JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
Sumário

A declaração dos serviços administrativos de uma unidade de cuidados médicos segundo a qual certa pessoa recorreu aos serviços de urgência da entidade declarante não basta para certificar doença que permita justificar a falta de comparecimento a acto processual para que foi convocada ou notificada.

Texto Integral

Recurso nº 15/06.5PAESP_Q.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,

I.
1. Na sessão de audiência de julgamento do processo n.º 15/06.5PAESP, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Espinho, que teve lugar no dia 2010/11/09 e em que o arguido B…, com os demais sinais dos autos, foi dado como faltoso (cfr. a respectiva acta, a fls. 33 e ss.), ocorreu a sequência de incidentes que, na parte que agora interessa, se passa a reproduzir:
«(…)
«Neste momento foi pedida a palavra pela Ilustre Mandatária do arguido B…, D.ª C… que no uso da mesma disse:
«O arguido B… a fls. 8360 foi notificado por prova de depósito para comparecer em audiência de discussão e julgamento no dia 02-11-2010 e como 2.ª data o dia 04-11-2010 pelas 09:30 horas.
«Por motivos de doença faltou no dia 02-11-2010, tendo já junto aos autos a declaração médica, porque o seu estado de saúde se agravou, ficou impossibilitado de comparecer na 2. data constante da notificação, pelo que se requer, agora, a junção da declaração médica aos autos para justificação dessa falta.
«Como supra referimos o mesmo apenas se encontra regularmente notificado para essas duas datas. Como o estado da sua saúde não sofreu alteração, isto é melhoras, o mesmo continua hoje impossibilitado de comparecer.
«Não obstante o facto de, com o devido respeito, ser nosso entendimento que o mesmo não está notificado para o dia de hoje, requer a V. Ex.a pelos motivos já supra expostos se digne dispensar a sua presença nesta sessão e nas seguintes, até o seu estado de saúde estabilizar, e aí o mesmo comparecerá a fim de prestar eventualmente as suas declarações."
«Dada a palavra ao Digno Procurador da Republica por este foi dito:
(…)
«Quanto ao arguido B…, atenta a junção da declaração médica nada tenho a opor à justificação das faltas às sessões de julgamento nos dias dia 02-11 e 04-11-2010. Quanto à sessão de hoje, devem os autos aguardar a junção do respectivo comprovativo de doença e quanto às faltas posteriores a esta sessão devem os autos aguardar que seja junto declaração médica que suporte o ora declarado pela Ilustre Mandatária".
«Após o que o Mm.º juiz proferiu o seguinte:
« DESPACHO
«(…)
«No que respeita à pretendida justificação de faltas pelo arguido B…, tendo em atenção o preceituado pelo n.º 2, parte final, do art.º 117.º do C.P.P., e tendo particularmente presente que o arguido em apreço nunca compareceu a qualquer das sessões de audiência e esta é já a terceira em que invoca razões de saúde, vai o mesmo convidado, na pessoa da sua Ilustre Defensora, para de imediato dizer o local onde pode ser encontrado.
«Pela Ilustre Mandatária em causa foi dito:
«"Como consta das declarações juntas aos autos, o arguido B… tem realizado os seus tratamentos e encontra-se no D… em Viana do Castelo."
«Após o que o Mm.º Juiz Presidente proferiu o seguinte:
« DESPACHO
«Oficie antes de mais à D…, solicitando que, de imediato, informe os autos se o arguido B… aí se encontra e, na afirmativa, se o mesmo por razões de saúde está impossibilitado de comparecer em Tribunal.
«Chegada a informação, deverá a mesma ser de imediato apresentada ao Colectivo.
«(…)
«Pelas 14:00 horas [reinício da audiência] (…)
«(…)
«Mostrando-se já junto aos autos a resposta ao fax enviado à D…, [1] foi dado vista do mesmo ao Digno Procurador da Republica e à Ilustre Mandatária do arguido B…
«Após, sendo-lhe dada a palavra, pelo Digno Procurador da Republica foi dito:
«"Face à informação agora prestada pela D… de Viana do Castelo e agora chegada via fax, uma vez que dele não resulta qualquer motivo justificativo da ausência hoje verificada, deverá a falta ser considerada injustificada e o arguido ser condenado em multa".
« *
«Seguidamente pela Ilustre Mandatária do arguido B… foi dito:
«"Quando a mandatária do arguido informou que o mesmo fazia tratamentos na D… de Viana do Castelo queria a mesma dizer, que foi lá que o arguido esteve nos dias 02/11 e 04/11/2010, foi para essas sessões que se tinha junto aos autos as declarações médicas para a justificação da falta nos termos do art.º 117.º, n.º 3 C.P.P..
«Quanto ao dia de hoje, como consta da parte inicial do nosso requerimento da manhã, entende o arguido não estar notificado para comparecer.
«Quando se alegou os motivos de saúde, foi com o objectivo de requerer a dispensa das próximas sessões até o estado do mesmo estabilizar, permitindo-lhe comparecer nesta audiência para prestar eventuais declarações.
«Reitera-se que se entende que o arguido não estava notificado para o dia de hoje, pelo que não estava obviamente a pensar justificar a falta".
«Após o que o Mm.º Juiz proferiu o seguinte:
« DESPACHO
«Quanto às faltas do arguido B… às sessões dos dias 02 e 04 do corrente mês, não pode deixar de considerar-se as mesmas como não justificadas.
«Sendo alegada doença, a falta há-de ser justificada por via de atestado médico que especifique a impossibilidade ou grave inconveniência de comparecimento e o tempo provável do impedimento.
«No caso, o arguido não apresentou qualquer atestado médico.
«É de admitir de todo o modo a existência de situações de perfil excepcional em que seja impossível obter atestado médico, caso em que pode admitir-se outro meio de prova - esse regime decorre dos n.ºs 3, 4 e 5 do art.º 117.º do C.P.P.; como prova da sua impossibilidade de comparecer, o arguido apresentou apenas declarações hospitalares, de resto assinadas por funcionário administrativo, das quais não resulta de forma alguma a aludida impossibilidade de comparecer.
«O que dessas declarações resulta é apenas que o arguido terá dado entrada naquele serviço de urgência nos dias em questão e que de lá terá saído às horas referenciadas, e eventualmente com a prévia feitura de exames no interior daquela unidade de saúde. A circunstância de o arguido se ter apresentado no aludido serviço de urgência não significa que estivesse efectivamente sob situação de urgência e, em qualquer caso, impossibilitado de comparecer.
«Face ao exposto, decidimos julgar injustificadas as faltas do arguido B… às sessões dos dias 02 e 04 passadas, pelo que, assim sendo, vai o mesmo condenado ao abrigo do preceituado pelo art.º 116.º, n.º 1 do C.P.P., na multa correspondente a 2 UC por cada uma das ausências.
«Notifique.
«Quanto à ausência do mesmo arguido para a data de hoje, importa dizer o seguinte: na sessão do passado dia 07/09/2010 ficou consignado que a audiência teria início a 26/10/2010 pelas 09:30 (Terça Feira) e que teria continuação no dia 28/10/2010 à mesma hora (Quinta Feira) ficando aí estipulado que a audiência teria em seguida continuação todas as Terças e Quintas Feiras à mesma hora enquanto fosse necessário (fls. 8131); esse despacho foi notificado ao arguido B… conforme resulta de fls. 8228, 8229, 8256 e 8316 a 8318.
«O que em seguida sucedeu foi apenas o cancelamento das duas primeiras sessões agendadas para os dias 26 e 28/10 nos termos do despacho de fls. 8319, de cujo sentido o arguido foi notificado conforme resulta de fls. 8360 e 8467.
«Resulta do exposto que o arguido B… tem conhecimento da calendarização estipulada para a presente audiência nos termos das notificações de que foi já objecto.
«Vale o exposto por dizer que não se mostra justificada a sua ausência para a presente sessão em razão da sua hipotética não notificação.
«Por outro lado, não se mostra apresentada qualquer justificação médica minimamente documentada que permita ponderar a sua eventual dispensa nesse contexto para a presente sessão, bem como para as subsequentes.
«Face ao exposto decidimos, também a propósito da sessão de hoje, condenar o arguido B… em multa de valor igual a 2UC com referência ao supra referido art.º 116.º, n.º 1 do C.P.P..
«(…)»
2. Inconformado com este despacho, que [o] considerou notificado para as sessões de audiência de discussão e julgamento do dia 9/11/2010 e seguintes e julgou injustificadas as faltas, dele recorreu o arguido B….

Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
«1ª – Recorre-se do Despacho proferido a fls..., em Acta de Audiência de Discussão e Julgamento do dia 09-11-2010. Na parte em que considerou o Recorrente notificado para comparecer pessoalmente na Audiência de Discussão e Julgamento do dia 9/11/10 e todas as seguintes, até ao terminus do Julgamento. E, ainda, se recorre do Despacho proferido na mesma Acta, na parte em que se consideram injustificadas as faltas de comparência do Recorrente à Audiência de Discussão e Julgamento ocorrida nos dias 2/11 e 4/11/2010.
«2ª – Com o mui devido respeito, cremos que o Recorrente apenas deve considerar-se notificado para a Audiência de Discussão e Julgamento ocorrida em 2/11/10 e com 2ª data em 4/11/2010, tal qual consta da notificação enviada a fls. 8360.
«Senão vejamos:
«3ª – A fls. 8360, datada de 19/10/2010, foi endereçada ao Recorrente notificação, por via postal simples com prova de depósito, que muito embora se encontre nos autos devolvida a fls..., e o Tribunal tenha conhecimento da não residência do Recorrente nesta habitação, se ter aceite como regular.
«4ª – De tal notificação consta expressamente a obrigatoriedade de comparência pessoal do Recorrente no dia 2/11/10, e no dia 4/11/10, esta como 2ª data (artº 312, n° 2, do C.P.P.), dando sem efeito as marcações anteriores, dia 26/10/10 (citº doc. fls. 8360).
«5ª – Ora, com o mui devido respeito, entende o Recorrente que deve obedecer a esta notificação, que cancela/ dá sem efeito, todas as datas anteriores.
«6ª - Estando o mesmo notificado, nos termos do art° 113, n° 1, al. c) e n° 3, do C.P.P., para comparecer na 1ª data (2/11/10) e 2a data (4/11/10).
«7ª – Não está o Recorrente notificado, nem informado, nem tem conhecimento, ao contrário do constante no Despacho recorrido, da Calendarização estipulada para a Audiência. Pois, como consta do Despacho recorrido, decidiu-se tal calendarização na Sessão de 07/09/2010, na qual o Recorrente não esteve presente, porquanto não estava notificado.
«8ª – Na verdade, o Recorrente apenas tem conhecimento e foi notificado para as Sessões de Audiência de Discussão e Julgamento dos dias 2/11 e 4/11/10, como não esteve presente nestas Sessões, por motivo de doença, também não pode considerar-se notificado para a Sessão do dia 9/11/10; 11/11/10; 16/11/10; 18/11/10; 23/11/10; 25/11/10 e todas as seguintes, até ao términus do Julgamento, ora desconhecido.
«9ª – A omissão da notificação para a Audiência de Discussão e Julgamento do dia 9/11/10 e seguintes, consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do art° 119, al. c), do C.P.P., por ausência do arguido na Sessão, por falta de notificação, tempestivamente arguida, pelo Tribunal recorrido indeferida e ora recorrida.
«10ª – É inconstitucional a interpretação do art° 113, n° 1, al. c) e n° 3, do C.P.P., se interpretado no sentido de na notificação a fls. 8360, não ser necessário constar expressamente a data de dia 9/11/10 e seguintes (assim como a hora e local para comparecimento), por violação dos preceitos constitucionais, mormente garantias de defesa do arguido (art° 32, da C.R.P.) e seu direito a estar presente.
«11ª – Deve, pois, tal nulidade ser declarada, anulando-se o Despacho recorrido, dando consequentemente, sem efeito todas as multas aplicadas, por faltas injustificadas à Sessão de dia 9/11/10 e seguintes, todas até à sanação do vício, tudo com as legais consequências.
«12ª - Acresce que, na primeira data designada, nos termos do art° 312, do C.P.P., faltavam quatro arguidos, o Recorrente, que informou da sua doença, e mais três que nada comunicaram.
«O M.P. não promoveu a realização da Audiência de Discussão e Julgamento, na ausência dos arguidos faltosos (cit° Acta de 2/11/10, a fls..).
«13ª - O Tribunal "a quo", nada justificou para a realização da Audiência de Discussão e Julgamento na primeira data agendada, assim como não diligenciou pela presença dos faltosos, em violação dos art°s 312 e 333, ambos do C.P.P.
«14ª - Ao não constar, expresso, na Acta do dia 2/11/2010 (a fls...), que o Tribunal considerou que a Audiência podia realizar-se sem a presença dos arguidos faltosos, por não considerar absolutamente indispensável a sua presença desde o início da Audiência (art° 333, do C.P.P.), cometeu-se, com o devido respeito, uma nulidade insanável, art° 119, n° 1, al. c), do C.P.P., que aqui tempestivamente se está a arguir. Qualquer outra interpretação deste preceito legal é inconstitucional, por violação da Constituição da República Portuguesa.
