1. O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro (artºs 251º e 247º, nº 2, do CC)
II. Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
III. Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (artº 251º), quer o dolo (artº 254º, nº 1) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
III. A essencialidade do erro (ou do dolo) deve ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante ou do contraente enganado (deceptus), ou seja daquele que haja sido levado a formular uma ideia inexacta acerca do objecto do negócio, sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
IV. Comete dolo ilícito o "deceptor" - autor do artifício, sugestão ou embuste - que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria.
V. Para a anulação do negócio exige a lei que se trate de um "dolus" malus (artº 253º, nº 2) que não de meras sugestões ou artifícios usuais considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico ("dolus bonus").
VI. Deve existir um nexo de causalidade entre o dolo e a actuação do enganado. A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, determinado intencionalmente por outrem: a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada) - "erro qualificado".
VII. O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (artº 254º nº1); mas acresce a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa fé, desde os preliminares e até à conclusão do negócio.
VIII. A violação, na formação do contrato (culpa "in contrahendo") desses deveres de boa-fé e lealdade (salvo na medida em que seja causa de vício da declaração de vontade da contraparte ou provoque a celebração de negócio usurário) não releva autonomamente como fundamento da anulabilidade do negócio.
IX. A alteração artificiosa da quilometragem de um veículo (para menos) ou a sua dissimulação por estabelecimento comercial especializado nesse ramo não pode ser qualificar como prática comercial "normal", "usual" ou "corrente", mera sugestão propiciadora do comércio jurídico (actos de compra e venda) ou como uma forma habilidosa de apresentar a mercadoria, vulgar expediente ou técnica de marketing mais ou menos agressiva.
X. É ao "deceptus " que incumbe provar que o declaratário (deceptor) conhecia, ou não deveria ignorar, a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro - artºs 251°, 247° e 342º, nº 1, do C.C
1. "A", dev. id. nos autos, instaurou, com data de 23-10-01, acção ordinária contra "Garagem B", com sede no Porto, solicitando:
- se decretasse a anulação do contrato de compra e venda celebrado com a Ré e relativo ao veículo de matrícula ER;
- a condenação da Ré a restituir-lhe a quantia de 2.600.000$00, que dele recebeu;
- a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 1.000.000$00 a título de danos não patrimoniais.
Alegou, para tanto, e resumidamente, o seguinte:
- adquiriu à Ré um veículo de marca "Renault Laguna", de matrícula ER, do ano de 1994;
- inspeccionou o veículo, cujo conta-quilómetros marcava cerca de 43.000 Kms, pelo que o adquiriu pelo preço de 2.600.000$00, que pagou, sendo 900.000$00 através da entrega do seu anterior veículo;
- na posse do veículo, só mais tarde - em 30-5-98 - lhe foram entregues os documentos e bem assim o "livro de assistência";
- pôde então constatar que, aquando da última revisão, que tinha tido lugar em Dezembro do ano anterior, o veículo tinha registados como percorridos cerca de 80.000 Kms;
- de imediato contactou a Ré, a quem propôs a anulação do negócio, o que ela rejeitou;
- a alteração da quilometragem do veículo que adquiriu à R. foi efectuada nas instalações desta, quando o vendedor lhe garantiu que o veículo tinha percorrido os 43.434 Km que o conta-quilómetros apresentava, o que foi decisivo para o ter adquirido até porque o seu anterior veículo tinha também cerca de 80.000 Kms e, por esse facto, decidira adquirir outro com menos quilometragem;
- se soubesse da quilometragem real do veículo que veio a adquirir, que lhe foi ocultada, não o teria adquirido, para além de que, tendo tomado todas as cautelas para negociar com uma firma credenciada e séria, e tendo sido por ela enganado de forma grosseira e dolosa, sentiu-se enganado e frustrado, o que o fez sofrer, tendo-se visto forçado a andar com um veículo que não queria, o que o traz permanentemente em sobressalto.
2. Contestou a Ré por impugnação, referindo também sumariamente, que:
- o veículo que vendeu ao A. já acusava cerca de 85.000 Kms quando deu entrada nas suas instalações, tendo sido com essa quilometragem que foi exposto para venda;
- o A. tem detido e utilizado o veículo percorrendo mais de 40.000 Kms;
- a existir nulidade do negócio, havia que reconstituir a situação inicial, a qual não é possível atenta a utilização do veículo efectuada pelo A., que sem causa enriqueceria à sua custa, sendo o valor actual do veículo o de 930.000$00.
