EMBARGOS DE EXECUTADO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ESCRITURA PÚBLICA
LICENCIAMENTO DE OBRAS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Sumário

1-Tendo sido celebrada escritura de compra e venda em 3.8.93, portanto na plena vigência da lei nº 46/85, de 20.9, nos termos do artigo 44º nº 1 desse diploma, bastante teria sido a exibição perante o notário da licença de construção do prédio, e não da licença de utilização.
2- Só assim deixou de ser com a publicação e vigência do Decreto Lei nº 281/99, que revogou o artigo 44º da Lei nº 46/85 e definiu, em termos mais precisos, o campo de aplicação das licenças de utilização e de construção.
3- Tendo a embargada, antes da outorga da escritura, falsamente assegurado ao embargante que a vistoria já tinha sido requerida e que a fracção reunia as condições para que a licença de habitabilidade fosse emitida, e sendo certo que o licenciamento não só não estava concedido pela Câmara Municipal, como mesmo o não poderia ser sem que, previamente, fossem corrigidas deficiências de construção várias, da responsabilidade da embargada (verificando-se, portanto, um cumprimento defeituoso da prestação da vendedora/exequente/embargada, pois não correspondia, face à sua falta de qualidades ou requisitos, ao objecto da obrigação a que achava vinculada), justifica-se a invocação da excepção de não cumprimento por parte do embargante, com a finalidade de, precisamente, retardar a sua prestação (pagamento parcial do preço) até que a contraparte cumprisse integralmente a sua prestação, devendo os embargos ser julgados procedentes, com consequente extinção do processo executivo.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


"A", residente no Porto, veio deduzir embargos à execução que lhe foi movida por "B", com sede em Lisboa, execução essa que visava a cobrança da quantia de 5.775.000$00, acrescia de juros de mora vencidos no valor de 778.569$00, bem como dos vincendos até liquidação plena daquele primeiro quantitativo que, justamente, representava parte do preço que incumbia ao executado pagar pelo negócio de compra e venda de uma fracção destinada à habitação, titulado na competente escritura.
Alegou o embargante a inexistência de título executivo bastante para ser desencadeado o respectivo processo - quer os cheques, quer a escritura pública constantes dos autos de execução - bem como a inexigibilidade do montante pretendido cobrar, dado que a exequente, ora embargada, não havia cumprido com a obrigação de obtenção da competente licença de habitabilidade, respeitante à fracção que constituía o objecto da dita escritura, através da qual aquela última tinha procedido à venda ao embargante da dita fracção destinada à habitação.
Devidamente citada, veio a embargada contestar, tendo alegado que o título que sustentava o pedido executivo era a referida escritura pública, que constituía meio bastante para desencadear a execução, para além do que não se verificava a invocada inexigibilidade da obrigação exequenda com o fundamento adiantado pelo embargante.
Foi proferido despacho saneador em que decidiu pela absolvição do embargante do pedido executivo, com base na falta, por parte da exequente, ora embargada, de título bastante para desencadear o processo executivo.
Foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, onde foi decidido que a exequente detinha título bastante para desencadear o pedido executivo, que era representado pela aludida escritura pública de compra e venda, tendo-se ainda determinado o prosseguimento dos embargos, tendo em vista a avaliação da procedência, ou não, da matéria de excepção articulada na petição inicial, respeitante à inexigibilidade da obrigação exequenda.
Foi, então, fixada a matéria de facto tida como assente entre as partes e organizada a base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, conforme resulta da respectiva acta, findo o que foi proferida decisão sobre a matéria de facto controvertida.