«15ª – Recorre-se, ainda, da parte em que se considerou injustificadas as faltas de comparência do Recorrente às Sessões do dia 2/11/10 e 4/11/10, não obstante a Promoção do M.P. e a junção dos respectivos comprovativos de doença.
«16ª - Porque no dia 2/11/10 o Recorrente tinha sido acometido de doença súbita, não pôde comparecer na Audiência de Discussão e Julgamento, tendo tempestivamente tal facto sido comunicado ao Tribunal. Que deferiu a Promoção do M.P. no sentido de aguardar pela junção, no prazo legal, do respectivo comprovativo (art° 117, n° 3, do C.P.P.).
«17ª – A fls..., o Recorrente requereu a junção destes comprovativos aos autos, referentes às faltas na Sessão dos dias 2/11 e 4/11. Os comprovativos são Declarações e Exames realizados na Urgência do "D…, em Viana do Castelo", requerendo a justificação das faltas.
«18ª – O M.P. promoveu a fls... (Acta de 9/11/2010), "(...) Atenta a junção da declaração médica, nada tenho a opor à justificação das faltas às sessões de julgamento nos dias 02/11 e 04-11-2010 (...)"., Promoção com a qual concordamos, e com o mui devido respeito, subscrevemos.
«19ª – No entanto, o Tribunal "a quo" considerou injustificadas as faltas, por não ter sido junto Atestado Médico.
«20ª – Na nossa modesta opinião, tal Despacho, e com o mui devido respeito, viola o art° 117, n° 5, do C.P.P., que admite a prova por qualquer meio.
«21ª – Na nossa modesta opinião, e de acordo também com a douta Promoção do M.P., os comprovativos juntos, são suficientes meios de prova da doença e da situação de urgência, devendo ser considerados válidos, e, como tal, se anulando o Despacho recorrido, considerando-se, a final, as faltas de comparência justificadas, com a consequente anulação das multas fixadas.
«22ª – A Decisão recorrida, para além de outras normas e princípios, violou os art°s 112; 113; 116; 117; 119, al. c); 120; 122; 312; 333, todos do C.P.P., e ainda, o art° 32, da C.R.P., o que aqui se invoca com o objectivo de dar cumprimento ao art° 72, da Lei do Tribunal Constitucional.»
Terminou a pedir a procedência do recurso.
4. Notificado do recurso, o Ministério Público (MP) apresentou resposta no sentido de lhe ser negado provimento.
5. Admitido o recurso, antes de ordenar a remessa do processo a este tribunal da relação, foi proferido pelo Ex.mo juiz prolator da decisão recorrida um amplo e claro despacho em que:
– Sustentou o decidido quanto à não justificação das faltas de 2 e 4 de Novembro de 2010 e consequentes condenações em multas;
– Reparou o despacho recorrido, na parte referente à não justificação das faltas de 9 de Novembro de 2011 e subsequentes, considerando que o recorrente não estava efectivamente notificado para essas sessões de audiência.
– Declarou a não existência das nulidades invocadas pelo recorrente – o que, acrescentamos nós, sempre seria despiciendo, vista a reparação referida e considerando que tais nulidades nunca foram arguidas perante o tribunal recorrido. (Só as nulidades da sentença podem ser directamente arguidas em via de recurso, por haver norma que especialmente o permite. Todas as demais têm de ser arguidas perante o tribunal que supostamente as tenha cometido).
5. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto deu parecer em que se pronunciou por que o recurso não merece provimento.
6. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o recorrente não respondeu.
7. Realizado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
II.
1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, definem o seu objecto – e tendo em vista o despacho de reparação acima aludido –, a única questão posta no recurso é a de saber se o tribunal deveria ter justificado a ausência do arguido às sessões da audiência de julgamento dos dias 2 e 4 de Novembro de 2010.
Vejamos.
Não está em causa a regular notificação do arguido recorrente para as sessões de audiência em causa.
O que se contesta é o tribunal não ter considerado justificação bastante das faltas do arguido uma comunicação – uma, por cada falta – de que faltava por doença e a prova dessa situação mediante apresentação de uma declaração dos serviços administrativos da “D…” em como, à hora da audiência tinha estado presente nos respectivos serviços de urgência, como paciente.
No fundo, a questão resume-se a determinar se a declaração dos serviços administrativos de uma entidade de cuidados médicos – hospital, centro de saúde ou congénere – de que certa pessoa recorreu aos serviços de urgência da entidade declarante, basta para certificar a doença da mesma pessoa, para efeitos de justificação da falta por ela dada à convocatória de presença no tribunal. Isto, claro, havendo sobreposição de data e, pelo menos, proximidade de horário[2], entre a presença na urgência e a ausência verificada no tribunal.
Sobre a questão importa lembrar as avisadas considerações tecidas no despacho de sustentação já referido. Disse-se aí:
«Quanto às sessões de 2 e 4 de Novembro, diz o arguido que faltou por doença, conforme documentos que juntou, os quais constituem do seu ponto de vista prova suficiente da veracidade da doença e da situação de urgência que o impediu de comparecer em Tribunal naquelas datas.
«Conclui portanto pugnando pela ideia de que as suas faltas, em tais datas, devem ser consideradas justificadas.
«Na resposta que apresentou (fls. 162 deste Apenso), defende o Sr. Procurador da República que as faltas às sessões de 2 e 4 de Novembro devem efectivamente ser julgadas injustificadas, dada a ausência de atestado médico e a possibilidade que o faltoso teria de o apresentar, sendo que a "declaração" hospitalar que neste contexto foi junta é insuficiente.
«Vejamos.
«Nos termos do art. 117º/4 do CPP, sendo alegada doença, compete ao faltoso apresentar atestado médico que especifique a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento.
«Dada a natureza do motivo que subjaz a urna falta por doença, erigiu pois o legislador o atestado médico como o meio pelo qual por regra há-de um tal motivo ser demonstrado; e note-se que não é de um atestado médico qualquer de que se trata — é antes de um atestado médico que, para além de mencionar uma situação de doença, certifique, com a autoridade própria de quem tem para tanto os correspondentes conhecimentos, a impossibilidade ou grave inconveniência no comparecimento e o tempo provável de duração do impedimento.
«Ora, o arguido não apresentou em concreto qualquer atestado médico corno justificação para as suas ausências nos dias 2 e 4 de Novembro, com o que em via de princípio não podem aquelas ser consideradas justificadas.
«É certo que não podemos ignorar — e o despacho recorrido também alude a este ponto — que poderá haver situações de impossibilidade ou grave inconveniência de comparecimento, por razões de doença, mas em que ao faltoso seja impossível obter atestado médico, caso em que o art. 117º/5 do CPP admite qualquer outro meio de prova.
«Todavia, para que possa prescindir-se do atestado médico, exige o legislador, sublinhe-se, que seja impossível obtê-lo.
«Ora, não se vislumbram em concreto quaisquer elementos de facto dos quais possamos inferir uma tal impossibilidade; de resto, o arguido nada alegou a esse propósito.
«E se é assim, como cremos, sabendo-se que a documentação apresentada pelo arguido não contém qualquer atestado médico, não pode ela ser valorada como meio de prova da doença e da correspondente impossibilidade ou grave inconveniência de comparecer.
«Em todo o caso, mesmo que pudesse valorar-se aquela documentação, ainda assim da mesma não resultaria de forma alguma que o arguido estivera doente e que por causa dessa doença lhe fora impossível ou gravemente inconveniente comparecer, como não resulta o tempo previsível de duração do impedimento.
«Conforme salientámos no despacho recorrido, o que dessa documentação transparece é apenas que o arguido no dia 2/11/2010 compareceu pelas 10h59 num Serviço de Urgência em Viana do Castelo, donde saiu, com alta, nesse mesmo dia, pelas 13h46, tendo feito exames (fls. 212 e 213 deste Apenso); e que compareceu no mesmo Serviço de Urgência no 4/11/2010, pelas 13:22, daí saindo, com alta, pelas 16:56, tendo também então feito exames (fls. 30 a 32 deste Apenso).
«Ora, de nenhuma passagem dessa documentação podem retirar-se as ideias de que o arguido (a) estava efectivamente doente, (b) que a doença, a existir, tornava impossível ou gravemente inconveniente o comparecimento em Tribunal, nem (c) a duração previsível do impedimento.