Invocou, ainda, o abuso do direito na conduta do A.
3. Houve réplica do A.
4. Por sentença de 17-10-03, a Mma Juíza da 2ª Vara Cível da Comarca do Porto, julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decretando a anulação do contrato de compra e venda do veículo em causa, condenou a Ré a restituir ao A. a quantia de 8.479,56 € (1.700.000$00) bem como o veículo de matrícula AX ou, caso a mesma não fosse possível, o montante de 4.489,18 € (900.000$00) que lhe foi atribuído, bem como a pagar-lhe a quantia de 498,80 € a título de danos não patrimoniais, devendo o A. restituir à R. o veículo "Renault Laguna" de matrícula ER.
5. Inconformada, apelou a Ré apelou, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 31-5-04, julgado a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar ao A. quantia de 498,80 €, a título de danos não patrimoniais, no mais mantendo o decidido em 1ª instância.
6. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a mesma Ré recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
a) - Se, tendo merecido resposta de não provado que fosse "decisivo para o A que o veículo tivesse a quilometragem que o respectivo conta-quilómetros apresentava resposta limitativa ao quesito 9º, resta como provado, somente que:
- na data em que acordou com o A, adquirir o ER o mesmo apresentava no respectivo conta-quilómetros 43.434 Kms;
- o vendedor da Ré-recorrente informou-o das características do veículo, seu estado e ano de abrico (tão somente o A.:
- verificou a quilometragem que o veículo apresentava,
- o A, confiando no que o vendedor lhe garantira e na quilometragem, que o veículo apresentava (veio a outorgar o contrato se conclui que "não estamos perante "sugestões e artifícios"... utilizados pelo vendedor (...) que se inserem perfeitamente no comércio jurídico"(sic), apesar de tal excerto ter sido colhido num aresto do S.T.J. antes perante uma "aldrabice ", viola-se o regime dos artigos 253, n° 2 e 8, n° 2 - até por referência ao aresto do STJ de 20.03.03 -, como 9, n° 1 do C.C., bem como, sem "perplexidade", a noção de "experiência comum ".
a. 1) É que, tal como nas pessoas, quanto aos objectos aparentemente bem conservados, há muitas vezes o gosto de fazer ajustar a aparência ao presumível desgaste temporal, pelo que se busca parecer - ou mostrar ter uma "vivência" compatível com a razoável "aparência"
E daqui, se nem no contrato de casamento, esse "ludíbrio" seja fundamento de anulação, nada de mais grave podemos concluir no domínio das "coisas", até porque em relação a estas - mais facilmente que às pessoas.
"Melhor é experimentá- o que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo!", como se escreveu, de um saber de "experiência" feito no canto IX de "Os Lusíadas".
b) - Se o douto acórdão considera como matéria de facto assente:
- não se provar que "a Ré assegurou ao A. que o veículo tinha percorrido a quilometragem que... apresentava, por forma a convencê-lo a comprar-lho" - quesito 11° -
- como não provado que a Ré "soubesse que essa qualidade e circunstância era decisiva para que o A. adquirisse o veículo" - quesito 12°,
- nem que o vendedor informou a quilometragem - resposta limitativa ao quesito 7°;
- nem que a Ré assegurou que a quilometragem era a que constava do respectivo conta-quilómetros, de forma a convencê-lo a comprar-lho - resposta negativa ao quesito 11° - e, mais ainda,
- que sabia a R. que essa qualidade era decisiva para que o adquirisse o veículo"- resposta negativa ao quesito 12º
- e, "at last" se provou que a Ré desconhecia o que motivou o A. a adquirir-lhe o, veículo - quesito 23°;
incorre em vício de lei processual - 659º, do C.P.C.-, como substantiva - 342º, nº 1 e 349º do C.C. - quando afirma que conhecia ou ao menos não devia ignorar a essencialidade para o autor de uma das qualidades do veículo, a saber, a respectiva quilometragem,
c) - Dizer que a "essencialidade do erro tem que ser analisada sob o aspecto subjectivo" - fls. 244 e dizer, logo, no verso dessa folha, que "há natureza normativa no dever de conhecer a essencialidade" tendo, pois carácter objectivo, é uma "contradição lógica " da fundamentação - vício de forma da sentença e violação da regra da prova;
c.1) - A tratar-se de erro sobre o objecto era ao "deceptus "que incumbia provar que o declaratário conhecia ou não devesse ignorar a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro - artigo 251° e 247° do C.C.
- ademais que há hipóteses em que, verificando-se este requisito (cognoscibilidade da essencialidade o declaratário) nem sequer devesse suspeitar da existência do erro da contraparte. Mota Pinto, "Teoria Geral", Coimbra Editora, 3ª ed, pág. 512, Coimbra, 1989 - e porque diferente orientação flui dos arestos acima transcritos, ainda que parcialmente -
- aresto do SJ200301140021551, datado de 14-01-03, relatado pelo Cons. Pinto Monteiro-, p.ex., e/ou Prof Mário Júlio de Almeida Costa in R.L.J., ano 116, p.p. 172 a 174
c.2) - Isto quando se considera que é elemento não essencial o ano de matrícula - aresto do Tribunal da Relação do, Porto, Proc. N° 9520021, de 27.06.96 - quando é facto notório no comércio automóvel que aquele é mais relevante na determinação do valor do mesmo que a quilometragem.
Decidindo de modo contrário, violou o regime dos artºs 342, n° 251 e 247 do C.C., não tendo em conta a uniformidade conceptual que se deve obter em "normas em branco" relativamente aos usos comerciais - artigo 8º, n° 3 do C.C;
d) - Face à matéria provada e não provada transcrita acima, e tendo presente o que quanto a elementos definidores do dolo se entende na jurisprudência - ver Ac do SJ200405130013247, como Ac., STJ de 14/01/2003, no Proc. 2155/02 da 1ª secção relator Pinto Monteiro), como o saudoso Prof. Castro Mendes, in Teoria Geral, II, pág. 113,
- pelo que só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrém; como diz a lei (254°,nº1) que a vontade do declarante «tenha sido determinada por dolo», mas o motivo a que o erro reporta há-de ser causal, isto é, determinante do negócio nos termos gerais do regime do erro) - falece a "dupla causalidade", pois não se prova que a alteração de quilometragem tivesse sido pré-ordenada para influenciar a vontade em concreto do A., ou daquele comprador.
Viola, pois, a noção de "dolo comissivo", ou seja, faz errada interpretação do artigo 253, n° 1 do C.C.
d.1) - Viola a noção de "dolo omissivo", o mesmo douto acórdão quando, face à matéria de facto provada e a alegada e não provada, e apesar de se estar, no caso de alteração de quilometragem, de um artifício bem menos relevante para fixação do valor comercial de viaturas que o ano de matrícula, e que não visou directamente a formação da vontade do aqui A. apoda de "aldrabice", aquilo que na jurisprudência do STJ foi acolhido como "habilidosa forma de apresentar o produto em ordem a conseguir o intuito de convencer potencial comprador a tornar-se comprador efectivo", sendo "sugestões e artifícios (preferimos a expressão técnicas de venda) utilizados pelo vendedor da ré (que) inserem-se perfeitamente no âmbito do comércio jurídico" - douto Ac. do STJ. de 20.03.03, já acima referenciado, por não podermos dizer mais nem melhor (mas cujo acolhimento causou "perplexidade" em 2ª instância!) e, em contraponto o decidido no aresto do SJ200305130008781, de 13-05-2003, (Relator Cons. Moreira Alves), como o ensinamento doutrinário segundo o qual tal normativo diz "que não constituem dolo ilícito (apesar de se tratar de um dolo em sentido geral) as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro quando nenhum dever de elucidar o declarante, resulte da lei, de estipulação negocial ou das concepções dominantes no comércio jurídico." in Heinrich Ewald Horster,"A Parte Geral do Código Civil Português- Teoria Geral do Direito Civil", pág. 583, Almedina Editora, Coimbra, 1992,
Faz, pois, errónea interpretação do dispositivo do nº2 do artº 253° do C.Civil - mesmo à luz do artigo 9°, nº 1, da Lei 29/81, de 22/8, que, na esteira do recente aresto do SJ200406030006942, de 03-06-2004 (Noronha Nasc.), impõe "releitura das normas correspondentes do C.Civil."
