sido juntos ao processo, a não ser que houvesse oposição expressa dos visados. Seja como for, isso não foi feito e não foi dito porquê, ficando o processo privado de um interessante elemento de aferição do rigor de execução da diligência.
É que dentro do que pode ser considerado um tipo físico comum, há nuances que podem ser atenuadas ou realçadas, como, v. g., o cuidado na aparência, o tipo de roupas, a própria atitude perante a objectiva, etc.
Em resumo, considerando: o tempo em que a testemunha teve o indivíduo que disse identificar à vista, no local e momento da prática do crime; o tempo decorrido até à identificação fotográfica; a relativamente pouca informação dos exactos termos em que decorreu essa identificação; o tempo decorrido até à identificação em pessoa; e o facto de as circunstâncias em que se deu o primitivo avistamento serem naturalmente perturbadoras da emotividade de um observador comum, podendo reflectir-se na serenidade com que foi colhida e registada a percepção da pessoa posteriormente identificada, considerando tudo isto, dizíamos, é de encarar o reconhecimento efectuado com muitas reservas.
Pode a testemunha ser uma pessoa com especial aptidão como fisionomista, assim como pode ela ser uma pessoa segura de nervos, que não perde o sangue frio, que mantém a acuidade dos sentidos em quaisquer circunstâncias e que não se deixa influenciar por sugestões exógenas. Pode! E se não for?
Pode, enfim, a identificação do arguido estar certa! Pode, não negamos! E se não estiver?
O recorrente, na sua motivação de recurso, trata, salvo o devido respeito, a prova em apreciação, como se ela fosse de apreciação vinculada. No seu discurso está implícito o raciocínio de que a prova existe, a sua legalidade não pode ser posta em causa, logo, o tribunal deve-lhe obediência e tem de condenar.
Mas não é assim; a prova não é vinculada, é de livre apreciação. E mesmo que fosse vinculada, ainda assim, o tribunal não estaria obrigado a segui-la às cegas, como resulta do disposto no art.º 163.º do CPP. No caso de livre apreciação da prova, o que o tribunal tem de fazer é apreciar a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, nos termos do disposto no art.º 127.º do CPP.
Como está bem patente da motivação de facto do acórdão recorrido, o tribunal, na formação da sua convicção, não violou nenhuma regra da experiência. Limitou-se a ter dúvidas quanto a o reconhecimento feito pela testemunha traduzir fielmente a realidade dos factos.
Esta dúvida influenciou decisivamente a formação de uma convicção positiva sobre a culpa do arguido. Nestas circunstâncias, o tribunal só devia obediência à sua própria convicção, livremente formada, e ao princípio in dubio pro reo que, em caso de dúvida insuperável, manda dar como não provado o facto.
Uma última nota. O recorrente, a certo passo da sua motivação utilizou o seguinte argumento: “o arguido não disse, nem comprovou, onde se encontrava à data/hora em que decorreu o assalto de forma a, fundadamente, pôr em causa o depoimento daquela testemunha;” (cfr. conclusão 2.ª da motivação).
Bem sabe MP que o arguido não está onerado com qualquer ónus da prova.
Bem ilustrativo deste princípio é, de entre muitos outros locais de idêntico ou aproximado sentido, o seguinte, que refere Costa Andrade [2]:
«Como projecção normativa e prático jurídica dos dispositivos constitucionais atinentes aos Auffanggrundrechte da dignidade humana, da liberdade geral de acção ou do direito ao livre desenvolvimento, a liberdade de declaração não é um exclusivo do arguido. Com maior ou menor amplitude e consistência, ela assiste igualmente a outros sujeitos processuais, nomeadamente a vítima ou as testemunhas. Por razões óbvias, é, todavia, do lado do arguido que ela assume maior relevo. O que justificará o privilégio que, nesta sede e com propósitos meramente exemplificativos, concederemos à liberdade de declaração do arguido.
