SIMULAÇÃO
SOCIEDADE POR QUOTAS
FARMÁCIA
BEM COMUM
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
QUOTA SOCIAL
VALOR
Sumário

I - A simulação pressupõe um acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganar terceiros.
II - A sanção que está ligada à entrada de alguém, não farmacêutico, para uma sociedade por quotas que já seja detentora de um alvará de exploração de uma farmácia é a caducidade do respectivo alvará.
III - Tendo o réu constituído com uma filha, ambos farmacêuticos, uma sociedade por quotas para exploração de uma farmácia, na constância do seu casamento com a autora, com quem era casado no regime da comunhão geral de bens, a respectiva quota social do réu é bem comum do casal.
IV - Nas relações com a sociedade, só é verdadeiramente sócio o cônjuge que levou a participação ao casal, não passando o outro, nesse aspecto da vida da participação social, de uma espécie de associado à quota.
V- Tendo havido dissolução do casamento por divórcio, o património comum do casal, onde a quota social se integra, existente à data da propositura da acção de divórcio, só termina com a respectiva partilha.
VI - O valor daquela quota social há-de ser o seu valor actual, reportado à data da partilha.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 23-11-00, A instaurou a presente acção ordinária contra B, C e a sociedade D, pedindo se declare:
1 - Que a quota correspondente a 95% do capital na sociedade D, é propriedade comum da autora e do primeiro réu, ou que integra o património comum do dissolvido casal de ambos;
2 - Que é ilegal, forjada, falsa, simulada e, como tal, anulável, nula e de nenhum efeito, a acta da assembleia geral da 3ª ré, realizada em 15-5-98, na parte em que admitiu a 2ª ré como respectiva sócia e se refere que ela subscreveu e realizou uma quota no valor de 19.500.000$00, entregando o dinheiro ao contabilista e fazendo-o entrar na caixa social;
3 - Que é anulável, nula e de nenhum efeito, por ilegal, falsa, simulada, forjada e fraudulenta a alteração do art. 3º do contrato de sociedade da 3ª ré , titulada pela escritura de 7-7-98, do 2ª Cartório Notarial de Santo Tirso;
4 - Que são anuláveis, ineficazes, nulos e de nenhum efeito todos os registos que hajam sido efectuados na Conservatória do Registo Comercial, com base naquelas acta e escritura falsas, nomeadamente a inscrição E 5, correspondente à apresentação nº 18, de 12-11-99, e ao averbamento do referido aumento do capital social e alteração do contrato de sociedade, aí matriculado sob o nº 874/800 228;
5 - e, em consequência, se condenem todos os réus a abster-se de vender, alienar ou onerar por qualquer forma a quota correspondente a 95% do capital social na dita sociedade D, e o estabelecimento de farmácia (parte integrante do património daquela quota e sociedade), o respectivo alvará, licenças, equipamento, mercadoria e o direito ao respectivo arrendamento e trespasse.

Os réus contestaram, invocando, além do mais, a ilegitimidade da autora e dos 1ºs e 2ºs réus e ainda a caducidade da acção.
Em reconvenção, pediram se declare:
1 - Que a autora não é sócia da ré sociedade;
2 - Que a autora, como ex-cônjuge do 1º réu, apenas tem direito a receber deste metade do valor patrimonial da quota de que este era titular na 3ª ré, valor esse reportado à data da propositura da acção de divórcio.

Houve réplica.

No despacho saneador, as partes foram consideradas legítimas e a excepção da caducidade foi julgada improcedente.

Tendo o réu B falecido na pendência da causa, foram habilitados, como seus únicos herdeiros, a segunda mulher, E, e as filhas do 1º casamento, C e F

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que decidiu:

A - Julgar a acção parcialmente procedente e, consequentemente:

1 - declarou que a quota de 95% do capital na sociedade D, é propriedade comum da autora e do réu B ou integra o património comum do seu dissolvido casal;
2 - declarou nula e de nenhum efeito a acta da assembleia geral da 3º ré , realizada em 15-5-98, que admitiu a 2ª ré, C, como nova sócia, na parte em que refere que ela subscreveu e realizou uma quota no valor de 19.500.000$00, entregando o dinheiro e fazendo-o entrar na caixa da sociedade;
3 - declarou nula e de nenhum efeito a alteração do art. 3º do contrato de sociedade da 3º ré, titulada pela escritura de 7-7-98, do 2º Cartório Notarial de Santo Tirso;
4 - declarou ineficazes, nulos e de nenhum efeito, todos os registos que hajam sido efectuados na Conservatória do registo Comercial de Santo Tirso, com base naquela acta e escritura, mormente a respectiva inscrição E5, correspondente à apresentação nº 18, de 12-9-99, e ao averbamento do referido aumento de capital social e alteração do contrato de sociedade, aí matriculado sob o nº 874/800 228;

B - Julgar improcedente o pedido reconvencional, dele absolvendo a autora.

Inconformada, apelou a ré habilitada E e a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 13-1-2004, na procedência da apelação, decidiu:
1 - Declarar que a quota de 95% do capital na sociedade D, é titularidade comum da autora e do réu B ou que integra o património comum do seu dissolvido casal;
2 - Absolver os réus dos restantes pedidos accionais.
3 - Julgar totalmente procedente o pedido reconvencional, declarando:
- que a autora não é sócia da 3ª ré;
- que mesma autora, como ex-cônjuge do réu B, apenas tem direito a receber deste metade do valor patrimonial da quota de que este era titular na 3º ré sociedade, valor este reportado à data da propositura da acção de divórcio.

Agora foi a autora que recorreu de revista, onde resumidamente conclui.
1 - Não se vislumbra que a parte final das respostas aos quesitos 1º e 2º contenha matéria de direito ou conclusiva.
2 - Por isso, a Relação não podia considerar "não escrita" essa parte das respostas.
3 - Encontram-se preenchidos todos os elementos integradores da invocada simulação.
4 - Não sendo a ré C bacharel ou licenciada em farmácia, a deliberação da assembleia geral de 15-5-98, em admiti-la como sócia, e a alteração do art. 3º do pacto social, concretizada pela escritura de 7-7-98, em atribuir-lhe tal qualidade, sempre constituiriam actos ou negócio jurídicos nulos, ilegais e ofensivos dos bons costumes - arts 280 e 285 do C.C. e Base II, da Lei 2125, de 20 de Março de 1965.
5 - Encontrando-se a referida quota de 95% por partilhar e fazendo a mesma parte integrante do património comum da recorrente e do réu B, à data da propositura da acção de divórcio, é obvio que tal quota continua a ser propriedade comum deste casal, enquanto não for efectuada a respectiva partilha - arts 1403 e 1404 do C.C.
6 - Essa quota pertence actualmente à recorrente, na proporção de metade, e a outra parte às três herdeiras deixadas pelo falecido réu B, ou seja, á 2ª mulher e às duas filhas do primeiro casamento.
7 - Tal quota encontra-se relacionada no inventário para partilha dos bens desse dissolvido casal e nada impede que venha ser adjudicada á recorrente, por avaliação, na conferência de interessados, se a herdeira farmacêutica a recusar, por acordo ou pelo preço da avaliação - Base III, nºs 1 e 2 , Base IV e V, da Lei 2125.
8 - Ao contrário do entendimento expresso no Acórdão recorrido, o valor da meação da recorrente nessa quota deve ser reportado à data da partilha e não com referência à data da propositura da acção de divórcio.
9 - A ser confirmado o Acórdão recorrido, estaria aberto o caminho para uma partilha injusta, com grave prejuízo da recorrente e, além disso, consubstanciaria ainda uma inaceitável violação da lei e dos bons costumes, enfermando de inconstitucionalidade, por violação do art. 280 do C.C. e dos arts 13, 20, nº4 e 62, nº1, da C.R.P.
10 - O Acórdão recorrido deve ser revogado, julgando-se a acção procedente e a reconvenção improcedente.

A recorrida G contra-alegou em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

Remete-se para todos os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido, ao abrigo dos art. 713, nº6 e 726 do C.P.C.

Dentre eles, destacam-se os seguintes, com interesse imediato para a decisão:

1 - A autora e o réu B contraíram casamento em 20-9-52, no regime da comunhão geral de bens.

2 - Tal casamento dissolveu-se por divórcio, por sentença do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Santo Tirso, proferida em 7-5-85, transitada em julgado em 17-5-85.

3 - Ainda na vigência do casamento, através de escritura de 2-1-80, outorgada na Secretaria Notarial de Santo Tirso, cuja fotocópia constitui documento de fls 60 e segs, o réu B, farmacêutico, e a filha F, farmacêutica, constituíram uma sociedade por quotas, adoptando a firma D, tendo por objecto social o exercício da actividade de farmácia e perfumaria e cujo capital social, de 500.000$00, declararam estar integralmente realizado e representado por duas quotas, uma no valor de 475.000$00 do sócio B e outra de 25.000$00 da sócia F.

4 - Por escritura de 3-2-94, cuja fotocópia constitui documento de fls 66 e segs, o réu B declarou dar de trespasse à sociedade D, o estabelecimento de farmácia sito no rés do chão do seu prédio urbano localizado na Rua José Luís de Andrade , nº ...., inscrito na matriz sob o art. 2174, com todos os elementos que o integram, incluindo móveis, utensílios, mercadorias, alvarás, licenças e direito ao arrendamento, pelo preço de 1.000.000$00.

5 - Desde o referido divórcio que o réu B se vem mantendo na posse a administração dos bens comuns do dissolvido casal, que proporcionam rendimentos.

6 - Está pendente o processo de inventário nº 2506-B/83, no 2º Juízo de Santo Tirso, destinado à separação de meações do dissolvido casal da autora, tendo ali sido apresentada, em 2-12-97, pelo cabeça de casal (aqui réu B), a relação de bens a partilhar, entre os quais figura uma quota na sociedade D, no valor de 475.000$00.

7 - No livro de actas da sociedade D, figura a acta cuja fotocópia constitui documento de fls 203, donde consta que em 15-5-98 se realizou uma assembleia geral extraordinária daquela sociedade, em que se refere que o réu B propôs que a ré C, sua filha (que se diz estar presente), fosse admitida como nova sócia da sociedade D, entrando para a sociedade com a subscrição imediata, em dinheiro, com uma quota no valor de 19.500.000$00, tendo esta acedido e manifestado a sua vontade em subscrever e realizar de imediato tal quota, tendo entregue o respectivo montante ao técnico de contas que o fez entrar no cofre social.

8 - Consta dessa mesma acta que tal proposta foi aprovada pelo réu B, representando 95% do capital social, com mil e novecentos votos.

9 - Por escritura de 7-7-98, cuja fotocópia constitui documento de fls 198, o réu B, na qualidade de representante da ré D, e a ré C declararam proceder ao aumento do capital daquela sociedade para 100.000.000$00:
- sendo o aumento de 99.500.000$00 a fazer por incorporação de reservas livres constantes do balanço do último exercício e de 19.500.000$00 em dinheiro realizado pela ré C, que declarou aceitar associar-se nas condições do contrato vigente;
- em consequência disso, foi alterado o art. 3 do contrato de sociedade passando as quotas a ser as seguintes: uma de 76.475.000$00 do sócio B; uma de 4.025.000$00 da sócia F; e outra de 19.500.000$00 da sócia C.

10 - Os réus B e C convocaram e realizaram no dia 26-9-00, uma assembleia geral em que se deliberou:
- considerar legal a deliberação tomada na assembleia de 15-5-98 de admitir como sócia a 2º ré; renovar, com eficácia retroactiva, tal deliberação; proceder à instauração de processo judicial contra a sócia F por ter testemunhado falsamente em tribunal que o réu B iria vender a sua quota a uma funcionária farmacêutica da sociedade; autorizar o 1º réu a estabelecer negociações com vista à venda do alvará de que é titular a sociedade e a trespassar o estabelecimento de farmácia.

11 - Por escritura de 19 de Dezembro de 2000, cuja fotocópia constitui documento de fls 358, a ré C cedeu a sua quota de 19.500.000$00 ao réu B, o que fez no seguimento do convite da Infarmed, para que regularizasse a situação, por não ser bacharel nem licenciada em farmácia, facto de que teve conhecimento por queixa apresentada por F.

12 - Por sentença de 10-4-00, transitada em ,julgado, proferida na acção de prestação de contas nº 187/96, do 3º Juízo Cível de Santo Tirso, foram julgadas prestadas as contas da administração dos bens do extinto casal da autora e réu B, relativamente aos anos de 1985 a 1998, contas essas que apresentaram um saldo de 132.423.000$00 a favor da autora.

13 - Por apenso a tal acção, foi instaurada execução de sentença, onde a autora requereu a penhora de bens móveis e imóveis do réu B, destinada a garantir o pagamento do saldo das referidas contas.

14 - A ré C não é bacharel, nem licenciada em farmácia.

15 - A ré C esteve matriculada na Faculdade de Farmácia do Porto, pelo menos, quatro anos, tendo feito várias cadeiras do referido curso.

16 - Nos anos de 2000 e 2001, a ré C não esteve matriculada na Faculdade de Farmácia.

17 - A quota do réu B na sociedade D, tem o valor de 450.000.000$00.

18 - A realização da assembleia de 15-5-98 (referida no anterior nº 7) e da escritura de aumento do capital social de 7-7-98 (mencionada no anterior nº9) foram planeadas e deliberadas pelo réu B em concertação com a ré C.

19 - O que foi feito ainda com o intuito de beneficiar a ré C com o património do dissolvido casal.

20 - A ré C não entregou qualquer importância à D, com o fim de subscrever a citada quota de 19.500.000$00

21 - Corre termos a acção nº 202/00, no 1º Juízo de Santo Tirso, proposta pela F contra os réus para obter a anulação da deliberação tomada na assembleia de 15-5-98 e da alteração do art. 3 do contrato de sociedade constante da escritura de 7-7-98.

22 - O réu B faleceu em 5 de Janeiro de 2002.

Vejamos agora como decidir as questões postas nas conclusões das alegações.

1.

O quesito 1ª tem a seguinte redacção:
"A realização da assembleia de 15-5-98, referida na alínea J) dos factos assentes, bem como a respectiva escritura de 7-7-98, mencionada na alínea I) da mesma peça, foram planeadas e deliberadas pelo réu B em concertação com a ré C, com vista a prejudicar a autora na meação dos bens comuns do casal, através da quota comum na sociedade da 3ª ré, cuja percentagem ( na proporção de metade) passaria de 47,5% para a de 38,237%"?.
Na primeira instância, tal quesito mereceu resposta de "provado".
A Relação, com fundamento no art. 646, nº4, do C.P.C., julgou parcialmente não escrita a seguinte matéria da resposta:
"... com vista a prejudicar a autora na meação dos bens comuns do casal, através da quota comum na sociedade da 3ª ré, cuja percentagem (na proporção de metade) passaria de 47,5% para a de 38,237%. "
Isto por entender que tal matéria era conclusiva.
Daí que tivesse aproveitado apenas a parte restante da mesma resposta ao quesito 1º, ficando dela provado somente o seguinte:
"Provado que a realização da assembleia de 15-5-98 , referida na alínea J) dos factos assentes, bem como a respectiva escritura de 7-7-98, mencionada na alínea I) da mesma peça, foram planeadas e deliberadas pelo réu B em concertação com a ré C ".
Mas sem razão.
Com efeito, a parte da aludida resposta que foi julgada não escrita nada tem de conclusivo, que justifique tal decisão, com fundamento no regime do art. 646, nº4, que a Relação teve por aplicável.
A determinação da intenção das partes constitui matéria de facto.
É dessa averiguação que se trata.
Por isso, toda a matéria do quesito 1º é de considerar provada, tal como foi decidido em 1ª instância.
Nada há a decidir quanto à resposta ao quesito 2º, visto tal resposta não ter sido alterada pela Relação, apesar disso vir referido pela recorrente, certamente por lapso.

2.

Pretende a autora que a acta da assembleia de 15-5-98 (rectius a deliberação social titulada pela acta) e a subsequente escritura de 7-7-98 sejam declaradas nulas, por simulação.
Pois bem.
Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado - art. 240, nº1, do C.C.
O negócio simulado é nulo - art. 240, nº2.
Consequentemente, por simulação entende-se o acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário, no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros.
A análise desta noção revela que, para haver simulação, devem ocorrer simultaneamente os seguintes elementos:
- divergência entre a vontade real e a declarada;
- acordo ou conluio entre as partes (pactum simulationis);
- intenção de enganar terceiros (animus decipiendi).
A simulação ocorre com relativa frequência na vida prática, sendo determinada por razões múltiplas: as partes fingem praticar negócios que efectivamente não querem, visando por esse meio alcançar os mais diversos fins.
A simulação pode ser fraudulenta ou inocente, absoluta ou relativa.
A simulação implica sempre a intenção de enganar terceiros.
Com esta intenção pode ou não cumular-se a de prejudicar outrem (animus nocendi).
Quando, além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta.
Se apenas existe animus decipiendi, a simulação é inocente.
Em certos casos, o acordo simulatório dirige-se à celebração de um negócio e as partes não querem na realidade celebrar esse negócio, nem qualquer outro.
É a simulação absoluta.
Noutros casos, o negócio simulado encobre outro acto que se diz dissimulado (por exemplo, declara-se vender, mas a vontade real das partes é doar).
É a simulação relativa.
Ora, in casu, quer na deliberação social constante da acta de 15-5-98, quer no acto titulado pela escritura de 7-7-98, não há divergência entre a vontade real e a vontade declarada.
A declaração constante da acta corresponde ao deliberado quanto à vontade real de entrada da ré C como sócia da sociedade D.
O mesmo se passa quanto à escritura de aumento do capital social, de 7-7-98, que alterou o art. 3º do contrato de sociedade.
Com efeito, há coincidência entre a vontade real e a declarada dos respectivos interessados, quanto à admissão da ré C como sócia daquela sociedade, com uma quota de 19.500.000$00.
O que se verifica é apenas que o valor nominal da quota da ré C não foi realizado com dinheiro seu, mas antes com dinheiro entregue pelo pai, o réu B.
Assim, como não se apurou que as partes intervenientes nos ajuizados actos finjam praticar quaisquer negócios que efectivamente não querem, é óbvio que não concorrem os pressupostos da invocada simulação dos mesmos actos, que não podem ser declarados nulos com tal fundamento. 3.
A recorrente sustenta ainda que, não sendo a ré C bacharel ou licenciada em farmácia, a deliberação da assembleia geral de 15-5-98 em admiti-la como sócia, por um lado, e a alteração do art. 3º do contrato de sociedade, constante da escritura de 7-7-98, ao atribuir-lhe tal qualidade, por outro, sempre constituiriam um acto e um negócio jurídico nulos, ilegais e ofensivos dos bons costumes, à luz do art. 280 e da Base II, da Lei 2125, de 20-3-65.
Mas também aqui lhe falece razão.
Não sofre dúvida que são nulos os negócios jurídicos contrários à lei ou ofensivos dos bons costumes, nos termos do art. 280, nºs 1 e 2 do C.C.
Quanto ao negócio contrário à lei, apenas é nulo aquele que contrarie normas imperativas, pois as supletivas podem ser sempre derrogadas ou modificadas pela vontade dos particulares.
É contrário à lei " o negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade (por ex: venda de herança de pessoa viva; certas cláusulas testamentárias consideradas restritivas da liberdade do chamado; assunção de obrigações contrárias a deveres impostos por lei: não educar o filho, não conviver com a mulher, etc)" (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed, pág. 258).
O negócio ofensivo dos bons costumes "é o que tem por objecto actos imorais, podendo estes ser imorais em si mesmos ou repugnar à consciência moral apenas pelo nexo que se cria entre eles e a prestação da outra parte (Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados).
Os actos ajuizados não se integram em qualquer destas categorias.
A Base II da citada Lei 2125, dispõe, na parte que aqui interessa:
1 - As farmácias só poderão funcionar mediante alvará passado pela Direcção-Geral de Saúde. O alvará é pessoal, só pode ser concedido a quem é permitido ser proprietário da farmácia e caduca em todos os casos de transmissão, salvo nas hipóteses previstas na lei.
2 - O alvará apenas poderá ser concedido a farmacêuticos ou a sociedades em nome colectivo ou por quotas, se todos os sócios forem farmacêuticos e enquanto o forem.
...
Todavia, não se prevê a sanção da nulidade, relativamente à entrada de alguém, não farmacêutico, para uma sociedade por quotas que já seja detentora de um alvará de exploração de uma farmácia.
A sanção que lhe está ligada é a caducidade do alvará - Lei 2125, de 20-3-65.
De resto, a situação já se encontra regularizada, pois a ré C, através da escritura de 19-12-00, já cedeu a sua quota ao réu B.
4.
Dispõe o art. 8, nº 2, do C.S.C.:
Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.
O regime que o citado preceito estabelece, como regra, " é o da contitularidade a meia haste ou a meio pau, por força do qual, nas relações com a sociedade, só é verdadeiramente sócio o cônjuge que levou a participação ao casal, não passando o outro, nesse aspecto da vida da participação social, de uma espécie de associado à quota" (Direito de família, Antunes Varela, 1º Vol. 5ª ed., pág. 441).
Daí que a autora não seja sócia da ré D,
Mas uma coisa é a qualidade de sócio, que pertencia exclusivamente ao falecido réu B, nas suas relações com a sociedade, outra é a quota que detinha na mesma sociedade (Ac. S.T.J. de 30-10-01, Col. Ac. S.T.J., IX, 3º, 98).
Nos termos do art. 1732 do C.C., se o regime de bens adoptado for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.
A autora e o falecido réu B foram casados no regime da comunhão geral de bens, casamento esse que se dissolveu por divórcio.
A sociedade D foi constituída na constância do casamento da autora com seu ex-marido e a quota social deste foi adquirida com património comum dessa dissolvida sociedade conjugal.
De tudo isto resulta que à situação em apreço são aplicáveis as disposições dos arts 1730, nº1, 1732 e 1734, do Cód. Civil, e não qualquer das excepções previstas nas diversas alíneas do nº1, do art. 1733, do mesmo diploma.
Consequentemente, a ajuizada quota social é bem comum do dissolvido casal.
A Relação decidiu que a autora, como ex-cônjuge do réu B, apenas tem direito a receber metade do valor patrimonial da aludida quota social, sendo esse valor reportado à data da propositura da acção de divórcio, por força do preceituado no art. 1789, nº1, do C.C.
Mas não é assim.
Os cônjuges participam por metade no activo e passivo da comunhão.
A determinação da participação de cada um dos cônjuges na comunhão tem especialmente em vista o momento da dissolução e partilha do património comum.
Com o trânsito em julgado da sentença de divórcio, no regime da comunhão geral, deixa de haver um património comum "como património colectivo".
Como escrevem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito de família, Vol. 1, 2ª ed. pág. 670), "a situação passa a ser idêntica à da herança indivisa.
Cada um dos cônjuges pode dispor da sua meação, como pode pedir a separação das meações, o que não podia fazer antes do divórcio.
Não quer isto dizer que com o trânsito da sentença de divórcio os bens comuns deixem de ser património comum e passem a pertencer aos ex-cônjuges em compropriedade, podendo, portanto, cada um deles dispor de metade de cada um desses bens em concreto, pois antes da partilha não se sabe com que bens virá a ser preenchida a meação da cada um dos ex-cônjuges".
A quota social encontra-se por partilhar e enquanto não for efectuada a partilha e se determinar o seu destino, no processo de inventário já pendente para separação de meações, a autora não deixa de ter interesse patrimonial nela e de poder reagir contra os actos que a coloquem em causa, ainda que os mesmos hajam sido praticados após a propositura da acção de divórcio - arts 1403 e 1404 do C.C.
O princípio da retroactividade à data da proposição da acção de divórcio, dos efeitos deste, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, consagrado no art. 1789, nº1, do C.C., visa defender cada um dos cônjuges contra as delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da acção, mas nada prevê relativamente à data em que é determinado o respectivo valor, para efeitos de partilha.
Por outro lado, também visa garantir que os bens adquiridos por um dos cônjuges, após a propositura da acção de divórcio, com produto exclusivamente seu, sejam consideradas como bens próprios do adquirente e não como património comum do casal.
Não obstante o divórcio ter os mesmos efeitos que a morte quanto à extinção do vínculo entre os cônjuges, todavia não tem a virtualidade de transformar em bem próprio um bem que até ali fora e continua a ser bem comum do casal.
De facto, a comunhão dos bens comuns do casal, existentes à data da propositura da acção de divórcio, só termina pela respectiva partilha, nos termos dos arts 1326, 1353, 1381 e 1404 do C.P.C. e 2069 e 2079 do C. C.
Por isso, o valor da quota há-de ser o seu valor actual, reportado à data da partilha (Ac. S.T.J. de 30-10-01, proferido no agravo nº 2727/01-6ª Secção; Ac. S.T.J. de 30-10-01, proferido no agravo nº 989/01, da 6ª Secção, publicado na Col. Ac. S.T.J., IX, 3º, 98).
Termos em que, concedendo parcialmente a revista, revogam o Acórdão recorrido, na parte em que julgou que a autora apenas tem direito a receber metade do valor patrimonial da quota de que o réu B era titular na sociedade D, sendo esse valor reportado à data da proposição da acção de divórcio e, consequentemente, decidem:

1 - Julgar a acção parcialmente procedente e, por isso, declarar que a quota correspondente a 95% do capital da sociedade D, é pertença comum da autora e do réu B ou que integra o património comum do casal de ambos, dissolvido por divórcio.
2 - Manter a improcedência dos restantes pedidos accionais, deles ficando absolvidos os réus.
3 - Julgar parcialmente procedente a reconvenção e declarar que a autora não é sócia da ré D;
4 - Julgar improcedente o restante pedido reconvencional, dele absolvendo a autora.
5- Condenar nas custas a autora e os réus, na proporção de metade para aquela e da restante metade para estes.

Lisboa, 29 de Junho de 2004
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce de Leão