e) - Afirmar que, aceitando existir "dolo" na formação do contrato, e concluir que " no caso há venda de coisa defeituosa e ao mesmo tempo cumprimento defeituoso da obrigação, porquanto a prestação realizada pela Ré vendedora não correspondeu ao objecto da obrigação a que estava adstrita" - fls. 246" (sic) é, salvo o devido respeito, confundir responsabilidade pré-contratual com responsabilidade contratual.
Viola o regime dos artigos 913º e ss do C.C. e 253º do C.C. ao fazer tal equiparação.
f) - Viola o princípio do dispositivo, incorrendo no vício da al. e) do n° 1 do artigo 668 do C.P.C. e o princípio nominalista do artigo 550 do C.C., atribuir a uma requerente da nulidade de um negócio a actualização da contraprestação, se tal não foi pedido e não se trata de " dívida de valor ";
g) - Viola a teoria da "reconstituição in integrum ", ainda que se não perfilhe a posição do Prof. Vaz Serra, a douta decisão que, provada embora pela Ré que, atento o desgaste da viatura o valor de entrada desta no património da mesma alienante não é igual ao do momento da saída, para que, sem prova do montante do dano no património do adquirente por este, se desconsidere essa desvalorização para os fins do artigo 289 do C.C.
Houve, pois, errada interpretação daquele normativo, como dos artigos 562º e 566º, como do artº 342º, n° 1 do C.C., bem como do ensinamento doutrinal e jurisprudencial, este em caso perfeitamente análogo, como se deixou dito acima em 39 e 49, ou nos arestos do STJ de 28/03/1995 (ReI. Pais de Sousa), ou ainda, de 25/02/1986 (relator Senra Malgueiro).
Termos em que, na improcedência, "in totum", da pretensão do A. - a quem se renova, por política comercial, tão-somente a proposta de revogação contratual, nos moldes aventados e nunca aceites tanto na sede penal como posteriormente.
7. Na sua contra-alegação sustentou o A. a manutenção do julgado.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
9. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1º- No mês de Março de 1998 o A. adquiriu à R. o veículo automóvel ligeiro de passageiros Renault Laguna de matricula ER, do ano de 1994;
2º- A R. é representante oficial da marca Renault;
3º- Foi acordado o preço de 2.600.000$00;
4º- Para pagamento do preço o A. entregou à Ré 1.700.000$00 em dinheiro e o seu veículo automóvel de marca Renault de matrícula AX, avaliado em 900.000$00;
5º- Na data em que o A. acordou com a Ré adquirir o ER o mesmo apresentava no respectivo conta-quilómetros a cifra de 43.434 Kms percorridos;
6º- Com a entrega do veículo foi-lhe pela Ré entregue documento para exibir, se necessário, às autoridades, ficando os respectivos documentos no stand da Ré para ela efectuar a respectiva legalização de que se encarregara;
7º- Esgotado o prazo do documento que a Ré lhe entregara, contactou telefonicamente o stand da R. a dar conta do facto, tendo sido atendido por uma funcionária que lhe comunicou que os documentos do veículo já se encontravam à sua disposição e com a transferência do registo de propriedade para o nome do A.;
8º- Aí se dirigiu em Maio de 1998 e, juntamente com os documentos do veículo, foi-lhe entregue também o respectivo livro de assistência, tendo verificado que na data da anterior e última revisão, efectuada em Dezembro de 1997, o veículo apresentava percorridos no respectivo conta-quilómetros, e assinalados no livro, cerca de 80.000 Kms;
9º- Logo contactou o vendedor Oliveira e o elemento da administração da Ré C propondo a anulação do negócio, o que foi por eles recusado;
10º- Relacionado com a aquisição do veículo, o A apresentou queixa-crime que veio a dar origem ao processo n° 120/2000 da 4a Vara Criminal do Porto, no qual o A. deduziu pedido de indemnização civil e em que foi proferido o acórdão de fls. 7 a 16;
11º- O A decidiu substituir o seu veículo AX porque o mesmo estava prestes a atingir os 80.000 Kms, percorridos, por outro com menos quilometragem;
12º- Fê-lo porque sabia que a partir dessa quilometragem surgem os problemas e custos de manutenção e reparação;
13º- Como gostava da marca Renault decidiu-se substituí-lo por outro da mesma marca, mas a ser adquirido em estabelecimento que fosse representante oficial e que lhe merecesse confiança e não num qualquer stand;
14º- Para além de outras diligências, começou a consultar os anúncios publicados por tais estabelecimentos nos jornais diários;
15º- Em meados de Fevereiro de 1998, através de um anúncio publicado num jornal diário, tomou conhecimento que a R. tinha para venda o veículo automóvel que veio a adquirir;
16º- Dirigiu-se ao stand da R., após ter telefonado, e foi atendido pelo vendedor D, que também havia recebido o seu telefonema;
17º- Esse vendedor informou-o das características do veículo, seu estado e ano de fabrico;
18º- Verificou a quilometragem que o veículo apresentava;
19º- Confiando no que o vendedor lhe garantira e na quilometragem que o veículo apresentava veio a outorgar o contrato,
20º- Se soubesse que o veículo que veio a adquirir tinha percorrido cerca de 80.000 Kms o A. não o teria adquirido;
21º- O A. tomou todas as cautelas para negociar com uma firma séria e credenciada relativamente ao veículo que se propunha comprar,
22º- Nesse sentido, e por ter a convicção de se tratar de uma firma honesta, idónea, e responsável, contactou e negociou com a R.;
23º- Sentiu-se enganado;
24º- Causou-lhe desgosto;
25º- Ao longo do tempo decorrido, o A. tem andado com um veículo que não queria devido à diferença de quilometragem;
26º- Entre a visita inicial do A. ao stand da R. e a aquisição mediou um mês;
27º- A Ré desconhecia o que motivou o A. a adquirir-lhe o veículo;
28º- Exceptuando as deslocações referidas em 8º e 9º desde a aquisição do veículo que o A. deixou de frequentar as instalações da R.;
29º- Desde que adquiriu o veículo o A. já percorreu com ele mais de 40.000 Kms;
30º- No ano corrente o seu valor comercial no valor de automóveis comerciais usados é de 6.649 €;
31º- A alteração da quilometragem ocorreu nas instalações da R.;
32º- A alteração da quilometragem prejudica qualquer eventual comprador.
Passemos ao direito aplicável.
10. Questiona a Ré-recorrente o sentido decisório das instâncias no tocante à invalidade do negócio jurídico de compra e venda de veículo automóvel por si celebrado como o A.
Vejamos.
A acção foi proposta com base em erro-vício gerador da anulabilidade do próprio contrato celebrado entre as partes, mais propriamente numa actuação de carácter doloso por banda da Ré, através dos seus prepostos, com cobertura legal nos artºs 253º e 254º do C. Civil.
Nesse tipo de acções de anulação a causa de pedir, é, com efeito, o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito (anulatório) pretendido - conf. nº 4 do artº 498º do CPC.
Isto sendo sabido que a eventual anulação surtiria eficácia "ex-tunc", "devendo ser restituído tudo o que houvesse sido prestado, ou se a restituição em espécie não fosse já possível, o valor correspondente" - conf. artº 289º, nº 1, do C. Civil.
Pois bem.
Entre as "condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade encontra-se a sua "essencialidade", no sentido de que só é relevante o erro essencial (determinante), isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio, em si mesmo e não apenas nos ter-mos em que foi concluído - conf. Mota Pinto, in "Teoria Geral do Direito Civil ", 3ª ed. Act., pág 508 e ss
O erro só é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa.
O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro (artºs 251º e 247º, nº 2, do CC), sendo que " a qualidade de um objecto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida" (conf. Manuel de Andrade, in "Teoria Geral", vol II, págs 235 e 248).
Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste. A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro, conf. Ac do BMJ, nº 213º, pág 188).
Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (artº 251º) quer o dolo (artº 254º, nº 1) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
Subjaz ao erro sobre os motivos uma ideia inexacta sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância presente ou actual que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
Comete dolo (o "deceptor" - autor do artifício, sugestão ou embuste) que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria.
Deve existir, assim, um nexo de causalidade entre o dolo e a actuação do enganado (decepcionado). A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, erro esse determinado intencionalmente por outrem;por isso, a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada), deste modo podendo o dolo ser também ser designado como "erro qualificado" - conf. Ac STJ de 13-5-04, in Proc 1324/04 - 7ª Sec.
O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (artº 254º nº 1); mas acresce a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa fé, desde os preliminares e até à conclusão do negócio.
A violação, na formação do contrato (culpa "in contrahendo") desses deveres de boa-fé e lealdade (salvo na medida em que seja causa de vício da declaração de vontade da contraparte ou provoque a celebração de negócio usurário) não releva autonomamente como fundamento da anulabilidade do negócio - conf. cit Ac do STJ de 13-5-04.
O fundamento legal da obrigação de indemnização radica no facto de o dolo ser um acto ilícito.
É mister salientar que o fundamento da anulabilidade por dolo não consiste numa ideia de reparação do prejuízo sofrido pelo enganado. A reparação do prejuízo causado é adregada com a responsabilidade civil a cargo do «deceptor», que não com a anulabilidade gerada pelo vício invalidante do negócio jurídico.
Depara-se-nos - na hipótese vertente - uma modalidade de erro juridicamente qualificável (e demodo generico) como "erro sobre o objecto do negócio" incidente sobre o objecto mediato, in casu sobre as qualidades da coisa alegadamente induzido por um comportamento doloso por banda do deceptor (destinatário da declaração), consubstanciado num artifício fraudulento também aventadamente utilizado pelo deceptor com intenção ou consciência de induzir em erro o autor da declaração (deceptus).
Entre as condições de relevância do dolo do declaratário como motivo de anulação exige a lei que se trate de um "dolus" malus (artº 253º, nº 2) que não de meras sugestões ou artifícios usuais considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico ("dolus bonus").
E - diga-se de passagem - que se não perfilha a tese de que a alteração artificiosa da quilometragem de um veículo (para menos) ou a sua dissimulação por estabelecimento comercial especializado nesse ramo se possa qualificar como prática comercial "normal", "usual" ou "corrente", meras sugestões propiciadoras do comércio jurídico (actos de compra e venda) ou como uma forma habilidosa de apresentar a mercadoria, vulgares expedientes ou técnicas de marketing mais ou menos agressivas. Trata-se de práticas não sérias, e desleais, como tais, e por princípio, inteiramente condenáveis pelas concepções dominantes e, por isso, integradoras, in abstracto, da noção de" dolo ilícito".
E quanto às condições de relevância do erro ?
Para que o erro vício seja relevante torna-se necessário o preenchimento cumulativo dos consabidos requisitos da essencialidade, propriedade, e escusabilidade.
As condições de relevância do dolo são menos apertadas que as do erro sobre os motivos, já que se não exige para o dolo o estrito condicionalismo imposto pelo artigo 252º.
Na esteira de Mota Pinto, in ob cit, pág 524 "já, porém, os requisitos especiais do erro sobre a pessoa do declaratário ou sobre o objecto do negócio não constituem uma exigência mais gravosa, para o errante que pretende anular o negócio, do que a representada pelos requisitos do conceito de dolo: com efeito, para a relevância do erro sobre a pessoa ou sobre o objecto, exige-se o conhecimento ou cognoscibilidade, pela outra parte, da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro e, para a relevância do erro provocado por dolo, a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro a contraparte. Sempre será, todavia, mais fácil a prova do dolo positivo que a do erro simples" (sic).
O dolo é um facto ilícito que origina uma responsabilidade pré-negocial do deceptor a favor do deceptus, enquanto o errante, pelo menos se o erro não é causado culposamente pela outra parte (cfr. art. 227º), não pode senão anular o negócio, verificados os respectivos requisitos de relevância.
Ora, o que nos mostram os autos ?
Mereceu resposta limitativa a matéria levada ao quesito 9º no qual se perguntava se havia sido "decisivo para o A que o veículo tivesse a quilometragem que o respectivo conta-quilómetros apresentava" já que se deu apenas como provado que:
- na data em que acordou com o A. adquirir o ER o mesmo apresentava no respectivo conta-quilómetros 43.434 Kms;
- o vendedor da Ré-recorrente informou o A., tão-somente, das características do veículo, seu estado e ano de fabrico;
- o A. verificou a quilometragem que o veículo apresentava;
- o A. confiou no que o vendedor lhe garantira e na quilometragem que o veículo apresentava.