«Como ESER assinala (13), esta liberdade analisa-se numa dupla dimensão ou função. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa. Implica, noutros termos, que tenha de se garantir ao arguido a oportunidade efectiva de se pronunciar contra os factos qu lhe são imputados, em ordem a infirmar as suspeitas ou acusações e lhe são dirigidas. Pela negativa, a liberdade de declaração do arguido ganha a estrutura de um autêntico Abwehrrecht contra o Estado, vedando todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias. É precisamente nesta última dimensão, associada ao brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare (ou prodere) – que presta homenagem à lei talmúdica hebraica – que a liberdade de declaração do arguido assume mais directa relevância em matéria de proibições de prova.
«Neste sentido e resumidamente, o arguido não pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, sc., a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesa. Quer no que toca aos factos relevantes para a chamada questão da «culpabilidade» quer no que respeita aos atinentes à medida da pena. Em ambos os domínios, não impende sobre o arguido um dever de colaboração nem sequer um dever de verdade. E isto posta entre parênteses a vexata quaestio sobre se pode ou não falar-se com propriedade de um autêntico direito do arguido à mentira (14). Seja como for quanto a este ponto, não cremos que possa questionar-se a asserção de Castanheira Neves: «O que ninguém hoje exige, superadas que foram as atitudes degradantes do processo inquisitório (a recusar ao réu a qualidade de sujeito do processo e a vê-lo apenas como meio e objecto de investigação), é o heroísmo de dizer a verdade auto-incriminadora» (15).
«O que aqui está fundamentalmente em jogo é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade. Na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido
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«(13) Eser, ZStW 1967, págs. 571 e segs.
«(14) Cfr., por todos, Figueiredo Dias, Direito Processual, págs. 449 e segs., e BMJ Dez. 1979 (291), págs. 163 e segs.; Roping, JR 1974, págs. 138 e segs.; Puppe, GA 1978, págs. 302 e segs.
«(15) Castanheira Neves, Sumários, pág. 176.»
E, ainda, quanto ao estatuto do arguido, talvez com especial significado no presente contexto, o seguinte, dito por Figueiredo Dias/ Costa Andrade [3].
«Ao arguido é, seguramente, garantido um irrestrito direito de iniciativa e de contraditoriedade. Tudo está, porém, em saber com que consistência e eficácia. Quando o juiz [4] se dirige ao arguido, fá-lo a partir da «sua» construção e em nome das «teorias» mais ou menos conscientes que a suportam. E fá-lo frequentemente na forma de perguntas abertas, do estilo: «como explica x ou y?, ou, porquê x ou y?». Ora, às dificuldades e áleas próprias de todas as perguntas abertas (83), acrescem as já referidas dificuldades de verbalização e expressividade. Dificilmente, por isso, o arguido das classes inferiores logrará a força necessária para abrir brechas na construção do juiz: o seu naufrágio nestas respostas não deixará, muitas vezes, de ditar o naufrágio da sua «verdade». E isto só porque, ao contrário do que se dispõe nos textos legais e constitucionais, os arguidos oriundos dos estratos inferiores são efectivamente confrontados com um invencível ónus da prova.»
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«(83) Cfr. K.-D. Opp, (n. 63), pág. 93 e segs.»
Pois bem. De tudo o que ficou dito temos, por conclusão, que andou com prudência o tribunal recorrido e que, tendo agido no uso dos poderes que a lei lhe confere, a decisão proferida não merece censura.
Pelo que o recurso deve improceder.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Não há lugar ao pagamento de taxa de justiça.
Porto, 2011/04/27
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
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[1] Embora o MP não tenha dado cumprimento ao disposto na al. a) do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, é possível deduzir, das conclusões apresentadas, que os factos impugnados são os supra referidos (cfr. art.º 417.º, n.º 3, do CPP).
[2] Cfr. Manuel da Costa Andrade, Sobre As Proibições de Prova Em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, p. 120 e s.
[3] Jorge de Figueiredo Dias/ Manuel da Costa Andrade, Criminologia, 2.ª Reimpr., Coimbra Editora, 1997, p. 545 e s.
[4] Leia-se, aqui, sistema judiciário.