Foram dados como provados os factos seguintes:
1. No dia 3.8.93, o embargante adquiriu à embargada, pelo preço de 13.000.000$00, uma fracção autónoma designada pelas letras “AB”, correspondente a uma habitação do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua da Constituição, no Porto;
2. Foi acordado que o preço seria pago da seguinte maneira:
- Sete milhões duzentos e vinte e cinco mil escudos, já recebidos;
- Cinco milhões e setecentos e setenta e cinco mil escudos serão pagos até ao dia 30.12.93;
3. A exequente/embargada é portadora dos cheques constantes das fls. 163 e 164, assinados pelo executado/embargante;
4. Esses cheques foram emitidos para pagamento do preço na aquisição da fracção autónoma destinada a habitação a que se refere a escritura pública referida no Ponto 1 supra;
5. A licença de habitabilidade atesta a conformidade final da obra com o projecto aprovado;
6. Cabia à exequente/embargada a obtenção da licença de habitabilidade;
7. Até ao presente não foi atestada a habitabilidade do prédio onde se insere a fracção declarada vender;
8. Quando o embargante adquiriu a fracção em causa ainda não tinha sido objecto de vistoria pela Câmara Municipal do Porto;
9. A exequente/embargada assegurou ao executado/embargante que a vistoria já tinha sido requerida e que o imóvel reunia as condições para que a licença de habitabilidade fosse emitida;
10. O embargante/executado foi informado na Câmara Municipal que o prédio apresentava múltiplas deficiências de construção, impeditivas de emissão do certificado de habitabilidade;
11. O que posteriormente foi certificado pela Câmara Municipal, a requerimento da administração do condomínio do prédio;
12. Só em 23 de Março de 1994 a exequente/embargada requereu à Câmara Municipal o exame de vistoria do prédio;
13. Sem que a embargada/exequente proceda às rectificações do prédio, o dito certificado não será emitido.

Foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes e, em consequência, declarada extinta a execução, tendo-se, para tanto, defendido:
· que a escritura pública em causa não constituía título bastante para sustentar o pedido executivo, nos termos e para os efeitos do disposto o artigo 50º do Código Processo Civil, e, ainda,
· que procedia a excepção de não cumprimento deduzida pelo embargante, na medida em que a embargada não havia cumprido com a obrigação que sobre si impendia, de obtenção da competente licença de habitabilidade referente à fracção que tinha sido objecto de venda a favor do embargante.

Inconformada, veio a embargada interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que viria a proferir acórdão confirmatório da sentença recorrida.

Passa a transcrever-se a parte decisória do acórdão recorrido:
“... a apelante suscita duas questões que constituem o objecto do recurso interposto, dizendo respeito uma delas à existência de título bastante para sustentar o pedido executivo, enquanto a outra tem a ver com a verificação da invocada excepção de não cumprimento, impeditiva do pagamento da quantia exequenda.
Analisemos.
Na sentença impugnada reflectiu-se que a escritura pública que foi dada à execução não podia servir de título bastante para sustentar o pedido executivo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 50, nº 2, do CPC.
Relativamente a esta problemática cremos ser evidente não poder ter a solução que lhe foi dada pelo tribunal “a quo”, assim também não podendo sufragar-se a decisão que, nessa parte, fundamentou a procedência dos embargos.
O título que sustentou o pedido executivo formulado pela embargada foi a aludida escritura de compra e venda a que acima vem feita referência, acrescendo dizer que, quanto à força executiva de tal título, havia já este Tribunal da Relação se pronunciado em sentido afirmativo - v. o acórdão constante de fls. 153 a 156.
Com efeito, aí ficou definitivamente decidido que a escritura em causa constituía título bastante para sustentar o pedido de cobrança coercivo deduzido na execução, não colhendo, por isso, a tese defendida pelo embargante de que aquele pedido executivo devia ser indeferido.
Estamos, assim, diante de caso julgado material que se impõe às partes nos presentes autos de embargos, não lhes sendo legítimo de novo colocar em causa essa problemática e estando o tribunal impedido de sobre a mesma se pronunciar, sob pena de violar o caso julgado - arts. 671, nº 1 e 673, ambos do CPC.
Dessa forma, constituindo questão já definitivamente ultrapassada nos termos que ficaram decididos no aludido acórdão, então não era possível ao tribunal “a quo” tomar posição no sentido em que o fez, a ponto de fundamentar a procedência dos embargos deduzidos.
E, assim devendo entender-se a problemática acabada de apreciar, não será nessa base aceitável a confirmação do sentenciado, conducente à declaração de extinção do processo executivo.
Subsiste, contudo, averiguar se a segunda questão suscitada pela apelante deve merecer também solução diversa da perfilhada pelo tribunal “a quo”, a ponto de conduzir à improcedência dos embargos deduzidos.
Como vimos, o tribunal recorrido entendeu que constituía obrigação da embargada obter a licença de habitabilidade referente à fracção que foi objecto da mencionada escritura de compra e venda, o que não havia sido cumprido por aquela até ao momento da instauração da acção executiva, motivo pelo qual também não era exigível aquela outra obrigação que ao embargante cabia, de pagamento do resto do preço (5.755 contos), aprazado para 30.12.93.
Por outras palavras, procedia a excepção de não cumprimento invocada pelo embargante.
Analisemos.
Conforme resulta do disposto no art. 428, nº 1, do CC, a “exceptio non adimpleti contractus”, terá lugar, em princípio, nos contratos bilaterais, com prestações correlativas, ou seja, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra e quando não estejam fixados prazos diferentes para tais prestações.
A excepção em causa não nega o direito do autor do cumprimento, apenas recusa a sua prestação até que se encontre efectivada a prestação da parte contrária.
Contudo, conforme vem sendo defendido pela doutrina, mesmo em situações em que estejam em causa prestações com prazos de cumprimento diferentes, a “exceptio” poderá ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser realizada depois da do outro, só estando impedido de a invocar o contraente a quem competia cumprir em primeiro lugar - v., por todos, Vaz Serra, in RLJ, anos 105 e 108, págs. 283 e 155, respectivamente.
De assinalar ainda que o instituto da excepção do não cumprimento do contrato poderá funcionar não só diante de incumprimento total do contrato, como ainda perante o incumprimento parcial ou defeituoso, assistindo esse meio de defesa a qualquer dos contraentes, quando a contraparte cumprir ou oferecer o cumprimento em termos parciais ou defeituosos.
Trata-se da denominada “exceptio non rite adimpleti contractus” que possibilita ao demandado recusar a sua prestação, enquanto a prestação da contraparte não for completada - v., por todos, Antunes Varela, in “Das Obrigações Em Geral”, vol. 1, 10ª ed., págs. 400 a 401 e Ac. do STJ, de 18.2.03, in CJ/STJ, torno I, págs. 104 a 105.
Mas, como escreve Antunes Varela, “se o não cumprimento parcial da prestação pouco ou praticamente nenhuma importância tiver para a outra parte, não poderá esta usar da “exceptio”, sob pena de estar infringindo o princípio da boa fé”- in ob. e loc. cits.
Expostos estes princípios, caberá analisar se, no caso em presença, poderá funcionar a aludida excepção, de forma a considerar-se legítima a recusa de pagamento da parte do preço pelo embargante e, nessa medida, ser constatada a não exigibilidade da obrigação exequenda.
Estando nós diante de um contrato de compra e venda de bem imóvel, titulado pela assinalada escritura, a obrigação que à embargada competia era a entrega do bem objecto daquela venda, o que não vem posto em causa, estando o embargante na posse da respectiva fracção, sendo que a este último competia o pagamento do preço acordado, o que fez só parcialmente, posto que em falta está ainda o pagamento do montante de 5.775.000$00, com vencimento inicialmente aprazado na dita escritura para 30.12.93.
A questão que se coloca é, então, a de curar de saber se a obrigação que à embargada competia se deve ter por integralmente satisfeita, assim não fazendo sentido operar a invocada excepção de não cumprimento, face à não obtenção da licença de habitabilidade referente à fracção objecto do aludido contrato de compra e venda.
A respeito desta questão vem dado como adquirido que, aquando da instauração da acção executiva, ainda não tinha sido atestada a habitabilidade da mencionada fracção, competindo à embargada a obtenção da competente licença - de assinalar que tal licença só veio a ser obtida em 10.12.99 (v. doc. de fls. 264) - sendo que a mesma embargada, antes da realização da escritura de compra e venda, havia assegurado ao embargante que a vistoria já tinha sido requerida e que o imóvel reunia as condições para que a dita licença fosse emitida, constatando-se, contudo, que esse licenciamento não era concedido pela Câmara Municipal, por o prédio onde a aludida fracção se inseria apresentar múltiplas deficiências de construção, sem a rectificação das quais não era emitido respectivo certificado.