Não se deram, por seu turno, como provados os factos (que haviam sido alegados pelo A.) seguintes:
- que a Ré haja assegurado (ao A.) que a quilometragem era a que constava do respectivo conta-quilómetros, de forma a convencê-lo a comprar-lho (resposta ao quesito 11º);
- que a Ré soubesse que essa qualidade era decisiva para que o A. adquirisse o veículo (resposta ao quesito 12º).
Insiste-se: não se provou que "a Ré assegurou ao A. que o veículo tinha percorrido a quilometragem que apresentava, por forma a convencê-lo a comprar-lho".
E mais: provou-se que a Ré desconhecia o que motivou o A. a adquirir-lhe o veículo - resposta ao quesito 23°;
Como pois concluir - como concluiu a Relação - que a Ré conhecia, ou ao menos não devia ignorar, a essencialidade para o autor de uma das qualidades do veículo, a saber, a respectiva quilometragem ?
Conforme bem observa a recorrente, o acórdão revidendo enferma, de resto, de uma certa contradição lógica porquanto, depois de haver considerado que a "essencialidade do erro tem que ser analisada sob o aspecto subjectivo" - fls. 244 - logo, no verso dessa folha, obtemperou que "há natureza normativa no dever de conhecer a essencialidade" tendo, pois carácter objectivo !...
E era ao A., ora recorrido, na qualidade de "deceptus " que incumbia provar que o declaratário (a Ré recorrente) conhecia ou não deveria ignorar a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro - artºs 251°, 247° e 342º, nº 1, do C.C - conf. neste sentido, v.g., o citado Ac deste Supremo Tribunal de 13-5-04.
Na verdade, só há dolo relevante - insiste-se - quando o declarante haja caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem;como diz a lei (artº254°,nº1), isto é quando a vontade do declarante «tenha sido determinada por dolo»;o motivo a que o erro reporta há-de ser causal, isto é, determinante do negócio nos termos gerais do regime do erro).
Falece pois no caso "sub-specie" a chamada "dupla causalidade", pois não se prova que a alteração de quilometragem tivesse sido pré-ordenada para influenciar a vontade em concreto do A., ou daquele comprador, nem que a vontade do comprador haja sido determinada pela sugestão ou artifício fraudulento da firma vendedora.
Arredada se encontra, por isso, a hipótese de existência de do chamado "dolo comissivo".
Ademais, o aresto confunde responsabilidade pré-contratual com responsabilidade contratual, pois que, começando por aceitar a existir "dolo" na formação do contrato, acaba por concluir, que " no caso há venda de coisa defeituosa e ao mesmo tempo cumprimento defeituoso da obrigação, porquanto a prestação realizada pela Ré vendedora não correspondeu ao objecto da obrigação a que estava adstrita" !.
Equiparação essa que representa uma errónea interpretação, inter alia, do disposto nos artºs 913 e ss e 227º e 253º, todos do C. Civil.
Por último vem inteiramente a propósito a alegação - pela recorrente - da violação do princípio do dispositivo (como tal integrando a nulidade da al. e) do n° 1 do artigo 668 do C.PC) bem como do princípio nominalista contemplado no artigo 550 do C.C., a atribuição ao A. (requerente da nulidade do negócio) da actualização da contraprestação, pois que sempre se trataria de uma condenação "ultra-petitum", uma vez que não reportada a uma qualquer dívida de valor.
Face, pois, à matéria de facto dada como assente, versus o conteúdo do pedido e o ónus da alegação, afirmação ou dedução, e outrossim do ónus da prova, jamais poderia a acção ser julgada, sequer parcialmente, como procedente, não podendo assim subsistir o sentido decisório do acórdão revidendo.
11. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- conceder a revista;
- revogar, em consequência, o acórdão recorrido;
- julgar a acção improcedente, com a consequente absolvição da Ré no pedido.
Custas pela A. no Supremo e nas instâncias.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2005
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares