CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal por razões de equidade, conforme determina o artigo 812º, n.º 1, do Código Civil;
2. Para determinação das razões da redução devem ponderar-se as circunstâncias particulares de cada caso, de modo que a prestação debitória não se torne manifestamente excessiva para o responsável;
3. Se prejuízo não houver pelo incumprimento ou mora, e a clausula tiver apenas uma função indemnizatória, cabe ao devedor o ónus da prova correspondente.

Texto Integral

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça


I - Razão da revista

1. "A" intentou acção com processo ordinário, contra B, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 49.829,90, acrescida de juros desde a citação.
2. Alegou, resumidamente, ter celebrado com a Ré um contrato de empreitada para a reparação de uma embarcação de pesca, em que se estabeleceu uma cláusula que fixou, como data da conclusão definitiva dos trabalhos, o dia 20 de Abril de 2000; e, em caso de mora, fixou-se a indemnização de 200.000$00, por cada dia que ultrapassasse aquele dia 20 de Abril.
Aconteceu que a Ré só em 15 de Novembro de 2000, concluiu a obra, pelo que devia à A., por via da dita cláusula penal, a quantia de 41.800.000$00.
Mas a Autora entende reduzir para 10.990.000$00 (€ 54.817,89), por esta quantia se aproximar do prejuízo efectivamente sofrido.
E como deve à Ré 1.000.000$00, efectua, por isso a compensação, e só pretende receber o montante pedido, - os indicados € 49.829.90 euros -
( à volta de 10.000.000$00).
3. A Ré contestou, dizendo, no que agora interessa, que o seu sócio gerente assinou a clausula sem se ter apercebido do seu conteúdo e que o atraso se ficou a dever à A., que pediu à Ré para ir atrasando os trabalhos, o que se prendia com problemas relacionados com o licenciamento da embarcação, só, em 20 de Abril de 2000, tendo conseguido obtê-lo para a pesca da sardinha.
Disse, ainda, que a A. não teve prejuízos com a demora na entrega, já que depois disso ter acontecido, deixou a embarcação permanentemente aparcada no porto de pesca de Viana do Castelo.
De qualquer modo, a indemnização pedida seria sempre desproporcionada.
Finalmente, formulou pedido reconvencional no valor de € 4.987,98, que se encontram em dívida, quantia acrescida de juros à taxa legal, desde a data de entrega da embarcação - 15.11.2000 - até integral pagamento, computando os já vencidos em € 897,84.
4. A sentença julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à A. a quantia de € 4. 988.00, julgando improcedente o pedido reconvencional.
5. A Autora e Ré apelaram, esta subordinadamente, tendo a Relação do Porto julgado procedente a apelação da A., pelo que julgou a acção inteiramente procedente, e condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de quarenta e nove mil oitocentos e vinte e nove euros e noventa cêntimos (€ 49 829,90 - já compensado o montante em dívida à Ré), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento;
6. A ré pede revista.

II - Objecto da revista

No que releva para conhecer do objecto da revista, a recorrente diz o seguinte:
1. A cláusula penal subscrita por recorrente e recorrida ao prever uma indemnização sete vezes superior ao valor da empreitada é claramente desproporcionada e tem, mesmo, um carácter usurário.
2. O carácter claramente desproporcionado e usurário da cláusula penal não é afastado pela redução unilateral do seu valor efectuado pela recorrida, pois que, sempre se teria de considerar como manifestamente excessivo o valor de € 54.817,89, a ser atribuído à recorrida a título de cláusula penal.
3. Tendo a recorrida baseado o seu pedido indemnizatório no montante dos prejuízos alegadamente por si sofridos, (e, não na aplicação da cláusula penal) cabe-lhe o ónus da prova da existência e do montante de tais prejuízos, nos termos do art. 342° do Código Civil.
4. Sendo certo que a recorrida não logrou efectuar a prova de quaisquer prejuízos por si sofridos.
5. E conclui que o acórdão recorrido devia ter reduzido a indemnização nos termos do art. 812° do Código Civil, para o montante arbitrado pelo Tribunal de Comarca de Vila do Conde que, mesmo assim, corresponde a 1/3 do valor global do contrato de empreitada celebrado entre recorrente e recorrida.(Conclusão 17ª).
O acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 342°, 804° e 812° todos do Código Civil.

III - Os Factos

Os factos considerados provados e que revestem interesse para conhecer do tema proposto pela revista, são os seguintes:
1.°. A A. é uma sociedade familiar constituída entre marido e mulher, seus únicos sócios, tendo como objectivo a pesca costeira artesanal, actividade que prossegue com fins lucrativos .
2.°. A Ré dedica-se à actividade de serralharia mecânica e naval, montando motores em barcos e respectivo equipamento, tal como gruas, aladores, guinchos, etc.
-3.º. Em 4 de Junho de 1999, A. e Ré celebraram entre si, o contrato junto a fls. 5, tendo por base o orçamento de fls. 6 e a memória descritiva de fls. 7, segundo qual a Ré se obrigou a montar um motor propulsor e outro equipamento em barco que a A. tinha em construção nos estaleiros da Vianapesca, Cooperativa de Produtores .
5.° A Ré forneceu alguns outros pequenos acessórios cujo valor seria compensado no preço.
6.°. O preço acordado pagar pela A. à Ré pela execução daqueles serviços foi de 6.000.000$00, por conta do qual a A. já pagou à Ré a quantia de 5.000.000$00 .
7.º. A Ré subscreveu o doc. de fls. 9, intitulado "Modificação e aditamento de contrato", cuja cláusula 4ª diz:
«Mais acordam em fixar como data de conclusão definitiva dos trabalhos, excluindo-se apenas o alinhamento do motor, pela primeira outorgante (Ré), o dia 20 de Abril de 2000, devendo a primeira outorgante indemnizar a segunda (A.) em 200 000$00 (Duzentos mil escudos) por cada dia que ultrapasse a data da conclusão dos trabalhos».
8°. Em 15.11.2000 a Ré concluiu o trabalho que se obrigou a executar.
9.º A embarcação em causa, depois de ter sido entregue e sujeita ao teste de mar e a outras vistorias necessárias, encontra-se permanentemente aparcada no porto de pesca de Viana do Castelo, nos estaleiros da Vianapesca.
10 °. Nunca tendo ido ao mar para a faina da pesca.

IV - Questão resolver e direito que se lhe aplica

1. A questão da revista consiste em saber se a indemnização, fixada pelas partes em clausula penal, deve ser reduzida equitativamente a pedido do devedor. (1) e (2)
Sublinhe-se, desde logo, que a indemnização já foi reduzida unilateralmente pelo credor, como ficou dito na Parte I , ponto 2.
Efectivamente, o montante pedido pela não entrega do barco, durante o período que vai de 20 de Abril de 2000, a 15 de Novembro seguinte, era de montante € 49.829.90, correspondendo, segundo a clausula penal, a uma "multa" diária, de 200.000$00 pela não entrega. (Transcrita clausula 4ª).
2. É o seguinte o quadro normativo essencial ocorrente á situação.
«É nula a clausula pela qual as partes renunciem antecipadamente a qualquer direito indemnizatório, no caso de não cumprimento ou mora».
«Porém, podem fixar, por acordo, o montante da indemnização exigível: é o que se chama clausula penal».
«O credor não pode em caso algum, exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal».
«A clausula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente, sendo nula qualquer estipulação em contrário».
(Sucessivamente: artigos 809º, 810º-1, 811º-3 e 812º-1 do Código Civil).
3. Não cabe discutir, porque não interessa para aqui, a natureza ou as diferentes modalidades da clausula penal.
Trata-se no presente caso, de uma modalidade de limitação (e não de reforço) da responsabilidade civil através de convenção reguladora prévia, para o caso de incumprimento ou mora, com liquidação antecipada do dano. (3)
O principal objectivo da clausula penal é evitar dúvidas futuras e litígios quanto à determinação exacta da indemnização, pondo um limite à responsabilidade, às vezes de grandes proporções em relação às previsões dos contraentes. (4)
Quer dizer, por via de regra, que todo o alcance da cláusula penal consiste em fixar um quantitativo indemnizatório que substitui o que o juiz arbitraria, se aquela não existisse. Portanto, salvo convenção em contrário, é exigível sob os pressupostos da responsabilidade civil. Apenas com a diferença que não há que apurar se o credor sofreu prejuízos efectivos e qual o montante destes.
Precisamente, a estipulação de uma cláusula penal destina-se a dispensar tais averiguações e, por conseguinte, também a prova do nexo de causalidade entre o facto e quaisquer danos. A função predominante consiste em evitar despesas, atrasos e dificuldades de recurso ao tribunal, através da fixação antecipada da indemnização para o caso de incumprimento. (5)
4. O preço da obra foi de 6.000.000$00 (falando em escudos), tendo o autor reduzido o montante da clausula penal para 10.990.000$00. (Ponto 2, Parte I).
A sentença considerou (fls.82), ainda assim, manifestamente excessivo o montante pedido, tendo tal montante sido fixado com base nos alegados prejuízos da autora, sendo que, na tese da sentença, não se fez prova de qualquer prejuízo efectivo por ela sofrido.
E com base nesta argumentação reduziu para 2.000.000$00 o valor da clausula penal.
Como diz - e bem - o acórdão recorrido, fls. 190, não há que apurar se o autor teve prejuízos - lucros cessantes ou danos emergentes - já que o estabelecimento da clausula penal se destinava exactamente a evitar essas averiguações. Do que se trata com o estabelecimento da cláusula penal é de libertar o credor do ónus da prova da existência de danos e do seu montante.
Essa averiguação podia interessar à ré, no sentido de se poder avaliar a medida possível de redução equitativa da "pena indemnizatória". (6)
A verdade é que, em bom rigor, como se explicou também na decisão recorrida (fls.189), a ré não fez prova, como lhe cabia, de que a autora não teve prejuízos efectivos, como consequência do retardamento da entrega do barco, durante cerca de sete meses, falta a ela, ré, imputável.
Enfim, verdadeiramente, não pediu nem justificou a redução equitativa.
5. É certo ainda que, num sistema de direito dos contratos eticamente fundado, como valor fundamental, manifestado, entre o mais, pela boa-fé; pela lisura de comportamento e lealdade das partes; pelo equilíbrio das prestações contratuais, reclamado pela justiça comutativa dos contratos; é certo - dizíamos - que poderá impressionar desfavoravelmente, que se tenha começado por uma multa diária de 200.000$00, para um contrato de valor de 6.000.000$00, se reconheça depois, o interesse em reduzir, o valor da clausula para 11.000.000$00, e mesmo assim mais do que o dobro do preço realmente entregue!
(Com a compensação de 1.000.000$00, o valor entregue foi 5.000.000$00).
5. A ponderação antecedente dá ensejo para aprofundar um pouco mais as circunstâncias do caso na tentativa de se chegar à justiça concreta que requer, segundo um juízo equitativo.
Com se verificou pelo transcrito n.º1, do artigo 812º, o juiz pode proceder, sendo-lhe pedido, (7) a uma redução equitativa da pena convencional « quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente».
Abandonou-se o antigo princípio da imutabilidade da clausula penal, pelas injustiças no desequilíbrio das prestações a que poderia dar lugar, quando se levava ao limite o princípio da autonomia e da liberdade contratual em cláusulas negociadas individualmente. (8)
Sucede que a lei não fornece nenhuma indicação sobre as precisas circunstâncias em que o montante da cláusula penal deve ser considerado manifestamente excessivo, a exemplo do que faz no artigo 494º.
Mas trata-se de factores de ponderação, reportados “ás circunstâncias do caso” que não podem deixar de ter em conta a orientação que decorre desta norma e que o tribunal deve utilizar como critério referenciador.
Em geral, haverá que ter em conta, por exemplo: os danos previsíveis ao tempo da conclusão do contrato e o efectivo prejuízo sofrido pelo credor; os legítimos interesses das partes, inclusive os não patrimoniais; a natureza do contrato e as circunstâncias em que foi realizado, nomeadamente, a situação económica e social das partes à data da sua celebração, ou do facto de se tratar de contrato de adesão; o motivo do incumprimento a boa ou má fé do devedor. (9)
No caso em exame não há aparentemente má fé contratual no incumprimento. Nem isso foi posto em causa.
Depois de pronto, o barco esteve aparcado.
Nunca chegou a ser utilizado.
O contrato tinha um valor de 6.000.000$00 (onde já se incluem 1.000.000$00 em valor de material entregue pela autora à ré).
Parece-nos desequilibrado, excessivamente desequilibrado, neste quadro integrado das circunstâncias, fazer corresponder a clausula penal, já reduzida pela autora, quase ao valor do dobro desta quantia.
O contrato acabou por ser cumprido.
Se bem pensarmos, na tese da Relação, a autora acabará por ficar com a obra e com o dinheiro que lhe correspondia ao preço da obra, mas em dobro. (Ponto 5, Parte I).
As duas coisas juntas parece demais!
6. Tudo vale por dizer que, reconhecendo embora a fragilidade do exercício, parece mais ajustado atribuir-se aos autores a quantia de 3.000.000$00 correspondente a metade do valor do contrato, soma que se aproxima mais do desejável equilíbrio contratual, reclamado pelo sentido da equidade que o atravessa.
Equidade que exige ainda alguma eficácia da medida, ora a benefício dos autores, para o que se estabelecem juros moratórios (à taxa vigente dos juros de mora para dividas comerciais), caso a quantia fixada, não lhes seja paga, dentro de trinta dias a contar do trânsito da presente decisão.
V - Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em dar parcial provimento á revista, fixando o valor da clausula penal em 3.000.000$00 (convertidos em euros), com juros de mora, á taxa legal, vigente para os juros moratórios das dividas comerciais, caso a entrega desta quantia aos autores, não seja feita dentro de trinta dias, a contar do trânsito desta decisão.
Custas a meias.

Lisboa, 24 de Junho de 2004
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) Tem sido considerada a impossibilidade de redução oficiosa pelo tribunal - Professor Almeida Costa Direito das Obrigações, 9ª edição, páginas 744.
(2) Todavia, recentemente surgiu uma tese contrária, num trabalho publicado no volume sobre Estudos em comemoração do 10º Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho (Almedina 2004), páginas 729 e seguintes, em especial página 761 - parte final, com vastíssima indicação de fontes em roda - pé --» notas 80/85, concluindo pela admissibilidade da redução oficiosa da clausula penal.
(3) Professor Pinto Monteiro Clausula Penal e Indemnização, página 5, e, em especial, 26 e seguintes, sobre a função indemnizatória da clausula penal, também concebida como modalidade de limitação de responsabilidade civil (página 235).
(4) (Pires de Lima e Antunes Varela, notas ao artigo 810º).
(5) Professo Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, páginas 742.
(6) Embora no sentido de que, tratando-se de uma clausula indemnizatória, como contemplada no artigo 810º-1, do Código civil, a pena não será exigível, se o devedor provar a inexistência de qualquer dano - Professor Pinto Monteiro, obra citada páginas 583/584.
(7) Conferir, não obstante a afirmação do texto, a segunda parte da nota n.º 1.
(8) Não assim nas clausulas contratuais gerais. (DL n.º 220/95, de 31/8).
(9) São factores de ponderação a título exemplificativo, da medida em que a lei permite a fiscalização judiciária da clausula penal no sentido de a atenuar, recolhidos de uma Resolução do Conselho da Europa 78 (3), sobre as cláusulas penais em direito civil, segundo a indicação feita pelo Professor Almeida Costa, a páginas 745, da sua mais recente edição "Direito das Obrigações". (9ª edição).