«Com efeito, do que se trata é apenas de duas declarações, assinadas por funcionário administrativo, que atestam a entrada e a saída do arguido de um dado serviço de urgência, acompanhadas de documentação que aparentemente permite supor que ao arguido foram efectuados exames na ocasião, mas aquelas declarações ou o resultado destes exames não permitem garantir sequer a existência de uma qualquer doença (cfr. a este propósito, além da jurisprudência citada pelo Digno Magistrado do Ministério Público a fls. 162, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pg. 304) — pensar de outro modo equivaleria então a que uma pessoa convocada para comparecer decidisse não o fazer, bastando, para que viesse a considerar-se justificada a ausência, que se deslocasse a um qualquer serviço público de urgência, com uma maleita que alegasse, dado que é sabido que as portas de tais serviços estão abertas, podendo sempre vir a ser certificadas por um funcionário administrativo as horas de entrada e de saída do visado, conseguindo este a justificação para a falta, conquanto a hora para o início da diligência se achasse de permeio.
«Acresce ainda que ambas as sessões da audiência estavam agendadas para as 9h30, sendo que o arguido, quanto ao dia 2/11/2010, entrou no Serviço de Urgência pelas 10h59, sendo que esse serviço se situa, note-se, em Viana do Castelo, o que evidencia que não era já seu propósito comparecer à audiência, que teria lugar na área de Espinho; e o mesmo dir-se-á, mutatis mutandis, quanto ao dia 4/11/2010, dado que neste, a entrada 110 mesmo Serviço de Urgência verificou-se pelas 13h22.
«Resta-nos pois concluir que não perspectivamos nenhuma razão para não manter o despacho proferido quanto às faltas às sessões dos dias 2 e 4 de Novembro.»
São razões poderosas, que subscrevemos e que resolvem a questão.
Na realidade, o ingresso num serviço médico de urgência, seguido de realização de exames médicos e alta, sem mais, não pode servir para atestar um estado de doença impeditivo de comparência a tribunal.
É facto público e notório que as urgências dos nossos serviços de saúde estão abertas a quem solicita os seus serviços e que nelas não se rejeitam pacientes. Quando muito os menos urgentes esperam mais tempo, segundo um processo de triagem que escala a urgência do atendimento segundo a maior ou menor gravidade do diagnóstico prévio.
Basta, portanto, apresentar queixas subjectivas, para se suscitar a realização de exames, até porque os serviços e quem neles trabalha não podem sujeitar-se a eventuais acusações de negligência médica.
Nos casos, v. g., de doentes com uma situação clínica que importe vigilância médica regular – casos de pacientes de doenças com evolução estabilizada ou de doentes crónicos – o recurso à urgência está praticamente na total discricionariedade do paciente, em cada momento. E se há pessoas parcimoniosas no uso dessa possibilidade, sabe-se que outras o não são.
Neste estado de coisas torna-se muito fácil a quem queira ocupar certo período de tempo, em detrimento de outro destino qualquer a dar-lhe, ir às urgências
O que torna o recurso às urgências médicas uma forma quase ideal de justificar incumprimentos de vária ordem.
O legislador não ignora a realidade que referimos.
Bastar-se a lei com uma mera certificação de certo indivíduo ter recorrido a um serviço de urgência médica, como forma de atestar que o mesmo se encontrava atingido por doença que o impedia de comparecer em tribunal, equivaleria a deixar a actividade judicial dependente da boa vontade dos honestos. Sabendo-se que, infelizmente, o mundo não é só composto de pessoas sérias e cumpridoras. E menos do que outros, o mundo dos processos judiciais de natureza criminal.
Assim, a exigência de uma declaração de um médico, que ateste a doença – e não só a doença, de forma genérica e abstracta, mas a doença ou manifestação dela que determine a impossibilidade ou o grave inconveniente em comparecer.
É um mínimo exigível para dotar de seriedade a alegação de doença como causa de impedimento do cumprimento de deveres.
Apenas no caso de ser impossível – realce-se, impossível – a obtenção de atestado médico será admissível qualquer outro meio de prova, que será, naturalmente, apreciado livremente pelo juiz. O que não constitui, é claro, o caso dos autos.
Termos em que, sem necessidade de mais fundamentação, o recurso deve improceder, na parte em que a decisão recorrida foi sustentada.
III.
Atento todo o exposto,
Acordamos em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido, na parte em que não foi reparado.

Condena-se o recorrente no pagamento de 3 UC de taxa de justiça.

Porto, 2011/05/04
Manuel Ricardo Pinto da Costa e Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
________________
[1]“fax” de resposta está a fls. 45 e o seu teor é o seguinte. «Na sequência do Vosso pedido de informação de hoje, via fax, informamos que o Sr. B…, no dia de hoje não passou nos nossos serviços».
[2] Proximidade tal que torne inviável a comparência atempada no tribunal.