JUS VARIANDI
REQUISITOS
Sumário

1. A lei não estabelece limites temporais à duração do ius variandi nem ao número de vezes em que o mesmo pode ser exercido por ano.

2. Por isso e salvo os casos de abuso de direito, o empregador pode usar daquela faculdade sempre que haja um interesse objectivo, sério e de natureza transitória.

4. Não tem aplicação ao ius variandi o prazo de seis meses previsto no n. 5 do art. 22. da LCT, que diz respeito aos casos de polivalência funcional.

4. A substituição de trabalhadores em férias e de baixa por doença constitui fundamento para o recurso ao ius variandi.

5. Por isso, o facto de determinado trabalhador ter substituído no decurso de três anos, durante várias vezes e por vezes durante largos períodos, trabalhadores naquelas situações não lhe confere o direito à categoria que aqueles trabalhadores detinham e que era superior à sua.

Texto Integral

Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" propôs a presente acção contra "B", S.A. pedindo que a ré fosse condenada:
a) a atribuir-lhe a categoria profissional de Operador Principal de Posto de Portagem, com efeitos a Maio de 1995;
b) a pagar-lhe a importância de 2.775.400$00 a título de diferenças salariais;
c) a pagar-lhe 414.349$00 de juros de mora vencidos até 28.12.2000 e demais que se vencerem até integral pagamento;
d) a pagar-lhe as diferenças salariais que se venham a vencer desde a data da propositura da acção até à data da regularização da situação remuneratória.

Alegou, em resumo, que, exercendo ao serviço da ré as funções correspondentes à categoria de Operador de Posto de Portagem, foi por ela incumbido de desempenhar com regularidade, desde 1995 a 14 de Janeiro de 1998, as funções de Operador Principal de Posto de Portagem, alegadamente em regime de substituição de colegas seus com aquela categoria. Que durante os períodos em que desempenhou as ditas funções, a ré pagou-lhe a retribuição do escalão mais baixo daquela categoria quando lhe devia ter pago a retribuição que era auferida pelo trabalhador alegadamente substituído. Acresce que o desempenho daquelas funções não pode ser caracterizado como se de mera substituição temporária se tratasse, uma vez que lhe foi atribuída a função de efectuar todas as substituições temporárias necessárias, tornando-se um profissional de substituições e que se o trabalhador encarregado de exercer acessoriamente outras funções tem direito a ser reclassificado ao fim de seis meses, nos termos do art. 22.º, n.º 5 da LCT, por maioria de razão se terá de entender que ele tem direito a ser reclassificado como Operador Principal de Posto de Portagem.

A ré contestou alegando que a situação se enquadra no ius variandi, dado que o autor apenas exerceu as funções de Operador Principal de Posto de Portagem durante determinados períodos fazendo-o em substituição de colegas que estavam de férias (8 vezes) ou de baixa por
doença (uma vez) e que durante esses períodos apenas exerceu aquelas funções.

Realizado o julgamento, a acção foi julgada improcedente, mas na Relação de Lisboa a ré foi condenada a reclassificar o autor na categoria de Operador Principal de Posto de Portagem desde a data em que perfez seis meses no exercício efectivo de tais funções e a pagar-lhe as diferenças salariais pertinentes, a liquidar em execução de sentença.

Inconformada com a decisão da Relação, a ré interpôs o presente recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
«1 - O Recorrido exerceu as funções de Operador Principal de Posto de Portagem", em todos os respectivos períodos de 1995 a 1998, virtude do exercício pela Recorrente do "jus variandi".
2. Relativamente a todos e cada um desses períodos foram observados todos os requisitos do "jus variandi ".
3 - O exercício, em exclusivo, pelo Recorrido, das funções correspondentes à categoria profissional de "Operador Principal de Posto Portagem", em todos e cada um daqueles períodos - porque fundado no "jus variandi" - não conferia, nem confere, àquele o direito à reclassificação profissional previsto no art. 22, n.º 5 da LCT.
4 - O Recorrido não tem o direito à sua reclassificação na categoria profissional de "Operador Principal de Posto de Portagem", nem a nenhuma das quantias ou valores peticionados ou a qualquer quantia a título de diferenças salariais.
5 - No douto Acórdão em recurso, foi incorrectamente aplicado o disposto no art. 22 do regime jurídico aprovado pelo D.L. n° 49408, de 24.11.1969, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 21/96, de 23 de Julho, bem como o estabelecido na cláusula 30.ª da aplicável convenção colectiva de trabalho - tendo sido violado o disposto nos arts. 22°, n.ºs 5, 7 e 8 e 23° desse mesmo regime jurídico.»

O autor contra-alegou defendendo o acerto da decisão recorrida e requerendo a ampliação do objecto do recurso, nos termos que adiante serão referidos.

Neste tribunal, a ilustre magistrada do M.º P.º emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, com a ressalva de que o direito à reclassificação só deve ser reconhecido a partir da data em que o autor perfez seis meses de exercício de funções de Operador Principal, depois da Lei n.º 21/96 ter entrado em vigor (1.12.96).

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos que este tribunal tem de acatar por não ocorrer nenhuma das situações previstas no n.º 2 do art. 722 e n.º 3 do art. 729 do CPC:

1) O A. foi admitido ao serviço da R. em 18 de Outubro de 1990 para, sob autoridade e direcção desta, lhe prestar a sua actividade profissional.

2) O A. tem atribuída a categoria profissional de Operador de Posto de Portagem, encontrando-se actualmente no Escalão C da tabela salarial.

3) O A. é filiado no Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, antes denominado Sindicato de Comércio, Escritórios e Serviços do Distrito de Lisboa, que é filiado na Fetese - Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores de Escritórios e Serviços.

4) O A., quando no exercício das funções correspondentes à categoria profissional de Operador de Posto de Portagem, desempenhou, ao serviço da R., as funções inerentes a essa categoria, tais como, a classificação e o registo de entrada de veículos nas auto-estradas, a cobrança das respectivas tarifas de portagem e o preenchimento de todo o expediente de apoio a essa actividade.

5) O exercício dessas funções apenas foi interrompido nos períodos em que o A. desempenhou a actividade correspondente à categoria profissional de Operador Principal de Posto de Portagem, por determinação da Ré.

6) Nesses períodos, o A. desempenhou apenas os serviços compreendidos nesta última categoria profissional, não cumulando tal desempenho com o exercício das funções para que foi contratado, nos termos da respectiva categoria.

7) As funções de Operador Principal de Posto de Portagem, desempenhadas pelo A., consistiam, designadamente, em supervisionar e coordenar o funcionamento das barreiras de portagem e dos meios humanos ali afectos bem como a organização e distribuição dos operadores de posto de portagem pelas respectivas cabines.
8) Tais funções foram desempenhadas em diferentes locais, tais como nas barreiras do Carregado, Aveiras e Vila Franca de Xira.
9) Em diversos períodos dos anos de 1995, 1996 e 1997.
10) Nomeadamente, nos dias:
- 19, 20, 23, 25 e 29 de Maio de 1995;
- 13 de Junho de 1995;
- 16 de Junho de 1995 a 5 de Agosto de 1995;
- 20 de Agosto de 1995 a 30 de Agosto de 1995;
- 1, 2, 6, 7, 12, 13, 17, 19, 22, 23, 24, 25 e 30 de Setembro de 1995;
- 1, 2, 3, 6, 7, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23 e 24 de Outubro de 1995;
- 6, 7, 8, 9, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 27 e 28 de Novembro de 1995;
- 1 e 6 de Dezembro de 1995;
- de 6 de Março de 1996 a 4 de Maio de 1996;
- de 11 de Maio de 1996 a 20 de Junho de 1996;
- de 27 de Junho de 1996 a 24 de Setembro de 1996;
- de 18 de Dezembro de 1996 a 19 de Março de 1997;
- de 18 de Abril de 1997 a 26 de Junho de 1997;
- de 17 de Julho de 1997 a 10 de Outubro de 1997;
- de 14 de Dezembro de 1997 a 6 de Janeiro de 1998.
11) No ano de 1995, o A. gozou férias como Operador Principal de Posto de Portagem.

12) A partir de Janeiro de 1998, a R. deixou de atribuir ao A. funções de Operador Principal de Posto de Portagem.

13) Durante os períodos em que o A. desempenhou funções de Operador Principal, a R. pagou-lhe a retribuição do escalão mais baixo dessa categoria.

14) A qual era superior à auferida pelo A. no exercício das funções contratualmente ajustadas.

15) O A. obteve as seguintes classificações de serviço:
- em 1995, entre 75% e 85%;
- em 1996, entre 50% e 70%;
- em 1997, entre 50% e 70%;
- e em 1998, entre 70% e 80%.

16) Tais classificações tiveram em conta apenas o seu desempenho como Operador de Posto de Portagem.
17) O A. auferiu as seguintes remunerações base:
- desde Janeiro/95, 91.200$00;
- desde Janeiro/96, 95.400$00;
- desde Janeiro/97, 105.000$00;
- desde Janeiro/98, 108.400$00;
- desde Janeiro/99,112.100$00;
- desde Janeiro/00, 115.900$00.

18) A R. pagou ao A., relativamente ao conjunto de períodos referidos em 9., a importância global de 706.573$00, a título de diferença entre a retribuição auferida pelo A. enquanto Operador de Posto de Portagem e a correspondente à classificação de Operador Principal de Posto de Portagem.

19) O exercício, pelo A., das funções correspondentes à categoria profissional de Operador Principal de Posto de Portagem, deveu-se à necessidade de substituição de trabalhadores da R. que, tendo essa categoria profissional, exerciam tais funções e se encontravam em gozo de férias.

20) E também para substituição de um trabalhador da portagem de Aveiras de Cima, durante o período em que o mesmo esteve impossibilitado de prestar serviço por se encontrar de baixa médica.

21) Tais mudanças de funções foram ordenadas pela R., que comunicou ao A. o fundamento das ordens emitidas.

22) A actividade correspondente à categoria profissional de Operador Principal de Posto de Portagem é - em cada barreira de portagem - prestada por cinco trabalhadores, um de cada vez em regime de turnos, tendo essa categoria e respectivas qualificações.
23) O exercício dessa actividade carece de aptidões específicas e da experiência resultante do exercício das funções correspondentes à categoria profissional de Operador de Posto de Portagem.

24) A R. também utiliza os períodos em que os trabalhadores que exercem regularmente as funções de Operador de Posto de Portagem possam estar a desempenhar funções de Operador Principal de Posto de Portagem, em regime de substituição, para aferir das aptidões daqueles para prestação dessa actividade, tendo em vista o futuro preenchimento de vaga, quando esta ocorrer e a consequente progressão do trabalhador.

25) O A. foi submetido a testes psicotécnicos já depois de ter iniciado o desempenho das funções referidas em 6. a 9..

26) O primeiro teste psicotécnico deu-o como inapto.

27) O segundo teste psicotécnico considerou-o aprovado com restrições.
28) Após ter feito, quer o primeiro, como o segundo teste, o A. continuou mais algum tempo a ser incumbido pela R. de executar as funções de operador principal de posto de portagem.

3. O direito
3.1 Do recurso da recorrente
Como resulta das conclusões apresentadas pela recorrente, objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o autor tem direito a ser reclassificado na categoria de Operador Principal de Posto de Portagem, por ter exercido essas funções durante largos períodos de tempo, nos anos de 1995, 1996 e 1997.

Mais concretamente trata-se de saber se aquelas funções foram legitimamente exercidas ao abrigo do chamado ius variandi que, como é sabido, se traduz na faculdade que a entidade empregadora tem de poder encarregar temporariamente o trabalhador de serviços não compreendidos no objecto do contrato, quando o interesse da empresa o exija, desde que não haja estipulação em contrário e desde que a mudança não implique diminuição na retribuição, nem modificação substancial da posição do trabalhador.

O ius variandi está legalmente consagrado no n.º 7 do art. 22.º da LCT (1), na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 21/96, de 23/7 e constitui uma excepção à regra geral expressa no n.º 1 do mesmo artigo nos termos do qual "o trabalhador deve, em princípio, exercer uma actividade correspondente à categoria para que foi contratado" e um desvio ao princípio pacta sunt servanda (art. 406.º do CC). Trata-se de uma função unilateral do empregador que encontra a sua explicação no princípio da mútua colaboração e que tem por objectivo satisfazer inesperadas e transitórias necessidades da empresa (2) .

Como resulta do n.º 7 citado, são cinco os requisitos a que está subordinado o recurso ao ius variandi:

a) que não haja convenção em contrário, isto é, é preciso que o recurso ao ius variandi não tenha sido afastado pelas partes em sede do contrato individual de trabalho e que não seja proibido pelo instrumento de regulamentação colectiva aplicável;

b) que o interesse da empresa assim o exija, isto é, é necessário que o recurso ao ius variandi tenha por fundamento um interesse sério e objectivo da própria empresa, ligado a ocorrências ou situações de natureza transitória, que não se confunda, portanto, com as meras conveniências pessoais do empregador;

c) que a alteração seja transitória, temporária, isto é, que seja para satisfazer necessidades esporádicas e não duradouras da empresa;

d) que a alteração não acarrete uma diminuição da retribuição nem uma modificação substancial da posição do trabalhador.

No caso em apreço, o autor e as instâncias não puseram em causa o preenchimento dos requisitos referidos nas alíneas a), b) e d) e, efectivamente, não há razão para ter dúvidas a tal respeito, dado que, conforme está provado, o recurso ao ius variandi teve por fundamento um interesse sério, objectivo e esporádico da empresa (a substituição de trabalhadores em gozo de férias e a substituição de um trabalhador em situação de baixa por doença), não implicou uma diminuição da retribuição nem uma modificação substancial da posição do trabalhador (o autor foi exercer funções de categoria superior à sua e recebeu a retribuição correspondente a essa categoria), sendo certo também que nada foi alegado ou provado acerca da existência de estipulação em contrário.

As dúvidas colocaram-se apenas relativamente ao requisito da transitoriedade da alteração, uma vez que no decurso de três anos (1995, 1996 e 1998) o autor tinha sido incumbido por diversas vezes de exercer funções de categoria profissional que não era a sua.
Na 1.ª instância entendeu-se que o exercício daquelas funções preenchia o requisito da transitoriedade, com o fundamento de que o autor não tinha estado permanentemente a executar as funções de Operador Principal de Posto de Portagem, mas a opinião da Relação foi diferente.

Na Relação entendeu-se que o exercício repetido e prolongado de funções de categoria superior dava direito a reclassificação profissional decorridos que fossem seis meses de exercício efectivo dessas funções, por analogia com o disposto no n.º 5 do art. 22.º da LCT, nos termos do qual o trabalhador que tenha sido incumbido de desempenhar actividades acessórias à da sua categoria profissional tem direito a ser reclassificado, após seis meses de exercício dessas actividades, no caso de às actividades acessoriamente exercidas corresponder retribuição mais elevada.

No que ao caso interessa, a fundamentação da Relação foi a seguinte:
«Sendo certo que a lei não prevê que a transitoriedade do exercício de funções superiores no âmbito do jus variandi confira o direito a reclassificação profissional, porque, como refere Monteiro Fernandes (3) , "essa transitoriedade é incompatível com a sedimentação de um novo status profissional", se, como sucedeu no caso (cfr. pontos 9, 10 e 11 da matéria de facto), isso ocorre com relativa frequência e, diversas vezes, por períodos que se prolongam (repetidamente) por dois a três meses, afigura-se-nos não ser descabida a forma como o A. colocou a questão na petição - a sua utilização como um autêntico "profissional de substituições"- e designadamente se, por maioria de razão, não se lhe deverá aplicar o preceituado pelo n.º 5 do art. 22.º da LCT para os casos de polivalência funcional.

Com efeito, sendo indiscutível que não estamos perante um caso de polivalência funcional - em que o desempenho da função normal do trabalhador se mantém como actividade principal, mas acessoriamente o mesmo pode ser encarregue de desempenhar outras actividades para as quais tenha qualificação e capacidade e que tenham afinidade ou ligação funcional com a função normal, mesmo que não se compreendam na definição da categoria - o uso reiterado ao longo de quase três anos e, algumas vezes, por períodos prolongados de dois a três meses, da actividade do A. em funções não compreendidas no objecto do respectivo contrato, mas correspondentes a categoria superior, parece-nos idóneo a criar expectativas de acesso a tal categoria, merecedoras de tutela. E, se esse direito é reconhecido nos casos de polivalência funcional, relativamente a uma função acessória, após seis meses de exercício cumulativo com as funções normais, parece-nos que, como argumentava o A. na p. i., por maioria de razão se justifica que idêntico direito seja reconhecido, quando a função superior é exercida, não em termos acessórios, mas em exclusividade, por períodos sucessivos, quando o respectivo cômputo global ultrapassa os seis meses. Afigura-se-nos que se verificam as mesmas razões justificativas.

Como refere Monteiro Fernandes na sequência da passagem anteriormente citada "... a experiência mostra que, em muitos casos, tais situações (de transitoriedade) se alongam no tempo sem limite pré-definido. Nesses casos, cremos que será pertinente a aplicação analógica do regime de reclassificação estabelecido no art. 22 n. 5."

O caso em apreço é precisamente um daqueles em que a aplicação analógica do disposto no n.º 5 do art. 22 da LCT se impõe, pelo que, com esse fundamento, entendemos dar razão ao apelante e revogar a sentença nessa parte e, em substituição, julgar procedente o pedido de reclassificação do A. como Operador Principal, não com efeitos reportados a Maio de 1995, como pedido, mas a partir do momento em que o A. perfez seis meses de exercício efectivo de tais funções e a pagar-lhe as diferenças retributivas correspondentes, a liquidar em execução de sentença.»

Será correcta a decisão da Relação?

Salvo o devido respeito, entendemos que não. Por duas razões. Em primeiro lugar, por considerarmos que a aplicação, por analogia, do disposto no n. 5 do art. 22 ao ius variandi não tem cabimento. Em segundo lugar, por entendermos que a lei não estabelece qualquer limite ao número de vezes a que o empregador pode recorrer àquela faculdade. Vejamos.

Como é sabido, o recurso à analogia só é admissível quando haja lacuna da lei e quando no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso análogo previsto na lei (art. 10 do CC). Ora, salvo o devido respeito, não há na lei qualquer lacuna relativamente ao regime do ius variandi, uma vez que o exercício daquele direito se encontra devidamente regulamentado. É verdade que a lei não prevê as consequências do recurso ilegítimo ao ius variandi; não prevê, por exemplo, o direito à reclassificação nem estabelece um limite temporal para o desempenho de funções não compreendidas no objecto do contrato, ao contrário do que acontece nos casos do exercício de funções acessórias (polivalência funcional).

Todavia, isso não significa necessariamente que estejamos perante uma regulamentação lacunosa no que toca àqueles pontos, pois pode bem acontecer que essa "falta" de regulamentação corresponda precisamente a uma vontade legislativa de não reconhecer ao trabalhador o direito à reclassificação. E, tendo o legislador reconhecido o direito à reclassificação nos casos de polivalência de funções, quando tal desempenho se prolongue por mais de seis meses (4), é de concluir que ele não quis adoptar idêntica solução para os casos de recurso indevido ao ius variandi, pois se o tivesse querido tê-lo-ia dito certamente.

Aliás, compreende-se que a solução não seja igual, uma vez que as situações também não são iguais, dado que, no ius variandi, o desempenho de funções não compreendidas no objecto do contrato é necessariamente temporário, enquanto que na polivalência funcional é, pelo menos tendencialmente, definitivo (se o fundamento da polivalência for transitório, estaremos perante um caso de ius variandi). Na polivalência funcional é o carácter definitivo do desempenho das funções acessórias (ao fim de seis meses, a lei presume que assim é) que justifica a reclassificação profissional, mas mesmo assim ela só terá lugar com o acordo do trabalhador. No ius variandi, essa razão não existe e, por isso, ainda que se entendesse que havia lacuna da lei no que toca à regulamentação do ius variandi, não seria lícito lançar mão do prazo de seis meses previsto no n. 5 do art. 22, dado que no ius variandi não procedem as razões justificativas da reclassificação nos casos de polivalência funcional (art. 10, n. 2, do CC).

Afastada, assim, a aplicação analógica do regime da polivalência funcional, importa analisar a situação em apreço exclusivamente no âmbito do regime do ius variandi. E começaremos por realçar que a lei limita-se a dizer que a alteração de funções deve ser temporária. Di-lo no n.º 7 do art. 22 e repete-o no n.º 8 do mesmo artigo (5). Todavia, não fixa um limite temporal e compreende-se porquê, uma vez que esse limite está dependente do fundamento que legitimou o recurso ao ius variandi. Assim, se o motivo for a substituição de um trabalhador que entrou de gozo de férias, o recurso ao ius variandi fica limitado ao período de férias desse trabalhador, mas se o motivo do recurso ao ius variandi tiver sido a substituição de um trabalhador que entrou de baixa por doença, o limite passa a ser indefinido (6). Não faria sentido, por isso, que o legislador, perante a multiplicidade diversidade das situações susceptíveis de justificar o recurso ao ius variandi, tivesse estabelecido um limite temporal para o exercício daquele direito.

Por outro lado, a lei também não estabelece qualquer limite quanto ao número de vezes que a entidade empregadora poderá recorrer ao ius variandi e, sendo assim, ela poderá fazê-lo sempre que para tal ocorra motivo justificativo válido, ressalvando naturalmente as situações em que haja abuso de direito.

Posto isto e revertendo ao caso em apreço, constatamos que o recorrido, nos anos de 1995, 1996 e 1997, foi sujeito ao ius variandi por várias vezes e, às vezes, por períodos seguidos de três meses (vide facto n.º 10), mas constatamos também que de todas as vezes houve um motivo sério, objectivo e transitório da empresa a justificar o recurso àquela faculdade, que foi a necessidade de substituir trabalhadores com a categoria de Operador Principal de Posto de Portagem que estavam de férias e a necessidade de substituir um trabalhador com aquela categoria que se encontrava de baixa por doença (vide factos n.º 19 e 20).

Trata-se, sem dúvida, de motivos objectivos que visavam satisfazer interesses sérios da própria empresa, de cariz obviamente transitório e de que o recorrido foi devidamente informado (vide facto n.º 21).

É verdade que, no cômputo geral, o recorrido esteve sujeito ao ius variandi durante largos meses, nos anos de 1995, 1996 e 1997 (vide facto n.º 10) e a Relação foi sensível a esse facto, mas, como já dissemos, a lei não estabelece qualquer limite ao número de vezes a que o empregador pode fazer uso do ius variandi. O que importa, como já dissemos, é que o recurso a essa faculdade tenha subjacente a satisfação de um interesse objectivo e transitório da empresa, o que no caso aconteceu, e que a situação não configure um caso de abuso de direito, o que não vislumbramos que tenha acontecido.

Finalmente, não deixa de ser sintomático que o Acordo de Empresa actualmente em vigor não reconheça o direito a reclassificação nem estabeleça qualquer limite temporal ao ius variandi com fundamento na substituição de trabalhadores mais qualificados, mesmo nos casos em que a substituição vem sendo feita com regularidade, limitando-se apenas a atribuir-lhes um direito de preferência no preenchimento das vagas que ocorram para essas funções (7).

Face ao exposto, concluímos pela procedência do recurso da ré.
3.2 Da ampliação do objecto do recurso
Como já foi referido, nas contra-alegações o autor, ora recorrido, veio requerer a ampliação do objecto do recurso, ao abrigo do disposto no art. 684-A do CPC. O recorrido pretende que se aprecie um dos fundamentos que invocou no recurso de apelação por ele interposto e de que a Relação não tomou conhecimento, por entender que eram questões novas, qual seja o de que no desenvolvimento da relação laboral terá sido celebrado um aditamento ao seu contrato de trabalho, nos termos do qual ele passaria, no futuro e sem carácter temporário, a exercer as funções de Operador Principal de Posto de Portagem sempre que tal fosse necessário substituir os trabalhadores titulares dessa categoria.

Acontece, porém, que, ainda que se entendesse que a questão assim colocada já havia sido suscitada na petição inicial (como alega recorrido), a mesma não podia proceder, por lhe faltar o indispensável substracto factual. Com efeito, competia ao autor alegar e provar a existência das declarações negociais em que se teria traduzido o referido aditamento ao contrato de trabalho, o que manifestamente não conseguiu, uma vez que o silêncio da matéria de facto dada como provada a tal respeito é absoluto.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedente a revista, revogar o acórdão da Relação e absolver a ré do pedido.
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2005
Sousa Peixoto,
Vítor Mesquita,
Fernandes Cadilha.
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(1) - "7. Salvo estipulação em contrário, a entidade patronal pode. Quando o interesse da empresa o exija, encarregar temporariamente o trabalhador de serviços não compreendidos no objecto do contrato, desde que tal mudança não implique diminuição na retribuição, nem modificação substancial da posição do trabalhador."
(2) - Vide Bernardo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 2.ª ed., Verbo, pag. 329 e Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, , pag. 580).
(3) - Direito do Trabalho, 10.ª ed., pag. 198)

(4) - Vide n.º 2 e 5 do art. 22.º da LCT, cujo teor é o seguinte:
"2. A entidade patronal pode encarregar o trabalhador de desempenhar outras actividades para as quais tenha qualificação e capacidade e que tenham afinidade ou ligação funcional com as que correspondem à sua função normal, ainda que não compreendidas na definição da categoria respectiva.
(...)
5. No caso de às actividades acessoriamente exercidas corresponder retribuição mais elevada, o trabalhador terá direito a esta e, após seis meses de exercício dessas actividades, terá direito a reclassificação, a qual só poderá ocorrer mediante o seu acordo."
(5) - "8. Quando aos serviços temporariamente desempenhados, nos termos do número anterior, corresponder um tratamento mais favorável, o trabalhador terá direito a esse tratamento."
(6) - Veja-se o acórdão do STJ de 16.6.93 (CJ - Acs do STJ -, ano 1993, pag. 297) que julgou válido o ius variandi com duração de quatro anos e meio.
(7) - Cláusula 30.ª, n.º 3, do AE publicado no BTE n.º 17, de 1999:
"3. Os trabalhadores que venham substituindo temporariamente e com regularidade titulares de funções mais qualificadas terão prioridade no preenchimento de vagas que ocorram para essa funções."