Diante desta materialidade e ponderando que a aludida fracção tinha como finalidade a habitação, afigura-se-nos que, no caso em presença, não será arrojado constatar-se que a obrigação que sobre a embargada impendia não se encontrava integralmente cumprida, aquando do vencimento do preço acordado e da instauração do processo executivo, já que sem aquele licenciamento - não concedido pelas deficiências assinaladas - estava impedida a realização do fim a que a aludida fracção se destinava, ou seja, em princípio não poderia ser utilizada para habitação, assim limitando o seu uso e disposição por parte do seu adquirente, o aqui embargante.
E esta constatação não é abalada pela circunstância de a respectiva escritura se ter realizado sem aquela licença ter sido emitida, já que não será por isso que a aludida fracção passava a poder realizar o fim a que estava afectada, padecendo de limitações no seu uso e impedimentos para uma eventual disposição posterior.
Na verdade, atento o fim a que a aludida fracção se destinava, não poderá, no caso em análise, deixar de considerar-se que a obrigação que impendia sobre a embargante correspondia à entrega - consequente à declaração de venda - da aludida fracção devidamente licenciada, por forma a permitir ao comprador (o aqui embargante) o seu pleno uso e fruição, sendo que, sem esse licenciamento, aquela obrigação não poderá considerar-se integralmente cumprida da parte do vendedor, configurando-se, assim, uma situação de cumprimento defeituoso ou inexacto daquela obrigação.
Aliás, não será despicienda essa falta de licenciamento, a ponto de afastar o funcionamento da aludida “exceptio”, em obediência aos ditames do princípio da boa fé, já que, face à materialidade supra enunciada, se nos afigura que foi essencial para a realização do negócio por parte do embargante a garantia dada pela embargada de que o imóvel onde aquela se inseria reunia as condições para que a competente licença de utilização fosse emitida.
Com a reflexão que se vem fazendo, pretende-se demonstrar que a obrigação exequenda, aquando da instauração da lide executiva, não era exigível, verificada que se encontra a excepção de não cumprimento nos termos invocados pelo embargante...”.

Continuando inconformada, veio a embargada/exequente interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo, atempadamente, apresentado as respectivas alegações, que foram concluídas pela forma seguinte:
1ª) A escritura pública de compra e venda em apreço, foi outorgada em 3 de Agosto de 1993, pela qual o embargante adquiriu à embargada B a fracção autónoma designada pelas letras “AB” do prédio sito na Rua da Constituição, nº ....., no Porto, pelo preço de 13.000.000$00;
2ª) Na outorga da referida escritura foram exibidos perante o notário os seguintes documentos:
a) A caderneta predial urbana emitida pela Repartição de Finanças do Porto;
b) Uma fotocópia passada na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto, das descrição e inscrições em vigor;
c) A Licença de Construção emanada pela Câmara Municipal do Porto.
3ª) O artº 44º da Lei 46/85, de 20 de Setembro, na redacção dada pelo Dec. Lei 74/86, de 23 de Abril, aplicável ao caso em apreço, estatuía que “não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial e da existência da correspondente Licença de Construção ou de Utilização, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura”;
4ª) Face ao regime legal em vigor à data da outorga da escritura em apreço a sua validade estava apenas dependente da prova perante o notário da existência da Licença de Construção (v. art. 44º da Lei 46/85, de 20 de Setembro, na redacção do Dec. Lei 74/86, de 23 de Abril);
5ª) A necessidade de prova perante o notário da existência da Licença de Utilização do prédio urbano ou das suas fracções autónomas, apenas resulta da actual regra do Dec. Lei 281/99, de 26 de Julho, o qual é inaplicável in casu;
6ª) Em face do exposto, a escritura pública de 3 de Agosto de 1993 é plenamente válida e foi realizada de acordo com as disposições legais aplicáveis à data – artº 44º da Lei 46/85, de 20 de Setembro, na redacção dada pelo Dec. Lei 74/86, de 23 de Abril - não sendo em 1993 necessária a exibição da Licença de Utilização do prédio urbano objecto da referida escritura pública;
7ª) A exceptio non adimpleti contractus não pode ser aqui invocada visto que foi o próprio Recorrente que com a sua conduta impediu que a Licença de Utilização fosse concedida.
8ª) A referida Licença de Utilização já foi emitida.
9ª) Ao proferir o douto Acórdão de fls. excederam os Meritíssimos Senhores Juízes Desembargadores o pedido feito nos Embargos deduzidos pelo Recorrido e que era simplesmente o seu direito a não cumprir por não ter o direito de disposição, e tal é-lhe vedado pela lei processual.
10ª) A limitação ao Direito de disposição da fracção por falta da Licença de Utilização apenas se põe após a entrada em vigor do Dec. Lei 281/99 de 26 de Julho e quanto a uma 2ª alienação já que quanto à primeira esta pôde ser feita sem a Licença de Utilização.
11ª) Aquando, quer da data do cumprimento da obrigação, quer até 1999 poderia o Recorrido ter vendido e registado a fracção como muito entendesse já que nenhuma disposição legal o impedia.
12ª) A fracção encontrava-se registada a seu favor já que sem que tal acontecesse jamais o Banco que lhe financiou a compra lhe teria concedido o crédito.
L 3ª) Finalmente, revogando parcialmente o Douto Acórdão da Relação do Porto quanto à parte que diz respeito à Licença de Utilização estará a ser feita, finalmente a esperada, Justiça.
Foram apresentadas contra-alegações, onde se defende a bondade e manutenção do Julgado.
Os autos correram os vistos legais. Cumpre decidir.
Decidindo:
Como é sabido são as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o tribunal ad quem, exceptuadas as que lhe cabem ex officio, só pode conhecer as questões contidas nessas mesmas conclusões - artigos 684º nº 3 e 690º do Código Processo Civil.
Resulta com toda a clareza das conclusões das alegações da presente revista, que a recorrente confunde duas questões perfeitamente distintas, correspondentes que são elas a realidades diferentes.
Uma primeira, respeita à eventual necessidade de prova perante o notário da existência da licença de utilização (licença de habitabilidade) para que possam ser outorgadas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios ou se, ao invés, bastaria a apresentação da licença de construção.
Ora, tendo sido a escritura em causa celebrada em 3.8.93, portanto na plena vigência da lei nº 46/85, de 20.9, entendemos que, nos termos do artigo 44º nº 1 desse diploma, tendo em vista a celebração de escritura pública de transmissão da propriedade de prédios urbanos, bastante seria a exibição perante o notário da licença de construção do prédio.
Prescrevia tal comando que “não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, e da existência da correspondente licença de construção ou de utilização, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura”.
Aceitamos que a questão não tinha uma solução pacífica e que, a tal propósito, a Jurisprudência se dividiu sobremaneira.
No entanto, sempre se referirá que a ratio do artigo 44º da Lei nº 46/85 residia na vontade do legislador de racionalizar a construção, assim como a transmissão de prédios urbanos atenta a necessidade de combater a construção clandestina, bem como de não inviabilizar a transmissão de prédios urbanos e de pôr fim à incerteza em que se encontravam os adquirentes de prédios transmitidos apenas mediante licença de construção.
De igual modo importante se tornava assegurar o interesse dos consumidores, por regra impedidos de obter toda a documentação que lhes permitisse a livre fruição e até alienação dos prédios adquiridos.
E foi o próprio diploma que revogou o artigo 44º da Lei nº 46/85, concretamente o Decreto-Lei nº 281/99 de 26.7, que, no respectivo preâmbulo, nos dá conta das interpretações opostas daquela norma: “segundo uns, a expressão licença de construção ou de utilização, quando exigível, significa que a escritura pública que envolva a transmissão da propriedade de prédios urbanos pode ser celebrada desde que uma das licenças seja exibida, aludindo a expressão quando exigível, aos prédios para cuja construção a lei não obrigava a licenciamento; segundo outros, a mesma expressão não atribui valor equivalente àquelas licenças, querendo significar que deve ser exibida a licença que, em concreto, couber, ou seja: a de construção, no caso de a compra incidir sobre prédio em construção; a de utilização, se respeitar a prédio já concluído”.
Por assim ser, inclinamo-nos, sem rebuço, atenta letra e até o espírito do preceito supra indicado, que seria bastante para instrução do processo de celebração de escrituras translativas de propriedade de prédios urbanos, a mera apresentação da licença de construção.
E só assim terá deixado de ser, com a publicação e vigência do Decreto Lei nº 281/99, que revogou o artigo 44º da Lei nº 46/85 e definiu, em termos mais precisos, o campo de aplicação de uma e de outra daquelas licenças, ficando, então, de uma vez por todas, resolvida essa problemática, que dividia os profissionais do foro.
Assim sendo, aceitamos como acertada toda a tese desenvolvida nas primeiras conclusões das alegações da revista, de resto acompanhando os pareceres que com as mesmas foram apresentados.
Já o mesmo não sucede no que respeita à alegação de que a exceptio não poderia ser invocada, na medida em que teria sido o comportamento do embargante que fora determinante para que a licença de construção não tivesse sido concedida.
É evidente o despropósito desta alegação na medida em que não tem a mesma o mais ínfimo suporte factual e só os factos dados como provados poderão ser considerados para a solução jurídica a tomar.
E o mesmo se diga no que respeita à alegação de que a licença de habitabilidade já foi emitida (e foi de facto, mas só em 1999...) e que aquando o Tribunal da Relação do Porto proferiu o acórdão, ora recorrido, já toda a situação estava resolvida.
Esta alegação é, de todo, verdadeira, só que completamente irrelevante, pois o momento temporal que importará tomar em consideração remonta a Fevereiro de 1995, altura em que o ora recorrido se veio opor à execução contra si movida, por meio de embargos em que, para além do mais, veio arguir a excepção de não cumprimento.
E colocados que estamos neste ponto, importará que abordemos a tal segunda questão a que acima nos referimos, quando se afirmou que o recorrente na sua revista confundia duas realidades distintas.
Na verdade, o que, verdadeiramente, importará apreciar é se as instâncias, melhor dito, o acórdão recorrido, andou bem ao julgar procedente a referida excepção de não cumprimento (com as inerentes consequências jurídicas de procedência dos embargos e extinção do processo executivo), pelo facto de considerar que “a obrigação que sobre a embargada impendia não se encontrava integralmente cumprida, aquando do vencimento do preço acordado e da instauração do processo executivo, já que sem aquele licenciamento - não concedido pelas deficiências assinaladas - estava impedida a realização do fim a que a aludida fracção se destinava...”, concluindo-se que “Com a reflexão que se vem fazendo, pretende-se demonstrar que a obrigação exequenda, aquando da instauração da lide executiva, não era exigível, verificada que se encontra a excepção de não cumprimento nos termos invocados pelo embargante...”.
E não nos restam quaisquer dúvidas que quer a 1ª instância, como o Tribunal da Relação do Porto, fizeram um adequado enquadramento jurídico dos factos dados como assentes, decidindo em conformidade e com toda justeza, ao julgar procedente a excepção de não cumprimento.
Antes de mais, recordemos que ficou provado que:
· A licença de habitabilidade atesta a conformidade final da obra com o projecto aprovado;
· Cabia à exequente/embargada a obtenção da licença de habitabilidade;
· Até ao presente não foi atestada a habitabilidade do prédio onde se insere a fracção declarada vender;
· Quando o embargante adquiriu a fracção em causa ainda não tinha sido objecto de vistoria pela Câmara Municipal do Porto;
· A exequente/embargada assegurou ao executado/embargante que a vistoria já tinha sido requerida e que o imóvel reunia as condições para que a licença de habitabilidade fosse emitida;
· O embargante/executado foi informado na Câmara Municipal que o prédio apresentava múltiplas deficiências de construção, impeditivas de emissão do certificado de habitabilidade;
· O que posteriormente foi certificado pela Câmara Municipal, a requerimento da administração do condomínio do prédio;
· Só em 23 de Março de 1994 a exequente/embargada requereu à Câmara Municipal o exame de vistoria do prédio;
· Sem que a embargada/exequente proceda às rectificações do prédio, o dito certificado não será emitido.
Ora, fácil é constatar que a embargada, ora recorrente, antes da outorga da escritura assegurara ao embargante que a vistoria já tinha sido requerida e que a fracção reunia as condições para que a dita licença fosse emitida, o que era falso.
E mais: o licenciamento não só não estava concedido pela Câmara Municipal, como mesmo se sabia que o não seria porquanto o prédio onde a fracção se inseria apresentava deficiências de construção várias, sendo que sem a correspondente correcção o licenciamento não seria possível.
Em suma: a embargada não cumprira a prestação a que se vinculara, nem mesmo estava em condições de a cumprir, sem que, previamente, não procedesse às rectificações correspondentes.
Tal facto, em nossa entendimento, justificava, plenamente, a exceptio invocada.
De facto, é consabido que dispõe o artigo 428º, nº 1 do Código Civil, que se nos contratos bilaterais, não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação, enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Doutrina e jurisprudência têm sublinhado que a existência de prazos diversos para o cumprimento das prestações só é impeditivo da invocação da excepção do não cumprimento por parte do contraente que deva cumprir em primeiro lugar, nada obstando que dela se prevaleça o outro (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, 4ª ed., vol. I, pg. 405-6; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pg. 303 e R.L.J. 119º/143; Galvão Teles, Obrigações, 7ª ed., pg. 453; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pg. 331; Vaz Serra, R.L.J.105º/283 e 108º/155; José João Abrantes, A Excepção do não cumprimento do contrato, 70 e ss.; acórdão da Relação de Coimbra, de 82.07.06, C.J., 82, IV, 35; da Relação de Lisboa, de 17.10.95, C.J., 95, IV, 116). Este entendimento é o único que permite manter o equilíbrio na economia do contrato, e resulta do argumento de maioria de razão.
Igualmente se tem entendido, desde os tempos do Código de Seabra, que é admissível a invocação desta excepção em caso de incumprimento parcial ou defeituoso - a exceptio non rite adimplenti contractus (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.12.82, B.M.J. 322º/321; da Relação de Évora, de 26.11.95, C.J., 95, IV, 269; Almeida e Costa, R.L.J., cit., e Direito das Obrigações cit., pg. 301). Sem prejuízo, naturalmente, da adequação e proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiens e o exercício da excepção, imposta pelo principio da boa fé, subjacente ao ordenamento jurídico que nos rege.
No entanto, a excepção do não cumprimento pressupõe que a prestação do contraente ao qual é oposta a excepção ainda é possível, atento o carácter dilatório desta excepção: a sua finalidade é, precisamente, retardar a prestação até que a contraparte cumpra (cfr. João José Abrantes, op. cit. pg. 51; Calvão da Silva, op. cit., pg. 334 e acórdão da Relação de Lisboa, de 95.10.17, cit.).
Não sendo possível a prestação da contraparte, designadamente por perda do interesse do credor, apenas restará a via da resolução ou redução da sua prestação, verificados os respectivos pressupostos, mas nunca a suspensão contratual para que aponta o artigo 428º do C.C.
Ora, in casu, constata-se que, à data da oposição à execução – e só essa releva – a exequente/embargada/recorrente não apresentara à contraparte a licença de habitabilidade que prometera (e obrigara-se a fazê-lo), sendo que, como se disse, nem sequer estava em condições de o fazer, pelo que se justificava plenamente a invocação da exceptio por parte do ora recorrente, com a finalidade de, precisamente, retardar a prestação até que a contraparte cumprisse, e só isto.
Pelo exposto, nenhuma censura importará que se faça ao acórdão recorrido, não se justificando, mesmo, fazer mais quaisquer considerações sobre a presente questão para além daquelas que foram desenvolvidas no mencionado acórdão que aqui se dão como reproduzidas e que supra se encontram transcritas.

Termos em que ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 8 de Junho de 2004
Ponce de Leão
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida