ARRENDAMENTO URBANO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
EXCEPÇÕES
DESPEJO
ARRENDATÁRIO
FAMÍLIA
ECONOMIA COMUM
Sumário

I. Para a operância da excepção tipificada na al. c) do nº 2 do art. 64º do RAU 90 - obstativa da resolução do contrato de arrendamento -, não basta a mera permanência de parentes ou familiares no arrendado, antes se configurando como necessária a existência de elos de dependência económica entre eles, ou com a própria casa/habitação e ou/o arrendatário.
II. O conceito de "economia comum" pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar, moral, e social, uma convivência conjunta com especial "affectio" ou ligação entre as pessoas coenvolvidas, convivência essa que não impõe a permanência no sentido físico, antes admitindo eventuais ausências, sem intenção de deixar a habitação, com sujeição a uma economia doméstica comum com a quebra dos laços estabelecidos, verificando-se, assim, apenas uma única economia doméstica, contribuindo todos ou só alguns para os gastos comuns.
III. A "ratio legis" radica na protecção da estabilidade do agregado familiar com sede no arrendado (que não no interesse económico do senhorio).
IV - A instalação de um novo agregado familiar no arrendado não está já abrangido pela protecção excepcional contemplada na al. c) do nº 2 do art. 64º do Rau 90, já que, assim se não entendesse, representaria como que a transmissão (cessão) em vida, da posição de arrendatário habitacional, ao arrepio do regime legal específico.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", B e C e mulher D intentaram acção de despejo contra E, alegando, em resumo o seguinte:
- os AA são proprietários do prédio sito na Rua João Eloy do Amaral, n°..., em Setúbal, tendo sido dado de arrendamento a F o 2° andar desse prédio em 1-1-83, por acordo reduzido a escrito;
- em 16-4-01, a Ré comunicou aos AA o falecimento do arrendatário, em 23-11-00, juntando certidão de óbito;
- nessa altura, os AA tiveram conhecimento de que o arrendatário e a Ré, ora sua viúva, não residiam no local arrendado, já desde antes da data de tal óbito.
Solicitaram assim:
- fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado com o F, com base na falta de residência permanente, e a ré condenada a despejar o dito andar.
- fosse a ré condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória de 10.000$00 diários, a contar da data de notificação da sentença até à data da efectiva devolução do andar em apreço.
2. Contestou a ré, afirmando que sempre continuou a viver na casa arrendada, em comunhão de mesa e habitação com o falecido arrendatário e com o filho do casal.
E, em reconvenção, pediu a condenação dos AA em indemnização, no valor de 17.457,93€, por benfeitorias realizadas no arrendado e por não ter possibilidades de arrendar outra casa com as mesmas características desse local.
3. Na sua resposta os AA solicitaram a improcedência do pedido reconvencional.
4. Por sentença da Mma Juíza da Vara de Competência Mista de Setúbal datada de 13-3-03 foi a acção julgada procedente e, em consequência, declarado resolvido o contrato de arrendamento em causa, com a condenação da ré a des-pejar o andar objecto do contrato, e do mesmo fazer entrega aos AA livre e desocupado de pessoas e bens.
Foi ainda a Ré condenada no pagamento da quantia de 12,50€ por cada dia de atraso na entrega do imóvel, após o trânsito da presente sentença a título de sanção pecuniária compulsória.
Mais julgou a Mma Juíza parcialmente procedente a reconvenção, condenando os AA a pagar à Ré o valor por esta gasto na reparação do reboco, pintura, canalizações, esgotos, pavimento, tecto, azulejos, portas e janelas do local arrendado, no valor máximo de 9.975,96€ (nove mil, novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), valor esse a apurar em execução de sentença."
5. Inconformada, apelou a Ré, sustentando "dever anular-se ou revogar-se a douta decisão proferida julgando improcedente a acção"; ou então condenar-se a A. no montante de 3.000 contos (14.963,94 €)" a título de benfeitorias feitas no arrendado.
6. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 22-4-04, negou provimento ao recurso, assim confirmando a decisão de 1ª instância.
7. Ainda irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a Ré recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- Deve julgar-se verificada a exclusão do n° 2 c) do art° 64° do RAU, dado que a Ré e o filho sempre viveram e ainda vivem em economia comum;
2ª- E consequentemente julgar-se a acção improcedente absolvendo-se a Ré;
3- A douta decisão recorrida violou o disposto nos art°s 64° n° 2 c) do PAU e 668°, 1, alíneas c) e d) do CPC.
Nestes termos deve anular-se ou revogar-se, a douta decisão proferida julgando improcedente a acção.
8. Contra-alegaram os AA sustentando a correcção do julgado.
9. Corridos os legais vistos e, nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
10. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes, por remissão para a decisão de 1ª instância, os seguintes pontos:
1º- Por contrato verbal de arrendamento celebrado em 01/01/1983, celebrado por G, como senhorio, de quem os autores são os únicos e universais herdeiros, foi dado de arrendamento a F, o 2° andar do prédio urbano sito na Rua João Eloy do Amaral, n.°..., freguesia de -Nossa Senhora de Anunciada, concelho de Setúbal, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia, sob o art.º 2383.
2º- O arrendamento referido em A) destinava-se à habitação de F e seus familiares.
3º- Mediante uma renda mensal de Esc.: 2.500$00, que actualmente é de Esc.: 11.708$00, paga na residência da Autora B.
4º- O identificado contrato foi celebrado pelo prazo de seis meses, renovável por iguais períodos.
5º- Por carta de 16 de Abril de 2001, o mandatário da Ré, comunicou aos Autores B e C, que o arrendatário, F, havia falecido em 23 de Novembro de 2000, juntando certidão de óbito, e juntando também certidão de nascimento da Ré.
6º- F e a ora Ré residiam há bastante tempo no prédio da Travessa do Centeio, n°... -... Esq° em Setúbal, local onde faziam a sua vida familiar, recebendo os familiares e amigos, dormindo e recebendo a correspondência.
7º- Não habitavam o prédio identificado em 1.
8º- Após o óbito de F, a ora Ré nunca habitou esse prédio.
9º- F e a ora Ré deslocavam-se ao local identificado em 1. frequentemente.
10º- Ali se encontra diariamente o filho do casal, H, que ali confecciona as refeições e as toma, pernoita e recebe os amigos.
11º- O falecido F e a Ré adquiriram o andar referido em 6.
12º- O filho da ré tem problemas de coração e outros problemas de saúde.
13º- O falecido F e a ora Ré deixaram móveis no local identificado em 1. e a ora Ré procede por vezes à limpeza do mesmo e por vezes trata das roupas do filho.
14º- A ré e o falecido F queixavam-se que a zona onde tinham adquirido a fracção identificada em 6. é uma zona com mau ambiente.
15º- No local identificado em 1., existiam infiltrações de água pelo tecto, o reboco estava a cair e as pinturas estavam.
16º- Também as canalizações da água estavam muito velhas, com rompimentos frequentes e repasses e a casa de banho teve de ser reconstruída.
17º- O senhorio recusou-se a fazer reparações, dizendo que a renda era baixa.
18º- Na casa referida em 1., foi colocado novo pavimento que foi afagado e envernizado, o tecto foi reparado e o piso estava deteriorado.
19º- Foram substituídos azulejos que estavam partidos.
20º- E procedeu-se ao arranjo de portas e janelas; com envernizamento destas, e bem assim dos rodapés.
21º- E à substituição da canalização quase completa, e dos esgotos, com colocação de novas torneiras.
22º- E reconstrução da casa de banho, com colocação de mosaico, estuque, e loiças sanitárias, poleias em mármore e suportes de iluminação em mármore.
23º- E procedeu-se ao reboco e pintura de todas as paredes e tectos do locado, a tinta lavável Robialac.
24º- Nas obras, foi gasta quantia não inferior a 2.000.000$00.
Passemos agora ao direito aplicável.
11. Nulidades do acórdão por alegados oposição entre os fundamentos e a decisão e excesso de pronúncia
A recorrente não chega a esclarecer se pretende imputar os vícios em epígrafe à decisão de 1ª instância, caso em que estaríamos perante a invocação de um conjectural erro de julgamento, uma vez que em sede de apelação tais vícios já haviam sido arguidos e rejeitados, ou se tal imputação se reporta ao próprio acórdão revidendo.
Se se tratar dessa primeira hipótese, hemos que dizer que se não descortina qualquer erro de julgamento, pois que não só a sentença não omitiu nem excedeu o conhecimento de qualquer das questões submetidas pelas partes ao respectivo escrutínio, como ainda porque os silogismos judiciários a final extraídos se revelam em perfeita e lógica coerência com a fundamentação adrede aduzida (artº 668º, nº 1, alíneas d) e c) do CPC).
Mas, se for o caso desta 2ª hipótese, há que dizer, desde já, que a recorrente não chegou a substanciar a arguição para que os respectivos fundamentos possam agora ser sindicadas por este tribunal de recurso.
Improcede, pois, a arguição das citadas nulidades.
