TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE CARGA
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
CADUCIDADE
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Sumário

1. O prazo de caducidade referido nos arts. 3.º, 6 da Convenção de Bruxelas de 1924 e art. 27.º, 2 do DL 352/86, de 21-10, reporta-se às perdas e danos da mercadoria transportada e não às responsabilidades derivadas do cumprimento defeituoso do contrato de transporte de mercadorias por mar.
2. O direito à indemnização por incumprimento contratual do referido contrato apenas prescreve no prazo ordinário de 20 anos.
3. O contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato solene, estando sujeito à forma escrita.
4. Dele faz parte integrante o conhecimento de carga ou de embarque que, além do mais, representa a mercadoria nele descrita.
5. O cumprimento integral desse contrato apenas ocorre com a entrega da mercadoria ao seu destinatário.
6. O transportador apenas pode entregar a mercadoria a quem se apresentar com os referidos conhecimentos de embarque, o que pressupõe que o seu detentor pagou a mercadoria para se poder munir dos mesmos.
7. Tendo a R. entregue a mercadoria a quem não se apresentou com os conhecimentos de embarque, incumpriu o contrato de transporte referido, sendo, por isso, responsável pelo respectivo preço.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

"A", Lda, intentou contra "B", Lda, e "C", Ltd,

Acção com processo comum, sob a forma ordinária

Pedindo

A condenação das RR. a pagarem-lhe a quantia de 151.409,71 Libras Esterlinas e juros vincendos, por incumprimento contratual do transporte por via marítima para Inglaterra de madeira de pinho que vendeu à firma inglesa "D", Ltd, consistindo esse incumprimento na entrega a esta da mercadoria, sem que a mesma tivesse em seu poder os respectivos conhecimentos de embargue, para o que teria de pagar o preço ao Banco inglês, para onde foram enviados, com tal finalidade.

Contestaram as RR. por excepção, alegando que se encontrava prescrito o direito de accionar, por ter decorrido o prazo de 2 anos, a contar da recepção das mercadorias, face ao disposto no art. 20.º, 1 da Convenção de Hamburgo de 31.3.78, por força do art. 2.º do DL 352/86, de 21.10; contestou também por impugnação.

No despacho saneador, para além do mais, foi julgada improcedente a excepção de caducidade, tendo as RR. interposto recurso de apelação, a subir a final.

Prosseguindo a acção, foi a mesma julgada improcedente, quanto à Ré "B", Lda, que foi absolvida do pedido e julgada procedente quanto à Ré C (Shipping) Ltd, que foi condenada a pagar à A. a quantia de 68.269.98 libras esterlinas, acrescida de juros moratórios, contados desde 15.11.1991 sobre 60.197.89 e sobre o restante (8.072.09 libras esterlinas), desde a data da citação, tudo até efectivo pagamento, à taxa de juro vigente no Reino Unido.

Inconformada, a R. interpôs recurso de apelação.

Na Relação foram julgadas improcedentes as duas apelações: a do saneador - quanto à excepção da caducidade; e a da sentença final, confirmando-se a mesma.

Novamente inconformada, a Ré (1) "C", Ltd interpôs recurso de revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

1. Com o trânsito em julgado na primeira acção do despacho saneador datado de 05.05.1997, sem que a Recorrida tivesse feito uso da faculdade de intentar, em tempo, nova acção sobre o mesmo objecto, verificou-se, em definitivo, a caducidade do seu direito de accionar a Recorrente, nos termos do disposto no art. 289.º, n.º 2 do C.P .C, e 327°, n.º 3 do Cód. Civil (ex vi do n.º 1 do art. 322° do mesmo diploma

Ainda que assim não fosse:

2. A absolvição da instância é imputável à Recorrida, pelo que não lhe aproveita a faculdade de intentar nova acção sobre o mesmo objecto, face ao disposto no art. 289°, nºs I e 2, do C.P.C., na redacção do Dec. lei 47690, de 11.05.67, e conjugadamente, nos artºs 328°, 332°, n.º 1 e 327°, n.º 3, do Cód. Civil.

