EXTORSÃO
BURLA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Sumário

I  - O crime de extorsão, construído como crime contra o património e protegendo a liberdade de disposição patrimonial, estabelece, como elemento central, o constrangimento da vítima por meio de violência ou ameaça de um mal importante.
II - O crime de extorsão pressupõe uma relação directa entre o meio (a violência ou a ameaça que provoquem constrangimento) e o resultado (obtenção de uma vantagem patrimonial), sendo sempre necessário que entre o meio e o acto de disposição patrimonial exista uma relação de adequação.
III -      De igual modo, no crime de burla deve existir também uma atribuição patrimonial com o consequente empobrecimento do burlado, determinada por "erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou", distinguindo-se do crime de extorsão pela diferente natureza dos meios utilizados: violência ou ameaça na extorsão; erro ou engano sobre factos na burla.
IV -      Porque o erro ou engano sobre os factos, típico do crime de burla, pode resultar da construção pelo agente de uma ficção enganosa (mise en scène) em que também concorrem elementos tipicamente aproximados dos meios de chantagem, impõe-se a rigorosa delimitação dos factos em função dos elementos típicos envolvidos, para permitir a adequada qualificação e integração dos crimes que, em situação de fronteira, possam estar em causa.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. No processo comum colectivo nº 98/99, da Vara Mista de Braga, as arguidas AA, BB e CC, identificadas no processo, foram acusadas pelo M.° P.° da prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão, p. e p. pelo art. 223°, n.° l e 3 alínea a), por referência ao art. 204º, n.° 2, alínea a) do Código Penal; e a AA, ainda, em autoria material e concurso efectivo de infracções, de outro crime de extorsão, p. e p. pelo art.° 223°, n.° l e 3, alínea a) do Código Penal.
Na sequência do julgamento, as arguidas, além do mais, foram condenadas: a arguida BB e CC, pelo crime de extorsão do art. 223º, n.° l e n.° 3 do Código Penal, numa pena de 3 (três) anos e meio de prisão para cada uma; e a arguida AA numa pena de 5 (cinco) anos de prisão pela prática do mesmo crime; a arguida AA pela prática de um crime consumado de burla agravada p. e p. pela alínea a) do n.° 2 do art. 218º do Código Penal, atenta a alteração constante da acta de julgamento, numa pena de 3 (três) anos de prisão; em cúmulo jurídico das penas referidas, nos termos do art. 77º do Código Penal, foi a arguida AA condenada na pena única de prisão de 6 (seis) anos e meio de prisão.
Não se conformando com a decisão, as arguidas recorreram para o tribunal da Relação que, todavia, negou provimento aos recursos, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

2. As arguidas recorrem agora para o Supremo Tribunal, como os fundamentos constantes da motivação, que terminam com a formulação da seguintes conclusões:
1ª. O acórdão impugnado é recorrível, não obstante ter confirmado a decisão da primeira instância, que aplicou às arguidas uma pena de prisão inferior a oito anos, porquanto o crime de extorsão imputado às recorrentes é punível com pena de prisão superior a oito anos.
2ª. O entendimento de que tal decisão é irrecorrível, por não ter sido aplicada em concreto pena superior a oito anos de prisão e estarmos (se estivermos) perante um recurso interposto apenas pela defesa, implica uma interpretação inconstitucional das normas conjugas da alínea f), n° 1, do art° 400° e art° 409° CPP, por ofensa dos princípios da igualdade de armas e do direito ao recurso decorrentes do n° l do art° 32° CRP.
3ª. O acervo de facto provados não permite condenar as arguidas pelo crime de extorsão, porquanto os ofendidos não praticaram nenhum acto de disposição patrimonial e, por conseguinte, não está preenchido um dos elementos da triplicidade.
4ª. O prejuízo patrimonial sofrido pelo ofendido DD não resultou da entrega da quantia de 30.000 contos à recorrente AA, feita a título devolutivo e mediante o compromisso da sua restituição, condição sem a qual a entrega não teria sido feita.
5ª. Esse prejuízo e o correlativo enriquecimento da Recorrente AA resultam, antes, da apropriação abusiva por esta dessa quantia e da inversão do respectivo título de posse.
6ª. Ficaram, assim, preenchidos os elementos do tipo legal de crime do abuso de confiança p. e p. pelo art° 205° n° l, alínea b) do Código Penal, e não os do crime de extorsão p. e p. pela alínea a) ao n° 3 do art° 223° do Código Penal, preceitos que foram, portanto, desrespeitados pelo acórdão em mérito
7ª. A factualidade assente não permite condenar as recorrentes BB e CC por esse crime, pelo que dele devem ser absolvidas ou, quando menos, devem elas ser condenadas a título de cumplicidade.
8ª. A pena a aplicar em concreto à recorrente AA não deverá, nestas circunstâncias, ser superior a dezoito meses de prisão.
Pede, em consequência, a revogação do acórdão recorrido.
O magistrado do Ministério Público respondeu à motivação, desenvolvendo os fundamentos da sua concordância com a decisão recorrida.

3. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal, considera que nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações.
Nas alegações, o Exmº Procurador-Geral manifestou dúvidas sobre a configuração do modus operandi, e exprimiu algumas reticências sobre o nexo de causalidade entre a ameaça e o resultado.
Cumpre apreciar e decidir.
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
a) A arguida AA é agente da PSP, exercendo actualmente funções no Comando Distrital de Braga.
b) A arguida BB não tem actividade profissional estável e com carácter regular, dedicando-se fundamentalmente à venda ambulante de porta em porta de artigos têxteis.
c) A arguida CC, na altura dos factos, explorava um estabelecimento de restauração, sito na Rua António Marinho, nesta cidade, denominado "Retiro da Cidade".
d) As arguidas apesar de se terem conhecido entre si pelo menos desde 1998, rapidamente forjaram entre si uma amizade e cumplicidade, que quase pareciam amigas de infância.
e) Nessa medida, durante os períodos de descanso, saíam muitas vezes em conjunto, frequentando juntas cafés, bares, salões de beleza, cabeleireiros e festas.
f) Quando a arguida AA foi colocada no Comando da PSP desta cidade (por volta do ano de 1994/5), conheceu através da testemunha EE o ofendido DD, pessoa com a qual manteve até à ocorrência dos factos aqui em apreço, um relacionamento normal.
g) No ano de 1999, por altura do início do Verão, a arguida AA num dos contactos com o ofendido DD (que sabia que saía muitas vezes acompanhado dos ofendidos FF e GG), sugeriu-lhe que tinha umas "amigas" e que seria óptimo saírem todos juntos para se divertirem (referindo-se às co-arguidas CC e BB).
h) Rapidamente se combinou o primeiro encontro o qual veio a ocorrer em dia não suficientemente determinado do mês de Julho de 1999.
i) Os assistentes DD e FF e o ofendido GG, eram todos casados, com vida familiar estável, e homens de sólida condição sócio-económica, tendo, apesar disso, aceitado a perspectiva de uns encontros "amorosos" ocasionais com as arguidas.
j) Tal como havia combinado com o ofendido DD, em dia não suficientemente apurado do início do mês de Julho de 1999, a arguida AA, acompanhada das amigas e aqui co-arguidas BB e CC, à hora estipulada compareceu junto do Club de Caçadores de Braga (nas traseiras do estádio 1° de Maio, nesta cidade), onde já as aguardavam os ofendidos A. DD, FF e GG, e tal como haviam acordado dirigiram-se para Guimarães, nos carros do DD e do FF.
k) Jantaram num restaurante não identificado, situado perto daquela cidade, e depois de comidos e bebidos, dirigiram-se para a quinta do FF, sita em Souto, Taipas, Guimarães.
1) Aí chegados separaram-se uns dos outros e cada qual divertiu-se com a sua parceira da forma que muito bem entendeu e conseguiu, sendo certo que os pares assentavam na relação A. DD/BB, FF/CC e GG/AA.
m) Este foi o início de um relacionamento sexual envolvendo todos eles, respeitando os pares originalmente formados, e que apesar dos muitos encontros ocorridos, teve uma duração curta, porque precipitada pelos acontecimentos aqui em questão.
n) Posteriormente, em meados do mês de Julho de 1999, voltaram as arguidas e os ofendidos a encontrar-se, (os pares DD/BB GG/AA), jantando todos juntos em casa da arguida BB, tendo-se relacionado de novo segundo os pares já referidos.
o) Novamente se juntaram, agora só o DD/BB e o GG/AA, os quais na noite de 28 para 29 de Julho de 1999, jantaram e dormiram nas instalações da Estalagem Zende, em Esposende, onde ocuparam os quartos ...e ....
p) Alguns outros encontros ocorreram entretanto, alguns deles sem a presença do ofendido DD, mas nos quais estiveram o FF e o GG com as suas parceiras acima referidas.
q) De todo este relacionamento retiraram as arguidas a certeza de que estavam a lidar com gente de dinheiro, pois eram eles que pagavam sempre as contas de bons restaurantes que frequentavam, hotéis e tudo o mais, sem nunca regatearem despesas, passeando-se em bons automóveis e nunca lhes faltando dinheiro na carteira.
r) Era um "namoro" de onde todas elas projectaram tirar proveito, para além dos "favores" de índole sexual e gastronómica.
s) Assim, se tão depressa o pensaram mais lestamente decidiram planear uma forma segundo a qual lhes sacariam uma avultada soma em dinheiro.
t) Partindo do relacionamento FF/CC, forjaram uma hipotética gravidez desta, a qual para além do mais, se fez passar por muito doente, e com fortes probabilidades de vir a falecer, tanto se tivesse a criança como se recorresse à prática da interrupção da gravidez.
u) Para que tudo parecesse real, fabricaram um teste positivo de gravidez em nome da CC para ser exibido aos ofendidos.
v) No dia 2 de Agosto de 1999, as arguidas através da AA contactam os ofendidos, noticiando a (falsa) gravidez da CC, e a falta de condições de saúde daquela pelo que poderia morrer se tivesse o filho, referindo que ela ao saber de tudo isto tinha dito "...posso morrer mas não morro sozinha...! Eu mato-o (ao FF) à mulher e filhos...".
w) Tudo isto visava criar um clima de inquietação e de culpa nos ofendidos, particularmente no FF, que proporcionasse uma intervenção posterior no sentido de se conseguir dinheiro, tendo então sido decidido promover um encontro entre todos num café situado nas redondezas do café "Tuxo", junto da Universidade, nesta cidade, para se tratar este assunto.
x) A arguida CC não esteve presente neste encontro, mas a arguida AA, que sempre se portou como líder, ligou-lhe informando-a que estavam todos reunidos e que dissesse o que precisava para que tudo ficasse resolvido.
y) Neste telefonema, depois de muitas peripécias, foi estabelecida uma quantia em dinheiro de Esc. 30.000.000$00, que teria de ser entregue para evitar que a CC fizesse uma asneira (eventualmente pôr a mulher ao corrente do seu relacionamento sexual com ela ou, em última análise, matá-los a todos, mulher e filhos).
z) Estava assim criado o almejado clima de pressão sobre os ofendidos, que receavam, em primeiro lugar, que as arguidas revelassem tudo às respectivas mulheres, e na pior das hipóteses, que a CC executasse a ameaça de morte.
aa) Temendo o pior, o FF logo ali referiu que só podia arranjar cerca de 5.000.000$00, tendo a arguida AA insistido que a CC só sossegaria com os 30.000 contos.
bb) Nesse momento o FF voltou-se para o DD e perguntou-lhe se ele não o conseguiria desenrascar, dizendo-lhe este que sim, na condição de o dinheiro ficar à guarda da arguida AA, pessoa que logo ali tentou conquistar a confiança do ofendido DD, retorquindo perante os presentes "...Ó DD confias ou não em mim...", ao que ele respondeu afirmativamente.
cc) Verificando a AA que a sua estratégia começava a dar fruto, e para maior ser a confiança nela depositada, logo ali disse ao DD que, logo que tudo acalmasse lhe devolvia o dinheiro.
dd) Marcaram novo encontro para o dia seguinte, 3 de Agosto de 1999, e nesse mesmo dia 3 de Agosto, a arguida AA telefonou ao DD informando-o de que estava a segurar consigo a CC, impedindo-a de sair de pistola em punho para a Póvoa de Lanhoso (onde residiam os ofendidos), tendo consigo a chave do carro daquela.
ee) Mais retorquiu a arguida AA que se deviam despachar a trazer os 30.000 contos, para ser efectuado o depósito como haviam acordado.
ff) Por volta das 14.30 h daquele dia 3 de Agosto de 1999, depois de se terem encontrado com a arguida BB no restaurante da CC, onde lhes foi entregue a caderneta da CGD pertencente à arguida AA, os ofendidos DD e FF deslocaram-se à agência central da CGD na Av. Central, nesta cidade, e o DD passou um cheque pessoal (cheque n.° 1013216670, sacado sobre o BPSM da Póvoa de Lanhoso, no montante de trinta milhões de escudos, cfr. fls. 31), o qual foi depositado na conta da arguida AA, sendo o recibo de tal depósito entregue para ser exibido à arguida CC.
gg) Mais tarde a arguida AA ligou ao DD descansando-o e referindo-lhe que não levantaria o dinheiro, entregando-lho de volta logo que fosse oportuno, isto é, logo que tudo se acalmasse.
hh) No dia 9 de Agosto de 1999, através de 6 cheques da arguida AA com os n°s. 555733504, 655733505, 955733508, 355733502, 855733507 e 755733506, sacados sobre a sua conta 171-151397-900 da CGD de Braga, todos no montante de 5.000 contos, foi levantada a importância ali depositada, a qual foi repartida e teve destino que não foi possível apurar com segurança.
ii) Nesse mesmo dia, a arguida AA deu conhecimento ao DD do levantamento do dinheiro, assegurando-lhe porém que o tinha feito para mostrar à CC que era verdadeiro o depósito, pois aquela não acreditava no talão que lhe fora exibido, e que tal quantia ficaria por si guardada, num cofre da PSP.
jj) Perante este facto novo e porque nada disto correspondia ao acordo feito, o DD desconfiado, pediu a devolução do dinheiro à arguida AA.
kk) Apesar das diligências e encontros encetados com as arguidas nos dias seguintes 10 e 11 de Agosto de 1999, nunca mais os ofendidos viram o dinheiro, ameaçando que se iriam queixar às autoridades se o mesmo não aparecesse.
11) Perante a reacção inesperada dos ofendidos, a arguida AA ameaçou de que se eles dessem conhecimento à polícia destes factos "...que estavam fodidos, pois conhecia gente da pior espécie que lhes faria a folha..".
mm) Contudo no dia 12 de Agosto de 1999, perante a atitude assumida pelas arguidas, essencialmente a AA, os ofendidos DD, FF e GG denunciaram estes factos à PSP.
nn) E na sequência de tudo, a partir daí começaram a ser sondados pelos conhecidos "...", "..." e "...", indivíduos com passado criminal de certa forma intimidatório, para que tudo se resolvesse a bem (isto é, os ofendidos calar-se-iam, e em troca receberiam o dinheiro de volta, pagando aos intervenientes alguma compensação monetária).
oo) No final do ano de 1999, a arguida AA que havia conhecido o ofendido HH na sua fábrica de mármores, sita no lugar da Gregária, S. Lázaro, nesta cidade, por causa de uma encomenda de uma mesa de mármore, foi cimentando com o mesmo uma crescente confiança e amizade, a qual culminou num relacionamento sexual entre ambos.
pp) Tais contactos ocorreram pelo menos duas vezes em datas que não foi possível determinar, no apartamento pertença da arguida BB, junto do cemitério municipal de Monte d'Arcos.
qq) Depois deste envolvimento, a arguida AA telefonou ao ofendido HH, comunicando-lhe que estava grávida dele, tendo-lhe este sugerido que interrompesse voluntariamente tal gravidez, pois ele tinha família estável e não pretendia assumir tal paternidade.
rr) A arguida, que só alegadamente se encontrava grávida, com o objectivo de preparar o caminho para lhe arrancar o dinheiro que almejava, foi-lhe dizendo que não podia abortar pois tinha sido operada a um cancro de pele e o médico disse-lhe ser um grande risco.
ss) Vendo que não convencia a arguida AA, marcou novo encontro com ela, junto ao restaurante "Augusta" na estrada para a Póvoa de Lanhoso, onde aquela compareceu acompanhada da arguida CC.
tt) Ao fim de algum tempo de diálogo e exigências da AA, o ofendido HH começou por oferecer 1.000 contos, acabando por aceitar dar àquela 10.000 contos, no intuito de ela se calar e com o objectivo de ela não lhe dar cabo da sua vida familiar.
uu) Assim, no dia 18 de Janeiro do ano 2000, através do cheque n.° 65536576, sacado sobre o BES de Braga, levantou das suas poupanças 10.000.000$00 em dinheiro, que levou consigo e entregou à arguida.
vv) Toda a acção decorreu enquanto as arguidas, actuando concertada e conjuntamente (no caso dos ofendidos DD, FF e GG) convenciam os ofendidos, através de ameaças sérias de revelação de factos atentatórios da estabilidade da vida familiar daqueles ou ainda ameaçando atentar contra a vida dos mesmos, a praticarem factos que significavam o seu avultado prejuízo patrimonial, com o consequente enriquecimento ilegítimo por parte das mesmas.
ww) Condições que a par da manifesta indiferença com que as arguidas lidavam com estes problemas, atemorizaram os ofendidos de tal forma que os determinaram a não se oporem à conduta daquelas.
xx) Agiram as arguidas sempre de vontade livre e conscientemente, bem sabendo serem ilícitas as suas condutas e, não obstante tal consciência, não se coibiram de as levar a cabo, alcançando os correspectivos resultados delituosos.
yy) Agiu a arguida AA, no caso do ofendido HH, de forma livre, deliberada e consciente, com o objectivo de obter ganhos patrimoniais ilegítimos à custa do ofendido aproveitando-se da relação de confiança e intimidade que com ele estabelecera, para convencer o ofendido que estava grávida e com perfeito conhecimento de que, agindo da forma descrita, como quis e fez, praticava actos ilícitos e punidos criminalmente.
zz) Com tal ardil a arguida obteve a entrega dos 10.000 contos referidos, sem sequer estar grávida, enriquecendo, desta forma, o seu património e empobrecendo o do ofendido no mesmo montante.
aaa) Pretenderam, com as descritas condutas, atemorizar os ofendidos constrangendo-os através de violência psíquica e ameaças contra a sua integridade física e dos familiares, a entregar-lhes valores, com que aumentavam ilicitamente o seu património, com o inevitável prejuízo pessoal dos ofendidos.
bbb) Devido à conduta das arguidas, o Assistente FF esteve durante vários meses sob o espectro da revelação de toda a situação à família, sofreu ameaças e violências psíquicas esteve várias noites sem dormir, daí resultando que emagreceu e sofreu perturbações sérias na sua actividade profissional.
ccc) O Assistente DD, devido à conduta das arguidas foi coagido a abrir mão da referida quantia tendo empobrecido o seu património nessa medida e sendo enriquecido o património das arguidas nesse montante, tendo sofrido ameaças e violências psíquicas.

E considerou não provado que:
1. Para que tudo parecesse real, as arguidas tenham recorrido a uma análise de gravidez em que foi utilizada urina de pessoa grávida para fabricaram um teste positivo de gravidez em nome da CC para ser exibido aos ofendidos.
2. Os ofendidos bem sabiam que a CC andava sempre com uma arma de fogo na carteira, e que a mesma várias vezes a tenha exibido àqueles.
3. Nas circunstâncias referidas em tt) dos factos provados, o ofendido HH tenha entrado em pânico com as ameaças da arguida.

4. As arguidas vêm condenadas pelo crime de extorsão. previsto e punido no artigo 223º, nºs. 1 e 3 [certamente, alínea a)] do Código Penal.
O crime de extorsão, que tem uma descrição típica extremamente complexa, é construído como crime contra o património, onde tem assento sistemático, sendo a disposição patrimonial e o consequente empobrecimento do extorquido elemento essencial da construção típica.
Protege a liberdade de disposição patrimonial, sendo, pois, seu objecto directo a obtenção pelo agente de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo da vítima da extorsão.
Construído como crime contra o património e protegendo a liberdade de disposição patrimonial (bem jurídico protegido), a complexidade da descrição típica estabelece, como elemento central, o constrangimento da vítima por meio de violência ou ameaça de um mal importante.
O crime pressupõe, assim, uma directa relação entre o meio (a violência ou a ameaça que provoquem constrangimento) e o resultado (obtenção de uma vantagem patrimonial), sendo sempre necessário que entre o meio e o acto de disposição patrimonial exista uma relação de adequação (cfr., v. g., "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, p. 344).
Há-de existir, pois, no processo típico em que os meios de execução estão taxativamente referidos na lei, um acto de disposição patrimonial directamente determinado pela violência ou pela ameaça (chantagem),de tal modo que se possa afirmar que, sem a acção típica, nos termos e no modo em que ocorreu, a vantagem não teria sido entregue e o ofendido não teria sofrido o correspondente empobrecimento.
O crime de extorsão, como crime contra o património, tem elementos comuns com vários outros tipos de crime conta o património, entre os quais o crime de burla, com descrição típica no artigo 217º do Código Penal. Impõe-se, por isso, a exacta delimitação diferencial logo ao nível da tipicidade perante situações de facto que podem revelar alguma afinidade.
O crime de burla, em que também deve existir uma atribuição patrimonial com o consequente empobrecimento do burlado, determinada por «erro ou engano sobre factos que [o agente] astuciosamente provocou», distingue-se do crime de extorsão pele diferente natureza dos meios utilizados (violência ou ameaça, na extorsão; erro ou engano sobre factos, na burla).
A doutrina (cfr. op. cit, p. 350) entende, porém, que entre o crime de extorsão e o crime de burla há uma «relação de exclusividade em função dos meios». A relação de «mútua exclusão» supõe que onde e quando existir violência ou ameaça objectivamente relevante em termos de imputação causal do resultado, não há erro ou engano, mas não poderá excluir que o erro ou engano sobre os factos, típico do crime de burla, seja constituído pela construção pelo agente de uma ficção enganosa ("mise en scène") em que também concorram elementos tipicamente aproximados dos meios de chantagem - a construção de uma situação tal que determine o engano relevante do ofendido, na qual são utilizados métodos e artifícios, incluindo a sugestão sobre a existência de algum facto ou situação que leve o burlado a efectuar a atribuição patrimonial.
A proximidade dos tipos e a essencialidade das diferenças impõe, pois, a rigorosa delimitação dos factos em função dos elementos típicos envolvidos, para permitir a adequada qualificação e integração dos crimes que, em situação de fronteira, possam estar em causa.

5. Nesta perspectiva, os factos provados contêm espaços de indeterminação, susceptíveis de impedir o rigor da qualificação nas várias espécies típicas, aparentadas, que podem ocorrer ou concorrer.
E, vistas as diversas consequências ao nível das penas, o rigor da qualificação impõe-se, devendo, no limite em que a indeterminação factual seja insuperável, produzir consequências pro reo.
A este respeito importa, desde logo, partir da projecção típica essencial do crime de extorsão por que as recorrentes vêm condenadas.
Disse-se que ao processo típico da complexa descrição do crime de extorsão é essencial a directa relação entre o meio (no caso, a chantagem) e a atribuição patrimonial pela vítima do crime.
No entanto, neste ponto decisivo, os factos provados não são concludentes; rectius, permitem concluir que não está demonstrada uma tal relação directa.
Com efeito, nos pontos bb) e cc) da matéria de facto relativos ao modo da atribuição patrimonial, refere-se que a arguida AA agiu para conquistar a confiança do ofendido DD, dizendo-lhe que «logo que tudo acalmasse lhe devolveria o dinheiro». Mas, sendo assim, não ficou provada a directa relação causal entre o meio (chantagem) e a entrega do dinheiro, não se sabendo se a entrega do cheque foi determinada pela construção da ameaça (sendo que a situação-problema se não referia directamente ao ofendido DD, mas antes ao FF), ou se apenas ocorreu em função da confiança suscitada pela arguida AA e pela promessa de devolução «logo que tudo acalmasse».
Não se provando tal directa relação, não pode ser afirmada a concorrência do elemento essencial à consumação do crime, restando, no domínio das hipóteses, a possibilidade de ser configurada a forma de tentativa.
Porém, em tal hipótese, ficaria fora da malha típica a entrega da quantia em causa à arguida AA, que poderá ter sido determinada pelo engano e falsa promessa desta, situação que, ainda no plano das hipóteses, poderá aproximar-se, considerada a actuação no seu conjunto, do crime de burla.
Faltam, pois, neste aspecto, elementos fundamentais para a qualificação, sendo a extorsão (consumada) afastada pelos factos provados nos referidos pontos bb) e cc).
Há, ainda, porém, outros espaços relevantes de indeterminação factual.
Respeitam ao modo, nível, características, intensidade e relevância da actuação das arguidas CC e BB.
Com efeito, na construção da decisão recorrida, a actuação das arguidas desenvolve-se sob a forma de co-autoria de um crime de extorsão. Porém, para além do referido no ponto s) da matéria de facto (referência ao plano, ainda no domínio da simples cogitatio), e dos factos descritos nos pontos t) e u) (dos quais se não extrai qualquer indicação sobre a actuação de cada uma), a intervenção das arguidas CC e BB, especialmente desta, não aparece minimamente referido, em termos de se poder afirmar qual a medida em que cada uma teve o domínio do facto, essencial à actuação em co-autoria.
Finalmente - e com relevo directo para a integração - a consideração do conteúdo da ameaça ("mal importante") e a potencialidade que teria para causar grave inquietação e perturbação no ofendido (e no homem médio), de modo a determiná-lo á atribuição patrimonial.
Se, no plano das considerações sobre a vida e as coisas e sobre a normalidade dos comportamentos, a ameaça referida teria, pela projecção das eventuais consequências, susceptibilidade para gerar grave inquietação e perturbação e ser, por isso, passível de integrar o nível de gravidade suposto pela noção ("mal importante") utilizadas na descrição do artigo 223º, nº 1 do Código Penal, esta conclusão pode sair enfraquecida pela consideração dos factos provados posteriores à entrega e relativos às diligências para recuperar a quantia entregue, com a apresentação de queixa e seus desenvolvimentos, que necessariamente implicaria o conhecimento da situação. Nesta ponderação, e com os factos existentes, ficaria enfraquecida tanto a essencialidade da ameaça, como a dimensão ("importante") da revelação dos factos em causa.
Os referidos espaços de indeterminação factual, com as dúvidas que provocam na integração, bem como a coordenação, no plano da construção dos elementos típicos, entre a qualificação do "mal" como "importante" e os factos provados nos pontos jj), kk) e mm), integram os vícios enunciados no artigo 410º nº 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.

6. Nestes termos, e de acordo com o disposto no artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal, determina-se, no que respeita aos factos de que são acusadas em co-autoria as arguidas AA, BB e CC, o reenvio parcial do processo para apreciação e esclarecimento dos pontos de facto necessários à determinação do nexo de causalidade entre a actuação da arguida AA e o depósito do cheque pelo ofendido DD (contradição entre a conclusão sobre a relevância da ameaça e os factos referidos nos pontos bb), cc), dd) e gg), e também, no limite permitido pela vinculação temática, sobre a concretização dos actos de comparticipação das arguidas BB e CC na conjugação com a actuação da arguida AA.

Sem taxa de justiça.
Defensor oficioso: 5 URs.

Lisboa, 27 de Outubro 2004
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Silva Flor
Soreto de Barros