CONTRATO-PROMESSA
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
CONSENTIMENTO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Sumário

I - Para que se possa considerar que foi celebrado um contrato de cessão da posição contratual relativamente a um contrato-promessa, é necessário que exista uma terceira vontade negocial que consinta na transmissão da posição contratual dos promitentes compradores.
II - O facto de não se poder considerar existente como cessão da posição contratual o contrato celebrado entre as partes sem o referido consentimento, não impede que se considere válido e eficaz o contrato relativamente às partes subscritoras.
III - Poderá assim uma das partes estar obrigada a indemnizar, cobrindo o chamado interesse no cumprimento ou o interesse contratual negativo, o dano de confiança, conforme o caso.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


1 - "A"; B intentaram acção com processo ordinário contra C e D, pedindo que se declare a execução específica do contrato e que produza os efeitos da declaração de venda de prédio rústico que identifica.

Alegaram que os réus celebraram com o falecido marido e pai dos autores um contrato promessa de compra e venda de um terreno, estipulando-se que ficava sujeito à execução específica, tendo os réus recusado outorgar a escritura prometida.

Contestando, a ré D excepcionou a ilegitimidade dos autores, invocou o caso julgado e impugnou a tese dos autores.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela procedência da acção.

Apelou a ré.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Inconformada, recorre a ré para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:

- Constitui causa de pedir na presente acção pelos autores de que estes eram promitentes compradores do prédio ajuizado, porquanto o E, falecido, celebrara com os réus um contrato promessa de compra e venda;

- O contrato de cessão de posição contratual outorgado posteriormente em 21 de Novembro de 1996, em que o E cedia os direitos adquiridos por este contrato ao cessionário F, era nulo ou ineficaz porque os réus não tinham autorizado a cessão da posição contratual no próprio contrato promessa;

- Assim sendo, nulo ou ineficaz este último contrato, o E permanecia na titularidade dos direitos outorgados nesse contrato promessa de compra e venda;

- Não foi proposta qualquer acção judicial (declarativa de simples apreciação) que decidisse, entretanto, que o contrato de cessão de posição contratual era nulo e de nenhum efeito;

- O facto de que os autores pretendiam retirar a consequência da nulidade ou ineficácia do contrato de promessa foi elevado a quesito 3° da base instrutória (onde se inquiria se os réus não outorgaram o contrato de cessão ou se recusaram a sua autorização quando da sua concretização tomaram conhecimento), foi dado como não provado;

- Não se provando a recusa da autorização da cessão da posição contratual, invocada pelos autores, este contrato permanece válido e eficaz, não podendo ser ignorado pelo Tribunal, como ocorreu, nem pelas partes;

- A sentença ajuizada para poder decidir o pedido como decidiu, teria previamente de declarar o contrato de cessão da posição contratual entre E e F, corno nulo e de nenhum efeito ou ineficaz, ou anulá-lo;

- Não o tendo feito, quando desta prévia decisão dependia o estatuto de promitente comprador do E, persiste a força e vinculação jurídica resultante do contrato de cessão da posição contratual;

- Sendo o actual promitente comprador o cessionário desse contrato, o F;

- Acresce que a falta de autorização dos réus, que se não provou, ao contrato de cessão de posição contratual, não gera a nulidade deste contrato, mas apenas a sua anulabilidade, anulabilidade esta que é sanável e que só pode ser invocada dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, o que não ocorreu;

- Assim, os réus nunca requereram a anulação do negócio da cessão da posição contratual em tempo oportuno;

- E ocorreu a confirmação, nos termos do artigo 288° n° 3 do C. Civil;

- Também por esta razão este último negócio permanece válido e a tese em contrário ofende o disposto nos citados artigos 287°, 288° n° 3 e 286° do C. Civil;

- Esta questão não é irrelevante como sustenta o Tribunal de 1ª instância e confirma o da Relação do Porto, já que do seu conhecimento há-de resultar quem é o titular do direito controvertido nestes autos e é nestes autos que tal questão terá de ser previamente decidida;

- A questão da legitimidade dos autores, dependia, como reconhece o Juiz que subscreveu o despacho saneador, da prova do alegado no artigo 3° da base instrutória (daí que tal questão só pudesse ser definitivamente resolvida em sentença e não no despacho saneador);

- A permanência dos efeitos jurídicos do contrato de cessão de posição contratual, que ainda hoje porque jamais foi declarado nulo ou anulado, determinam que os autores já não sejam os promitentes compradores do prédio ajuizado, mas antes o é, o cessionário F;

- Nenhuma utilidade derivada da procedência deste pedido resultará para os autores mas, tão só para o cessionário, pelo que o acórdão em apreço, também ofendeu o disposto no artigo 26° do CPC;

- Assim, nunca o pedido poderia proceder porque já não ocorre qualquer vínculo jurídico entre os autores e a ré;

- Ainda acresce em face da resposta ao quesito 3°, que era aos autores que incumbia a prova dos factos constitutivos do seu direito, sendo que a tese dos tribunais recorridos ofendem tal princípio consagrado no artigo 342° do C. Civil;

- Os tribunais recorridos, após a resposta ao quesito 1°, consideraram que a alteração ao conteúdo das cláusulas constantes do primitivo contrato promessa escrito, poderiam ser feitas verbalmente e objecto de prova testemunhal nesse sentido contrariando o expressamente declarado no n° 2 do artigo 410° do C. Civil;

- A prova destes quesitos foi efectuada através da reprodução das palavras do primitivo autor, o E, ouvidas por uma das testemunhas e pelo cessionário e seu filho, que, em face da permanência dos efeitos do contrato de cessão da posição contratual, permanece titular do direito à aquisição do prédio ajuizado;

- São, consequentemente, provas provenientes ou da boca do autor (de que os autores são herdeiros) ou do cessionário, o que ofende o disposto no artigo 617° do CPC;

- É que, nem sequer foi alegado e provado que o contrato de cessão de posição contratual foi rescindido e devolvido os valores da transacção em causa, pelo que o Tribunal está a confiar no depoimento de quem, aparentemente, se encontra ainda desembolsado do valor da transacção operada com o negócio da cessão da posição contratual;

- O acórdão da Relação ao aceitar como válida e idónea esta prova não se submete ao princípio legal acima expresso e constante do artigo 617° do CPC;

- O Tribunal da 1ª instância tinha de se pronunciar sobre a questão do abuso do direito e do enriquecimento sem causa proposta em sede de contestação pela ré nos artigos 58° a 63°;

- Não o tendo feito, cometeu a nulidade prevenida na alínea d) do n° 1 do artigo 668° do CPC e o Tribunal da Relação ao manter a desnecessidade de se pronunciar sobre estas duas questões de facto e de direito, permanece em tal violação;

- Se as partes têm acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não obter solução ou decisão sobre questões fundamentais, consiste em denegar justiça;

- Os preceitos citados, uma vez interpretados com o sentido que os Tribunais recorridos propõem são inconstitucionais, porque ofensivos dos princípios consignados nos artigos 20º a 28° da CRP.

Contra-alegando, os recorridos defendem a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

No dia 24 de Janeiro de 2000, faleceu sem testamento ou doação por morte, E, natural da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, residente que foi na Rua de Cedofeita, n° 347, 2° esq., no Porto;

No estado de casado com A, no regime de comunhão geral e primeiras núpcias de ambos;

Tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros, o cônjuge sobrevivo, a dita A, a primeira autora e os filhos de ambos, B e G;

A "G" veio a repudiar a herança, por escritura celebrada em 23 de Março de 2000, no Cartório Notarial da Maia, lavrada a fls.118 do livro 282;

Em 20 de Novembro de 1984, os réus celebraram com o identificado marido e pai dos autores um acordo nos termos do qual prometeram vender e este prometeu adquirir um terreno de natureza alodial, com a área de 1.949,44 m2, medindo do norte 78 m, do sul 74,3 m, do nascente 23,50 m e pelo poente 27,70 m, destinado a construção, sito no Lugar de Pampelido, na freguesia de Lavra, concelho de Matosinhos, que confronta do norte com caminho público, do sul com H, do nascente com I e do poente com J, que faz parte do prédio descrito na 1ª secção da 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto, no Livro B-1 70, a fls. 9 v°, com o n° 58.238 e é destacado do prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo 2537;

O prédio supra identificado corresponde actualmente ao que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n°1592/101195;

Em 21.11.96, o falecido marido e pai dos autores, E, acompanhado da autora, celebraram com F um acordo denominado «contrato de cessão de posição contratual", nos termos transcritos no documento de fls. 27-28;

O preço do terreno prometido vender, no montante de 4.600.000$00, foi integralmente pago pelo promitente comprador, E com o esclarecimento de que tal pagamento pode não ter implicado a entrega efectiva do dinheiro;

Os réus autorizaram logo o promitente comprador a entrar na posse do prédio, designadamente para efeitos de desenvolverem projectos de construção, a que este fez;

O prédio mencionado valia, em 02.07.2002, 70.000 contos.

III - Os autores pediram a execução específica de contrato promessa de compra e venda celebrado com os réus pelo falecido marido e pai dos autores.

O Tribunal da Relação, confirmando a decisão da 1ª instância, julgou a acção procedente.

Daí o recurso.

A recorrente suscita as seguintes questões:

Persistem os efeitos da cessão da posição contratual, porque esse contrato jamais foi declarado nulo ou anulado;

Os autores não são assim os promitentes compradores, mas antes o é o cessionário;

Era aos autores que incumbia a prova dos factos constitutivos do seu direito;

Não foram respeitados os princípios sobre a prova;

O Tribunal não se pronunciou sobre a questão do abuso de direito e sobre o enriquecimento sem causa, invocados pela ré recorrente.

Vejamos a problemática em causa.

Defende a recorrente a tese de que o contrato promessa celebrado deixou de produzir quaisquer efeitos entre autores e réus, por os promitentes compradores terem cedido a sua posição contratual a terceiro.

No acórdão recorrido considerou-se que o acordo celebrado entre cedente e cessionário é nulo e não produz nenhum efeito, por não se ter demonstrado que existiu o necessário consentimento dos réus. Sendo assim, os autores continuam a ter a titularidade dos direitos e obrigações inerentes ao contrato promessa.

Para que se possa considerar que foi celebrado o contrato de cessão da posição contratual, torna-se necessário que exista uma terceira vontade negocial que consentisse na transmissão da posição contratual dos promitentes compradores (ora recorridos).

É o que resulta do artigo 424° do C. Civil, que estipula no seu n° 1 que no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual desde que o outro contraente antes ou depois da celebração do contrato consinta na transmissão.

Trata-se de um contrato translativo pelo que implica a extinção subjectiva relativamente ao cedente, após transferência da relação contratual para o cessionário, tornando-se este o único titular da posição contratual. O cessionário subingressa na posição contratual do cedente, ou seja no conjunto de direitos, deveres e situações subjectivas que a integram. A relação contratual adquirida pelo cessionário permanece idêntica, apesar da modificação de sujeitos.

Para isso é, obviamente, necessário que o outro contraente dê o seu consentimento antes ou depois da cessão.

Ora, em concreto não se mostra que tenha havido esse consentimento, nem, em bom rigor, se pode dizer que tenha existido qualquer contrato. Vem unicamente provado que o falecido marido e pai dos autores, acompanhado da autora, subscreveram o documento junto a fls. 27 e 28, tendo denominado o acordo como "Cessão da Posição Contratual".

Mais do que nulidade, ineficácia ou anulabilidade, se deverá falar de inexistência de qualquer contrato de cessão da posição contratual.

O que se poderá discutir é a questão de saber se existiu um contrato válido e eficaz entre as partes subscritoras do referido documento, subsistindo efeitos obrigacionais entre elas, apesar de não existir qualquer cessão da posição contratual, sabido como é que o princípio da liberdade contratual (artigo 405° do CC) é um dos princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico civil.

A existir contrato válido poderá o cedente estar obrigado a cobrir os danos correspondentes ao interesse contratual positivo, o chamado interesse no cumprimento, ou poderá ter que indemnizar o interesse contratual negativo, o dano de confiança, que não teria sofrido se não tivesse confiado - Prof Mota Pinto - "Cessão da Posição Contratual", Coimbra 1982, pág. 457 e seguintes; Ac. STJ de 26.09.2002, CJ III pág. 60.

Essa discussão não respeita porém à ré, ora recorrente mas sim ao eventual cessionário.

Entre as partes aqui em disputa, o contrato-promessa celebrado mantém-se válido e eficaz, tendo existido tal como foi decidido, incumprimento definitivo imputável aos promitentes vendedores, justificando-se, por reunidos os pressupostos, o regime da execução específica (artigo 830° do C. Civil).

Questiona ainda a recorrente, tal como já havia feito no recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto considerada provada.

Recorde-se que ao Supremo, como Tribunal de revista que é, só cumpre, em princípio, decidir questões de direito e não julgar matéria de facto. O apuramento da factualidade cabe às instâncias, exercendo este Tribunal um controle fundamentalmente formal.

O Supremo pode pronunciar-se sobre os factos considerados provados se existir erro das instância na análise da prova por violação das normas que fixam o seu valor.

No caso em análise não se mostra que exista ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova e, sendo assim, há que aceitar os factos tal como foram considerados assentes (artigos 729° e 722° n°2 do C. Processo Civil).

É certo que a recorrente alega que existiu violação do artigo 617º do C. Processo Civil por ter sido ouvido como testemunha quem o podia ser como parte.

Alega, mas não prova, nem isso, aliás, resulta dos autos pelo que já está dito acerca da cessão da posição contratual.

Defende, por outro lado, a recorrente que se está perante uma situação de abuso de direito e de enriquecimento sem causa, existindo nulidade por o Tribunal se não ter pronunciado sobre essas questões.

Diga-se previamente que o acórdão debruçou-se expressamente sobre o abuso de direito e que a problemática do enriquecimento sem causa não foi suscitada nas alegações para a Relação. Não existe assim qualquer omissão de pronúncia (artigo 668° n° 1, alínea d) 1ª parte do C. Processo Civil).

Independentemente desse aspecto formal vejamos a tese da recorrente.

Alegou que os autores durante mais de 16 anos não exerceram qualquer direito sobre o terreno em causa, integrando essa conduta um venire contra factum proprium. Além disso, diz, existirá um enriquecimento sem causa, atento o valor do terreno.

Há venire contra factum proprium quando uma pessoa, em termos que especificadamente não a vinculam, manifesta a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique, ainda quando o acto em causa seja permitido por integrar o conteúdo de um direito subjectivo. Pode acontecer quando o titular exercente manifesta a intenção de não exercer um direito potestativo, mas exerce-o e também quando o titular exercente indicia não ir exercer um direito subjectivo comum, mas exerce-o - Prof Menezes Cordeiro - "Da Boa Fé no Direito Civil", 1984, II, pág. 742/770;

"Obrigações" 1, pág. 49 e segs., "Teoria Geral do Direito Civil" 1987, pág. 373.

Não existe no nosso direito uma proibição genérica de contradição, nem é vedado assumir comportamentos contraditórios com comportamentos anteriores.

Haverá, por isso, que analisar o caso concreto para concluir se ocorre o circunstancionalismo especial que justifica a aplicação do venire contra factum proprium.

A oportunidade da sua aplicação dependerá do caso concreto.

Ora, da factualidade trazida até este Tribunal não, é possível concluir que o exercício do direito por parte dos autores está em contradição com comportamento anterior que justifique a conclusão de que não o iriam fazer e por via disso tenham despertado na ora ré uma determinada confiança, juridicamente tutelável.

Desconhece-se a razão que levou os aqui autores a aguardarem tanto tempo para instaurar a competente acção. Não se deve, porém, esquecer que o promitente comprador faleceu em 2000 e a acção foi intentada em 2001, não o podendo os herdeiros, ora autores, fazer até ao óbito.

Independentemente do prazo, certo é que nenhum comportamento anterior poderia levar a ré a confiar em que os herdeiros do promitente comprador não viriam exercer o seu direito.

Nem se pode falar em enriquecimento sem causa por o terreno ter subido de valor. A causa é o contrato celebrado e o facto de em 1984 o valor ser de 4.900.000$00 e em 2002 ser de 70.000.000$00 deve-se à evolução económica, que, obviamente, não depende dos autores.

Carece em absoluto de razão a recorrente quando fala em inconstitucionalidade por denegação da justiça e invoca os artigos 20° e 208° da Constituição.

A sua defesa foi apreciada não só nas instâncias como neste Supremo e se algum argumento ficou por escalpelizar, não deve a ré esquecer que para apreciar juridicamente a sua tese, não é necessário, analisar todos os variados argumentos que chamou à colação.

O acórdão recorrido (bem como a decisão da 1ª instância) está devida e correctamente fundamentado, não merecendo assim qualquer censura.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 26 de Outubro de 2004

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante

Reis Figueira