3. A Recorrente não se obrigou contratualmente a entregar contra documentos, a mercadoria transportada, desconhecendo que tal havia sido convencionado entre a vendedora e a compradora da mesma. Foi estabelecida a cláusula FOB e, tratando-se de um conhecimento à ordem, entregou a mercadoria ao destinatário que era o proprietário da mesma, identificada no conhecimento de embarque e à ordem da qual ficou. Inexistiu, pois, o cumprimento defeituoso por parte da Recorrente, face ao disposto no art.s 11.º, n.º 1 e 18° do Dec-lei 352/86 de 21 de Outubro, e 798° do Cód. Civil.

4. Os juros de mora, a serem devidos, terão contagem inicial na data da citação para esta acção, nos termos dos artºs 805°, n.º 1 e 798° do Cód. Civil.

5. A inércia da Recorrida contribuiu decisivamente para a falta de pagamento da mercadoria, pelo que o ressarcimento do prejuízo daí resultante não seria nunca imputável à Recorrente, conforme o art. 563° do Cód. Civil

Conclui que o Acórdão recorrido violou o disposto nos preceitos e princípios enunciados nestas conclusões, devendo julgar-se procedente o recurso e, em consequência revogar-se o mesmo,

. julgando-se verificada a caducidade do direito a intentar a presente acção e absolvendo-se a Recorrente do pedido, ou se tal não se entender,

. julgando-se não provado a incumprimento por da Recorrente, com absolvição do pedido ou, o que à cautela se alega,

. concluindo-se que foi a Recorrida e não a Recorrente quem deu origem aos prejuízos que esta sofreu, ou, o que se requer por mero dever de patrocínio,

. determinando-se que os eventuais juros de mora comecem a contar-se desde a data da citação da Recorrente para a presente acção.

Juntou um parecer subscrito pelo Ex.mo Advogado Dr. E que confirma a sua tese.

Contra alegou a recorrida, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto provada:

1. A A. dedica-se à comercialização de madeiras, nomeadamente, de pinho marítimo português.

2. No exercício dessa sua actividade comercial e mediante prévia encomenda da sociedade comercial "D", Ltd, com sede em Inglaterra, a A. vendeu a esta a madeira de pinho que se encontra descrita nas suas facturas 109/91, 112/91, 122/91, 126/91, e 135/91, documentos que por cópia constam dos autos.

3. O preço FOB dessa mercadoria foi, respectivamente, de 2.280.79, 37.282.05, 14.617.53, 8.707.31 e 8.072.09 libras esterlinas.

4. Foi acordado com a compradora que o pagamento da mercadoria seria feito pela apresentação de documentos através da via bancária, junto do banco da compradora em Cheadle, Inglaterra.

5. A A. tinha, assim, que providenciar pelo envio, por via bancária, para apresentação à compradora "D", Ltd, dos documentos que titulavam a propriedade da mercadoria e, nomeadamente, os conhecimentos de embarque comprovativos da entrega da madeira no navio transportador.

6. A "D" devia, pois, contra a apresentação de documentos, pagar o valor das facturas supra referidas, recebendo, nessa altura, os conhecimentos de embarque e mais documentação que lhe permitiriam entrar na posse da mercadoria junto do transportador.

7. A madeira da factura n.º 109/91 foi embarcada no porto de Leixões no navio A.ES. em 6.9.1991, conforme resulta do conhecimento de embarque n.º 2, junto aos autos por cópia.

8. A madeira da factura n.º 112/91 foi embarcada no porto de Leixões no navio ANNA A em 11.9.1991, conforme resulta dos conhecimentos de embarque n.ºs 4 e 5, juntos aos autos por cópia.

9. A madeira da factura n.º 122/91 foi embarcada no porto de Leixões no navio Caroline em 8.10.1991, conforme resulta dos conhecimentos de embarque n.ºs 8 e 9, junto aos autos por cópia.

10. A madeira da factura n.º 126/91 foi embarcada em Leixões no navio Andreas Boye em 23.10.1991, conforme resulta do conhecimento de embarque n.º 5, junto aos autos por cópia.

11. A madeira da factura n.º 135/91 foi embarcada em Leixões no navio Wangard em 29.11.1991, conforme resulta dos conhecimentos de embarque n.ºs 9 e 10, junto aos autos por cópia.

12. Todos os conhecimentos de embarque que se referiram foram emitidos com a nota de embarcados pela Ré B, como agentes, e são todos conhecimentos à ordem.

13. À data dos embarques, nenhum dos navios referidos se encontra registado em nome de qualquer das R.R..

14. A A. entregou a madeira à Ré B, tendo esta procedido ao embarque dessa mercadoria no porto de Leixões nos navios aludidos, os quais se encontravam ao serviço da Ré C, com destino a Inglaterra.

15. A mercadoria devia ser entregue em Inglaterra a quem se apresentasse à borda do navio munido dos originais dos conhecimentos emitidos.

16. A Ré C (Shipping), explora comercialmente uma linha marítima regular denominada .....

17. Tendo a A. enviado para Inglaterra, por via bancária, os documentos para apresentação a pagamento a D, esta não se apresentou a levantá-los e não pagou a mercadoria.

18. Entre esses documentos estavam os conhecimentos de embarque atrás referidos, os quais foram devolvidos pelo banco à A. que, por isso mesmo, tem em seu poder todos os originais.

19. Sucedeu que a Ré C entregou livre toda a madeira abrangida por esse conhecimento de embarque a D, sem que esta tivesse em seu poder os conhecimentos originais.

20. Com excepção da madeira da factura n.º 135/91, que foi embarcada em Leixões no navio Wangard em 29.11.1991, conforme resulta dos conhecimentos de embarque n.ºs 9 e 10, toda a demais mercadoria de que tratam os autos já se encontrava em poder da D, em 15.11.1991.

21. A "D" não pagou à A. o valor da madeira fornecida ao abrigo das facturas juntas com a petição inicial, com o valor total de 70.959,77 libras esterlinas.

22. Entretanto a D foi declarada em estado de falência em Inglaterra, tendo a A. apenas recebido em rateio a quantia de 2.662.69 libras esterlinas, conforme resulta dos documentos recebidos do liquidatário. O montante das facturas em débito ficou reduzido a 68.296.98 libras esterlinas.

23. A Ré B é agente da Ré C, sendo por esta retribuída em função dos contratos de transporte que agencia ou de que é incumbida de se ocupar.

O direito

Os recursos são delimitados pelas respectivas conclusões (2), mas estas apenas se podem basear nos factos provados e não noutros, porque os recursos visam sindicar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova.

I. Caducidade

A. Matéria de facto a considerar:

1. A decisão final que declarou incompetente em razão da matéria o tribunal judicial de Matosinhos e absolveu as RR. da instância foi proferido em 4.2.00 - fls. 125 v.º;
2. Essa decisão foi notificada à A. por carta registada, expedida em 7.2.00;
3. A presente acção foi intentada em 14.3.00.
4. Na 1.ª acção intentada no tribunal judicial de Matosinhos, não foi invocado a caducidade da acção para peticionar o preço da mercadoria reclamada.
B. Nenhuma outra matéria de facto importa considerar para decidir esta questão, face ao facto de a mesma ter que se basear, como se disse, nos factos oportunamente alegados para a sua apreciação e não também nos demais que a recorrente invoca agora nas suas alegações, de forma, aliás, bastante confusa.

Com efeito, a questão da tempestividade da 1.ª acção não foi suscitada pela recorrente nem, agora, pode ser aqui alegada.

O que a R. invocou consta da sua contestação de fls. 74, versando sobre a questão de saber se se encontra "prescrito o direito da A. accionar as RR"..e que resulta do art. 20.º, n.º 1 da Convenção de Hamburgo de 31 de Março de 1978, sobre o Transporte de Mercadorias por Mar, aplicável «ex vi» do art. 2.º do DL n.º 352/86, de 21 de Outubro": Isto porque, segundo também alegam as RR., "toda a mercadoria"já estava em poder da D em 15 de Novembro de 1991".

Mas, como as RR. não deduziram naquela 1.ª acção a excepção de caducidade, o facto de a mercadoria já se encontrar em poder da D em 15.11.91 nada releva para a procedência ou improcedência dessa excepção.

A excepção alegada é a de caducidade e não a de prescrição.

É que o art. 3.º, 6 da Convenção de Bruxelas de 1924, publicada no DG de 2.6.32, (3) alude a um prazo de caducidade e não de prescrição: "em todos os casos o armador e o navio ficarão libertos de toda a responsabilidade por perdas e danos, não sendo instaurada a respectiva acção no prazo de um ano a contar da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam ser entregues".

Também o art. 27.º, 2 do DL 352/86, de 21.10, que veio alargar para 2 anos esse prazo, refere que "os direitos de indemnização previstos no presente diploma devem ser exercidos no prazo de dois anos a partir da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete".

Ora, como dispõe o art. 298, 2 do CC "quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição".

Aludindo, pois, as RR. a este prazo de caducidade, não tem que se apreciar in casu a prescrição do direito que a A. pretende exercer nesta acção, porque a prescrição carece de ser invocada, como flúi do art. 303 do CC.

E, relativamente à excepção de caducidade desta acção, uma vez que a mesma não foi invocada na 1.ª acção, ela só procederia se a A. não tivesse intentado a acção dentro do prazo de um mês após a notificação do despacho de absolvição da instância proferido na 1.ª acção.

De facto, dispõe o art. 289, 2 do CPC que "sem prejuízo do disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos, os efeitos civis da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível, se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância".

"Quer dizer, (4) o benefício resultante de a primeira acção ter sido proposta em tempo aproveita-se para a segunda, desde que esta não demore mais de trinta dias".

E mesmo que a absolvição da instância seja imputável à A., sempre ela beneficiaria desse prazo de 30 dias para propor a presente acção, como, claramente, resulta do disposto no art. 327, 3 do CC, por remissão do art. 332, 1 do mesmo Diploma Legal, como se demonstra, mais detalhadamente, no Acórdão sob recurso, no seguimento do doutrinado no Ac. da RL de 14.12.95 (5), dispensando-nos de repetir aqui tal argumentação porque este Supremo Tribunal não é um tribunal de 3.ª instância mas um tribunal de revista.

C. Deve dizer-se, no entanto, que a presente acção nem sequer está sujeita ao prazo de caducidade que as RR. excepcionam.

Na verdade, esse prazo de caducidade reporta-se tão-somente aos casos de perdas e danos da mercadoria no decurso do transporte, como muito bem se explica no Acórdão sob recurso.

De facto, tal conclusão resulta inequivocamente da leitura sistemática dos arts. 3 e 4 da Convenção de Bruxelas de 1924, pois, quer o primeiro desses normativos - que se reporta às obrigações do armador - quer o segundo - que alude às exclusões das suas responsabilidades - têm em vista os danos na mercadoria transportada (6) e não as responsabilidades derivadas do cumprimento defeituoso do contrato de transporte de mercadorias por mar.

E o mesmo se diga do disposto no art. 27, 2 do DL 352/86, que ampliou esse prazo para dois anos, no contexto em que ele é aplicável: reporta-se às perdas e danos da mercadoria, como se vê do regime de responsabilidade definido nos n.ºs 1 e 2 do art. 27, remetendo o primeiro desses números para normativos que apenas aludem à mercadoria e carga transportada. (7)

Aliás, este normativo apenas "caberá nas hipóteses de transportes internacionais a que se não aplique a Convenção, como acontece nas situações excluídas pela alínea c) do artigo 1.º (transporte de animais vivos e transporte no convés, nos termos aí especificados), e ainda nos transportes internos, aos quais não se aplica a Convença, enquanto tal." (8)

E, mais à frente, (9) o mesmo doutrinador escreve que "quanto à fórmula utilizada no preceito é também visível que ela se inspirou, em parte, na do n.º 1 do art. 498.º do Código Civil, que rege o exercício do direito de indemnização em caso de responsabilidade extracontratual", acabando, depois, por dizer, que com o preceito em causa passam a "existir dois regimes substantivamente diversos para dois tipos de transportes: aqueles a que se aplica a Convenção de 1924 e aqueles a que ela se não aplica".

É, pois, às perdas e danos da mercadoria transportada por mar que o referido prazo se refere e não à responsabilidade por incumprimento do contrato de transporte por mar formalizado por conhecimento de embarque como o dos autos.

Aqui, a causa de pedir versa sobre o incumprimento do contrato de transporte de madeiras por mar desde o porto de Leixões até Inglaterra, formalizado por conhecimentos de embargue, tendo as RR. entregue a madeira à firma "D", LTD sem que a mesma lhe apresentasse os conhecimentos de embarque de que a mesma teria que estar munida, pagando previamente o respectivo preço ao Banco, para onde a A. tinha enviado os mesmos.

Sendo esta a causa de pedir e não se lhe aplicando o prazo de caducidade mencionado, mesmo que a A. não tivesse aproveitado os efeitos civis derivados da proposição da 1.ª acção, sempre estaria em tempo de o fazer, por o direito à indemnização por incumprimento contratual apenas prescrever no prazo ordinário de 20 anos, a que alude o art. 309.º do CC, como se demonstrou no Acórdão sob recurso.

Concluiu bem, pois, o mencionado Acórdão, julgando improcedente a excepção de caducidade invocada, decisão que, por isso, se mantém.

II Quanto ao mérito da causa

A questão fundamental que aqui nos é colocada, prende-se com a responsabilidade da R. recorrente por ter entregue a mercadoria transportada à "D", LTD sem exigir desta a apresentação dos conhecimentos de embarque originais que a mesma teria que ir buscar e pagar ao Banco para onde a A. os tinha remetido, para o efeito.

O contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato solene, estando sujeito à forma escrita - art. 3 do DL 352/86, já citado.

Dele faz parte o conhecimento de carga ou de embarque - art. 8.º - que, no dizer de Calvão da Silva (10) desempenha uma função tridimensional: recibo de entrega, prova do contrato entre o carregador e o transportador e representa a mercadoria nele descrita.

O conhecimento de embarque pode ser nominativo, à ordem ou ao portador e está sujeito ao regime geral dos títulos de crédito, (11) sendo o detentor ou possuidor desse documento "o beneficiário dos direitos conferidos pelo conhecimento de carga". (12)

Como diz Ferrer Correia (13) os "títulos representativos de mercadorias: investem o seu possuidor, não só num direito de crédito (direito à entrega das mercadorias), mas num direito real sobre estas (ex. guia de transporte, conhecimento de carga, conhecimento de depósito, etc.)".

Estatui, por seu turno, o art. 5.º, 1 do DL 352/86 que, quando o transportador receber a mercadoria para embarque deve entregar ao carregador um recibo ou conhecimento de carga, com a menção expressa "para embarque", contendo"."

Esse conhecimento de carga ou de embarque "é um título com vida autónoma, que exerce no transporte marítimo a mesma função que a guia de transporte terrestre; uma dupla função jurídica e económica: é o documento constitutivo do contrato de transporte e o título representativo da mercadoria". É o documento "probatório de um contrato tendo por fim conduzir com segurança as mercadorias ao porto do destino e entregá-las no mesmo porto à pessoa designada ou seus representantes e sob as cláusulas nele mencionadas". (14)

Já Palma Carlos (15) dizia que "a entrega da carga ao seu destinatário" representava o cumprimento integral do contrato de fretamento.

E essa entrega há-de ser feita nos termos do contrato definidos na carta de embarque.

No caso dos autos, todos as cartas de embarque eram à ordem: "consigne order".

A pessoa indicada para ser notificada à chegada da mercadoria era a compradora "D", LTD. (16)

Nesse conhecimento de embarque consta ainda que o original do conhecimento de carga deve ser entregue em troca da mercadoria" (17)

Vem também demonstrado na matéria de facto que "todos os conhecimentos de embarque que se referiram foram emitidos com a nota de embarcados pela Ré B, como agentes, e são todos conhecimentos à ordem"; e que a mercadoria devia ser entregue em Inglaterra a quem se apresentasse à borda do navio munido dos originais dos conhecimentos de embarque.

É o que ensina Calvão da Silva (18): "a mercadoria só deve ser entregue contra a recepção de um dos dois originais emitidos, devidamente endossado".

E, mais à frente, "o transportador não deve entregar a mercadoria a ninguém - "- que não se apresente munido de um dos dois conhecimentos originais"e é tão-somente pela apresentação de um deles, devidamente endossado, que o transportador pode fazer a prova do adimplemento do dever de entrega da mercadoria por si transportada, pois, após ter sido dado cumprimento a um dos originais, o outro fica sem efeito (cf. N.º 4 do art. 8.º do DL 352/86")".

Ora, no caso dos autos, tendo a A. enviado os conhecimentos de embarque para o Banco inglês, a compradora da madeira devia ter-se dirigido aí para pagar o respectivo preço e munir-se dos conhecimentos de embarque.

Por seu turno, a R. só podia entregar a madeira à compradora depois desta lhe ter apresentado os conhecimentos de embarque, o que evidenciaria que a mesma tinha pago a mercadoria.

É também o entendimento de A. Varela (19), ao ensinar que "a cargo da transportadora ficou"a obrigação de não entregar a mercadoria, sem prévia exibição e entrega dos documentos que a destinatária deveria levantar no Banco".

Não o tendo feito, a R. não cumpriu o contrato pontualmente, como a lei lhe impunha (20) e, por isso, é responsável pelo pagamento do respectivo preço e juros, como peticionado, nos termos dos arts. 798.º, 805.º e 806.º do CC (21)., colocando a vendedora (22) "quanto possível, na situação em que esta se encontraria, se a obrigação tivesse sido cumprida (art. 563.º do Cód. Civil)". (23)

Improcedem, pois, todas as conclusões da recorrente, não se conhecendo da conclusão VI porque a respectiva matéria que a suporta não foi alegada em sede própria (24), sendo, por isso, questão nova) (25) .

Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se integralmente a decisão impugnada.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005

Custódio Montes,

Neves Ribeiro,

Araújo Barros.

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(1) CHAS. M. WILLIE and Co. (Shipping) Ltd

(2) Art. 684.º, 3 e 690.º, 1 do CPC.
(3) E não a Convenção de Hamburgo que não foi ratificada por Portugal.
(4) Diz A. Reis, CPC Anot., Vol. I, pág. 396.
(5) CJ XX, V, pág. 154.
(6) Incluindo os referentes à carga e descarga da mercadoria.
(7) O mesmo se conclui da leitura do preâmbulo do mencionado DL.
(8) E "Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias por Mar", BMJ 376, 10.
(9) Pág. 11.
(10) Estudos de Direito Comercial (Pareceres) Almedina, pág. 53, onde explica, lapidarmente, a questão aqui analisada.
(11) Art. 11.º do DL. 352/86.
(12) Mesmo A. pág. 55.
(13) Citado por Calvão da Silva, no Ob. cit., pág. 55; ver Lições de Direito Comercial III Letras de Câmbio, 1975, pág. 13.
(14) Cunha Gonçalves, Comentário ao Cód. Comercial Português, III, págs. 221 e 223.
15) O Contrato de Fretamento No Código Comercial Português, 1931, pág. 171; ver também Azevedo Matos, Princípios de Direito Marítimo Vol II, págs. 55.
(16) "Notify adress: ""
(17) "One original Bill of Lading"."
(18) Estudo referido, pág. 59.
(19) RLJ 123, pág. 62.
(20) Art. 406.º, 1 do CC.
(21) "O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causar ao credor".
(22) A autora.
(23) A. Varela, Ob. e loc cits.
(24) A contestação, onde deve ser deduzida toda a defesa - art. 489.º do CPC.
(25) Diz-se nessa conclusão, mas sem a respectiva matéria de facto vir alegada na contestação, que "a inércia da recorrida contribuiu decisivamente para a falta de pagamento da mercadoria, pelo que o ressarcimento do prejuízo dá resultante não seria nunca imputável à recorrente, conforme art. 563, do CC".