12. Mérito substantivo.
Insiste a Ré, ora recorrente, em que se verificaria a excepção tipificada na al c) do n° 2 do art. 64° do Reg. Arrend. Urbano (o chamado RAU 90 aprovado pelo DL 321-B/90, 15/10), obstativa da impetrada resolução do contrato.
E isto face à alegada permanência de parentes ou familiares no locado sem embargo da falta de residência permanente do locatário.
Mas, perante os factos dados como assentes pela Relação, há que dizer que os mesmos - tal como a Relação bem concluiu - são "essencialmente caracterizadores de uma situação de falta de residência permanente por parte do inicial inquilino e, subsequentemente, do cônjuge beneficiário da transmissão do direito, na medida em que o arrendado deixou de ser, regular e habitualmente, e com carácter de continuidade e de estabilidade, o centro de afectação de um prédio à normal satisfação das respectivas necessidades habitacionais, o que passou a ser feito, por uma outra unidade habitacional, entretanto, adquirida, o que constitui causa legal resolutória" (sic).
E, na realidade, para a operância de uma tal excepção, não basta a mera permanência de parentes ou familiares no arrendado, antes se configurando como necessária a existência de elos de dependência económica entre eles, ou com a própria casa/habitação e o arrendatário.
Podem, é certo, morar no prédio, para além do arrendatário, todos aqueles que vivam com ele em economia comum, presumindo-se que assim vivem, com o locatário, "os seus parentes ou afins na linha recta ou até a o 3º grau da linha colateral, ainda que paguem alguma retribuição, e, bem assim, as pessoas relativamente às quais, por força da lei ou de negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos" (artº 76º do RAU 90)
O conceito de "economia comum" pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar em sentido familiar, moral e social, uma convivência conjunta com especial "affectio" ou ligação entre as pessoas coenvolvidas, convivência essa que não impõe a permanência no sentido físico, antes admitindo eventuais ausências, sem intenção de deixar a habitação, com sujeição a uma economia doméstica comum com a quebra dos laços estabelecidos, verificando-se, assim, apenas uma economia doméstica, contribuindo todos ou só alguns para os gastos comuns" (conf. Aragão Seia, in "Arrendamento Urbano", 7ª ed. Pág 546 e ss).
Destarte, a aludida " presunção" tem que ter subjacente a existência de uma certa convivência familiar; e, faltando ou cessando essa convivência, deixa de haver fundamento - fáctico e, correspondentemente, legal - para poder presumir-se a existência de economia comum entre tais pessoas.
A "ratio legis" radica na protecção da estabilidade do agregado familiar com sede no arrendado (que não no interesse económico do senhorio); e daí que devendo embora pressupor-se que a ausência do arrendatário se não configure ("a priori") como definitiva, mantendo-se em suspenso o regresso ao lar; mas, se a ausência não for temporária, haverá como que uma desintegração do agregado familiar, pelo que, mesmo permanecendo no arrendado parentes ou familiares do arrendatário, há que entender que estes terão constituído um novo agregado dotado de inteira autonomia.
E este novo agregado já não estará abrangido pela protecção excepcional contemplada na al. c) do n° 2 do art. 64° do RAU 90, já que, a assim se não entender, representaria como que a transmissão (cessão) em vida, da posição de arrendatário habitacional, ao arrepio do regime legal específico.
Tornar-se-ia pois mister - para que pudesse operar a sobredita causa impeditiva -, (dando de barato que o senhorio - como na hipótese vertente - haja satisfeito o correspectivo ónus da afirmação e da prova dos factos integradores do conceito de " falta de residência permanente"), que o inquilino houvesse, da sua banda, alegado e provado que, no arrendado, teriam permanecido familiares seus do tipo dos legalmente indicados, e sem desintegração do primitivo agregado familiar, por se manterem os vínculos de dependência entre ele e as pessoas que ficaram no prédio, tudo com a intenção (por parte do verdadeiro) arrendatário regressar ulteriormente ao locado.
Ora, a ré, ora recorrente - tal como observa a Relação - não logrou, apesar de a ter alegado, provar matéria bastantemente integradora da excepção de que pretende prevalecer-se.
Resultou, com efeito, provado que a habitação arrendada deixou, desde há algum tempo antes de propositura da acção, de constituir o centro estável e habitual da organização da vida familiar do inicial inquilino e, subsequentemente, da ora recorrente e, por outro lado, não resultou provada, designadamente, a matéria dos referidos artºs 70 e 8° da base instrutória, de natureza crucial para a caracterização da permanência de vínculos de conexão e(ou) dependência económica com o filho que tem habitado a casa.
13. Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões da alegação da recorrente, não merecendo, por isso, o acórdão revidendo qualquer censura.
14. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004.
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares