CONTRATO DE EMPREITADA
PAGAMENTO
CHEQUE
ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
DENOMINAÇÃO SOCIAL
Sumário

I - Os documentos particulares, tal como os cheques, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor na medida em que forem contrárias aos interesses deste (artigo 376, n.os 1 e 2, do Código Civil), desde que satisfaçam os requisitos previstos nos artigos 373 e segs., estando a sua força probatória, fora desses limites, sujeita à livre apreciação do tribunal (artigo 366);

II - Controvertendo-se o pagamento do preço de empreitada mediante cheques com base nos quais - além de factos compreendidos nas declarações dos donos da obra sacadores, tais como, os nomes do sacado e da empreiteira tomadora, a data da emissão, o montante pagar, a assinatura dos emitentes - foram ainda considerados provados pelas instâncias, em exercício de livre convicção probatória e mercê de presunção judicial, a partir de elementos inseridos no verso dos títulos, os factos da apresentação a pagamento e da satisfação deste pelo sacado à empreiteira portadora, improcede a impugnação nesta parte da decisão de facto perante o tribunal de revista, por se tratar de matéria alheia à competência deste, definida nos artigos 722, n. 2, e 729, n.º 2, do Código de Processo Civil;

III - Falece inclusivamente a objecção da empreiteira recorrente segundo a qual não pode ser considerada beneficiária de quatro cheques em que figuram no lugar do tomador, respectivamente, as denominações REMCO, RENCO, REMCO e REMKO, Lda., sendo a sua denominação social A, quando é notório o uso bancário e comercial de similares abreviaturas de denominações societárias, e qualquer das enunciadas apresenta exactamente a mesma expresssão fonética do elemento principal da sua, conquanto não reproduzida através da ortografia devida;

IV - Merece igualmente rejeição o argumento subsidiariamente aduzido pela recorrente no sentido de impender sobre os réus o ónus da prova, por eles incumprido, de que o pagamento dos cheques à empreiteira teve lugar a título de pagamento do preço, e não a diverso título, posto que a falta de cumprimento dos donos da obra constituiria então facto constitutivo do direito da autora, à qual competiria por isso o respectivo ónus probatório (artigo 342, n.º 1, do Código Civil), resolvendo-se na prova de que a emissão dos cheques deveria ser imputada numa outra concreta obrigação, o que nem sequer alegou;

V - A decisão da Relação emitida ao abrigo do n.º 3 do artigo 659, por remissão do n.º 2 do artigo 713 do Código de Processo Civil, em função de um julgamento de facto a que nesse momento deve haver lugar, cuja natureza se afere pelos termos do primeiro normativo citado, não se encontra estritamente vinculada ao domínio factual definido pela especificação e as respostas ao questionário;

VI - É o caso da decisão de aditamento da matéria de facto à sombra do n. 3 do artigo 659, mediante a qual a Relação considerou provado, por confissão escrita da empreiteira autora na petição inicial, ter esta recebido dos réus donos da obra determinados adiantamentos a título de preço da empreitada;

VII - Improcede, por conseguinte, a impugnação desta decisão a pretexto de que tal matéria, além de ter sido vertida num quesito que mereceu a resposta «não provado», nem sequer constava da alegação da apelação e suas conclusões, sendo consequentemente interdito o seu conhecimento, sob pena da nulidade tipificada na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668, por haver transitado em julgado;

VIII - A declaração «votei a decisão», emitida pelos juízes adjuntos na assinatura do acórdão sob revista, compreende uma pluralidade indeterminada de significações que inviabiliza, sem mais, apurar a acepção que assume no caso concreto;

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "A" - Remodelações e Construções, Lda., com sede em Oeiras, instaurou no tribunal dessa comarca, em 12 de Outubro de 1999, contra B e esposa, C, residentes em Lisboa, acção ordinária tendente a obter o pagamento de parte do preço ainda em dívida da obra de remodelação do rés-do-chão, pertencente aos réus, de prédio na Rua da Emenda em Lisboa, levada a efeito pela demandante em cumprimento de contrato de empreitada com eles celebrado em Julho de 1994, pelo preço, inicialmente estimado sem prejuízo de alterações posteriores, de 10.554.985$00.

A execução da empreitada teve início em Agosto de 1994, e concluída esta em 2 de Agosto de 1996, o seu custo total, abrangendo todos os trabalhos e materiais não orçamentados, solicitados pelos donos da obra, atingiu, conforme os autos de medição a estes apresentados, o quantitativo global, com IVA, de 17.475.142$00.

Como os demandados fizeram adiantamentos por conta no valor de 10.340.000$00, restam em dívida 7. 135.142$00.

Pede consequentemente a condenação dos réus a pagarem este montante, acrescido de juros moratórios desde 2 de Agosto de 1996, data da aceitação da obra (artigo 1211, n.º 2, do Código Civil), à taxa legal das dívidas comerciais (15% até 16 de Abril de 1999, e 12% daí em diante - artigo 102.º, § 3.º, do Código Comercial e Portaria n.º 262/99, 12 de Abril), até integral pagamento.

Contestaram os réus por impugnação, alegando terem pago à autora 11.070.000$00, mais que os trabalhos efectivamente autorizados e executados, tendo a empreiteira abandonado a obra sem a ultimar. Responsabilizam-na ademais pelos prejuízos resultantes do não licenciamento municipal da obra, deduzindo em reconvenção o pedido de condenação da autora na indemnização a liquidar em execução.

Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final em 24 de Junho de 2002, que julgou improcedentes acção e reconvenção. A acção, por falta de prova de que a obra já foi aceite pelos réus, facto de que depende a obrigação de pagamento do preço e o início da mora; e ainda por se ter provado que os donos da obra pagaram à autora o quantitativo de 10.640.061$00, superior ao total orçamentado, sem que a empreiteira tenha logrado provar a realização de trabalhos em valor superior a 6.842.562$30. A reconvenção por falta de prova de factos que permitam responsabilizar a autora quanto à não obtenção do licenciamento municipal.

Apelou a autora sem sucesso, tendo a Relação de Lisboa, com nuances de fundamentação, confirmado a sentença de improcedência da acção.

2. Do acórdão neste sentido proferido, em 27 de Fevereiro de 2003, traz a autora a presente revista, sintetizando a respectiva alegação nas conclusões que se reproduzem:

2.1. «As cópias dos cheques juntas aos autos (documentos particulares) não constituem prova plena de que os recorridos efectuaram o pagamento da empreitada à recorrente. O douto acórdão proferido em sentido contrário violou a disposição do artigo 376, n. 1, e n.° 2, do Código Civil. Nos termos do n. 1 da referida disposição, apenas constituem prova plena, as declarações do autor dos documentos particulares e não o conteúdo dessas declarações;

2.2. «Na medida em que são contrárias ao interesse dos declarantes, as declarações contidas naqueles documentos particulares, devem considerar-se como provadas e nesse sentido a conclusão a extrair será de que o beneficiário dos cheques não é a recorrente porque não é a sua denominação que ali consta. O douto acórdão, no que se refere às citadas declarações, fez interpretação errónea do seu sentido, violando o disposto nos artigos 376, n.° 2, e 236, n.° 1, ambos do Código Civil;

2.3. «A matéria de facto não compreendida no objecto do recurso, transitou em julgado, pelo que, em sede de recurso, está vedado ao tribunal tomar conhecimento dela. O douto acórdão alterou a matéria de facto não compreendida no objecto do recurso o que constitui causa de nulidade conforme o artigo 668, n.° 1, alínea d), ex vi do artigo 716 do Código de Processo Civil.
«Termos em que, deverá ser dado provimento à revista e consequentemente, deverá:
- alterar-se o douto acórdão no sentido de considerar não provada a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 729, n. 2, parte final, e artigo 722, n. 2, do Código de processo Civil;
- ser decretada a nulidade do acórdão na parte que alterou a matéria de facto.»

3. Os réus recorridos contra-alegam, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.

E o objecto da revista, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, compreende as seguintes questões:
a) a de saber se foi pago o preço da empreitada, maxime através dos cheques cujas cópias se encontram juntas aos autos, adiante descritos, em termos de se justificar a improcedência da acção de cumprimento do contrato;
b) e a de saber se a Relação alterou a decisão de facto extravasando do objecto da apelação, de forma a incorrer na nulidade tipificada na segunda parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, a qual, devendo aqui manter-se inalterada, se transcreve não obstante a título de elucidação:

1.1. «A autora dedica-se à actividade de prestação de serviços de remodelação e reparação de edifícios [alínea A) da especificação];

1.2. «No exercício dessa actividade, em Julho de 1994, a autora. acordou com os réus em proceder à remodelação da fracção sita na Rua da Emenda, n.s 2 a 20, em Lisboa, mediante o pagamento de uma retribuição [alínea B)];

1.3. «Em 4 de Agosto de 1994, a autora apresentou aos réus o ‘orçamento’ dos trabalhos a realizar, constante de fls. 5 a 7 dos autos, no montante de 10.554.985$00 [C)];

1.4. «Em 15 de Novembro de 1995 foi elaborado o 2.° ‘auto de medição’ da obra, correspondente à verificação da quantidade de trabalhos realizados até então e respectivo valor, num total de 6.842.562$30 [D)];

1.5. «Com data de 4 de Novembro de 1994, B emitiu o cheque n.° 2048883248, sobre a conta n.° 0005877231 do B.C.P., no valor de 2.000.000$00, a favor da autora, o qual foi apresentado a pagamento em 8 de Novembro de 1994 e satisfeito pela instituição sacada (resposta ao quesito 56.°);

1.6. «Com data de 3 de Fevereiro de 1995, B emitiu o cheque n.° 2073684984, sobre a conta n.° 0005877231 do B.C.P., no valor de 3.340.061$00, a favor da autora, o qual foi apresentado a pagamento em 26 de Fevereiro de 1995 e satisfeito pela instituição sacada (quesito 56.°);

1.7. «Com data de 20 de Dezembro de 1995, B emitiu o cheque n.° 2076959995, sobre a conta n.° 0005877231 do B.C.P., no valor de 3.300.000$00, a favor da autora, o qual foi apresentado a pagamento em 29 de Dezembro de 1995 e satisfeito pela instituição sacada (56.°);

1.8. «Com data de 30 de Maio de 1995, B emitiu o cheque n.° 2048431616, sobre a conta n.° 0005877231 do B.C.P., no valor de 1.000.000$00, a favor da autora, o qual foi apresentado a pagamento e satisfeito pela instituição sacada (56.°);
1.9. «Com data de 30 de Julho de 1996, C emitiu o cheque n.° 9784240039, sobre a conta n.° 00088408129 da Nova Rede, no valor de 1.000.000$00, a favor da autora (56.).»

2. Além dos factos descritos, a Relação de Lisboa aduziu ter a autora recorrente articulado no artigo 15.º da petição inicial que os réus lhe fizeram adiantamentos no montante de 10.340.000$00 - como também salientámos no intróito -, alegação que, consubstanciando confissão por parte da autora do pagamento desta importância, considerou assente, acrescentando ao elenco dos factos provados, nos termos dos artigos 352 do Código Civil, e 659, n.º 3, aplicável por força do artigo 713, n.º 2, do Código de Processo Civil, o facto confessado, a saber, justamente, que «os réus fizeram adiantamentos à autora no montante de 10.340.000$00» (1)
3. Tendo presente a factualidade aludida, à luz do direito aplicável, o acórdão sob recurso, para além de outras questões não reeditadas na revista de que por isso não nos ocuparemos, apreciou e decidiu desfavoravelmente a impugnação da matéria de facto deduzida pela autora na apelação, concluindo pela confirmação da decisão de improcedência da acção emitida na sentença, em termos que importa ponderar.
3.1. Pretendia a apelante que os factos referidos supra, II, 3.5. a 3.9. (fls. 137/145) fossem dados como não provados, uma vez que os cheques não podiam ter sido recebidos pela autora apelante, por tal não resultar dos títulos - com excepção do 3.º cheque, alega, «o beneficiário indicado nos cheques não é a apelante», visto figurarem como tal no 1.º e 4.º a REMCO, no 2.º a RENCO e no último a "A", Lda., razão pela qual, «com base na análise dos cheques, só por si, é impossível determinar se foram pagos e a quem» -, e ainda por estes não se encontrarem endossados.

Ora, analisando a Relação os documentos em apreço, verificou, e pode realmente constatar-se, que os 4 primeiros (3.5., 3.6 ,3.7. e 3.8.) são fotocópias certificadas pelo banco sacado, não possuindo o 5.º (3.9.) qualquer certificação. Por outro lado, os 3 primeiros cheques (fls. 137/142) foram depositados na conta n.º 9230230 do banco sacado, sem endosso da autora, «o que desde logo pressupõe - observa - que tal conta lhe pertence», e que o 4.º cheque (fls.143) foi efectivamente endossado por esta a terceiro, como se vê do verso (fls. 144), onde consta a menção «Por A», subscrita com assinatura idêntica àquela que foi aposta nos 3 cheques depositados na aludida conta.

Dúvidas, portanto, não restam - infere o acórdão recorrido - de que os cheques de fls. 137/144 «foram apresentados a pagamento, não tendo nenhum deles sido devolvido por falta de provisão, uma vez que, se tal ocorresse, os mesmos não ficariam em poder do banco sacado que os certificou, antes seriam devolvidos ao beneficiário com a aposição do correspondente carimbo de falta de provisão».

Nos termos expostos, «os cheques foram emitidos a favor da apelante, sua beneficiária», carecendo por isso de razão a alegada impossibilidade de recebimento dos respectivos quantitativos por não estarem endossados, quando flui «do artigo 14.º da Lei Uniforme» que «o endosso é uma forma de transmissão do cheque», sendo, todavia, certo que «o beneficiário não tem de o endossar para receber o seu montante».
3.2. Em suma. A autora alegara confessadamente ter recebido adiantamentos dos réus donos da obra no valor de 10.340.000$00, opondo estes ter pago 11.070.000$00 (artigo 40.º da contestação).

A questão passou para o quesito 56.º, numa interrogação - «Os réus pagaram à autora a quantia de 11.070.000$00?» - que recebeu a resposta «Provado o que consta dos cheques documentados de fls. 137/145» (2), aliás objecto de desconstrução analítica pelas instâncias, observamos nós, mediante os factos há pouco extractados em II, 1.5./1.9.

Daí que a Relação, considerando por um lado a confissão da autora concernente aos adiantamentos no quantitativo de 10.340.000$00, e, por outro lado, que quatro dos cheques emitidos (1.5. a 1.8.), mostrando-se pagos a favor dela, perfazem só por si a quantia de 9.640.061$00, tenha nesta parte entendido que a resposta ao quesito 56.º se mostra correcta, recusando a pretendida alteração da respectiva matéria de facto.

E, neste conspecto, ponderando ademais que o valor provado das obras realizadas pela empreiteira recorrente, ou seja, 6.842.562$30 (supra, II, 1.4.), é inferior ao montante entregue pelos donos da obra demandados - seja na perspectiva dos adiantamentos, seja na óptica dos quatro cheques, permita-se observar -, concluiu pela confirmação da decisão de improcedência da acção determinada na sentença.

4. Assim julgou o acórdão sub iudicio de forma a concitar inteira concordância, quer no tocante à decisão, quer no tocante aos fundamentos - em cuja análise deliberadamente nos alongámos a fim de melhor se aferir da adesão que merecem -, para os quais se remete, nos termos do n.º 5 do artigo 713 do Código de Processo Civil, negando-se provimento à revista.

E isto conquanto o acórdão se apresente subscrito pelos Ex.mos Adjuntos com a menção «votei a decisão», cujo significado não é, aliás, possível determinar (3) ..

5. Duas ordens de objecções à improcedência da acção sobressaem, todavia, nas conclusões da alegação da revista, pesem dificuldades de inteligibilidade da argumentação da recorrente.

5.1. Por um lado, esta persiste em sustentar que a matéria de facto deve ser alterada com o seguinte raciocínio.

O que no tocante aos cheques aludidos nos autos se encontra plenamente provado, à luz do artigo 376, n.s 1 e 2, do Código Civil, «é o nome do banco sacado, o nome do beneficiário, data da emissão dos cheques, montante a pagar e assinatura do sacador».

Tudo o mais considerado provado supra, II, 1.5. a 1.9. - maxime que os cheques 1.5. a 1.7. foram apresentados a pagamento e satisfeitos pelo banco sacado - tudo o foi, por conseguinte, em violação dos citado normativos (cfr. a 1.ª conclusão da alegação da revista).

Por outro lado, observa a recorrente que a análise das fotocópias dos cheques mostra serem tomadores de quatro deles, respectivamente, a Remco (1.5.), RENCO (1.6.), REMCO (1.8) e ..., Lda. (1.9.), quando a denominação da autora é "A" - Remodelações e Construções, Lda., não sendo por isso esta a beneficiária dos mesmos (conclusão 2.ª).

Desconhece-se, portanto, «se os montantes neles inscritos foram pagos à autora», afirma esta no corpo da alegação. E mesmo que se entendesse que o foram - prossegue - «ficávamos sem saber se o foram a título de pagamento da empreitada dos autos ou a qualquer outro título», sendo certo impender sobre os réus o ónus probatório, que não cumpriram, de que se tratou de solver o preço da obra.

Quid iuris?

Como se sabe, os documentos particulares, tal como os questionados cheques, provam plenamente quanto às declarações atribuídas ao seu autor na medida em que forem contrárias aos interesses deste (artigo 376, n.s 1 e 2, do Código Civil), desde que satisfaçam aos requisitos previstos nos artigo 373 e seguintes. Fora destes limites a sua força probatória está sujeita à livre apreciação do tribunal (artigo 366). E as fotocópias dos cheques, cuja exactidão não foi impugnada pela autora, provam plenamente os cheques que representam (artigo 368).

Pois bem. Em resposta ao quesito 56 - acolhida por desconstrução, como dissemos, nos pontos de facto supra, II, 1.5. a 1.9. - considerou-se provado, justamente, «o que consta dos cheques» sub iudicio.

Mas destes não constam apenas os elementos referidos pela recorrente como plenamente provados nos termos do artigo 376, n.os 1 e 2, senão também os elementos que figuram nos versos dos cheques, que a autora desconsiderou, mas com base nos quais, em exercício de livre convicção probatória e mercê de presunção judicial - de modo nenhum, se bem pensamos, por aplicação dos citados normativos -, deram as instâncias como provados os demais factos da apresentação a pagamento e da satisfação deste pelo banco sacado.

Aspectos factuais assim excluídos do âmbito da aplicação do artigo 376, e, por consequência, alheios à competência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de facto, definida nos artigos 722, n. 2, e 729, n. 2, do Código de Processo Civil.

Sem quebra da consideração devida, não assiste, pois, à recorrente sombra de razão, na sua de pretender a alteração da decisão acerca destes factos, de forma a que os consideremos não provados ao abrigo dos mencionados preceitos.

O que, porém, não julgávamos à sua altura é o argumento acerca das denominações no lugar do tomador dos cheques, sendo como é notório o uso bancário e comercial de similares abreviaturas de denominações societárias. E quando, ainda, qualquer das enunciadas pela recorrente tem exactamente a mesma expressão fonética no tocante ao elemento principal, conquanto ao que parece não reproduzida com a devida ortografia constante quiçá do Registo Nacional de Pessoas Colectivas e do Registo Comercial.

Num dos aludidos cheques, inclusivamente, o que a recorrente lê como RENCO, pode, se bem se vir, ler-se como REMCO sem esforço de maior.

Salvo o devido respeito, também a autora recorrente podia igualmente ter omitido a ideia de que os cheques podem não se ter destinado a solver o preço da empreitada, quando este é um entendimento que implicitamente - quando não explicitamente - perpassa todos os articulados e decisões proferidas no processo, e sem do mesmo passo elucidar a recorrente que outras obrigações, em contraponto, poderiam ser objecto da imputação de pagamento consubstanciada na emissão dos títulos.

Aliás, a recorrente pretende que competia aos réus a prova dessa imputação no preço da empreitada, sem acrescentar outro fundamento.

Propendemos, todavia, a pensar que a falta de cumprimento por parte do dono da obra, no que redundaria a alegação da recorrente, constituiria antes facto constitutivo do direito da autora, à qual incumbiria por isso o respectivo ónus probatório (artigo 342 do Código Civil) (4), redundando no caso em provar que a emissão dos cheques deveria ser imputada a uma outra obrigação, o que nem sequer alegou.

5.2. A segunda ordem de objecções da recorrente à improcedência da acção concerne ao aditamento de matéria de facto pela Relação, considerando provados por confissão os adiantamentos do réu a seu favor, a título de preço da empreitada, no quantitativo global, como sabemos, de 10.340.000$00.

Pondera, neste conspecto, que tal matéria foi levada ao quesito 18.º, que mereceu a resposta «não provado», não constava da alegação da apelação e suas conclusões, sendo interdito à Relação conhecer dela, visto que transitou em julgado, pelo que incorreu na nulidade sancionada pela alínea d) do n.º 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil (conclusão 3.ª).

Salvo o devido respeito, não propendemos também aqui, tudo ponderado, a aderir à concepção exposta.

Como houve o ensejo de salientar, a Relação de Lisboa deu como provado o facto aludido, mercê de confissão escrita, ao abrigo do n.º 3 do artigo 659, aplicável por força do n.º 2 do artigo 713 do citado compêndio legislativo.

Não se tratou, por conseguinte, de uma «modificabilidade da decisão de facto» operada nos termos do artigo 712, em obediência aos pressupostos de cognição definidos neste normativo, o que aliás consequenciaria, se assim fosse, a insindicabilidade perante o Supremo da decisão adrede proferida, conforme o n.º 6 do artigo, aqui aplicável atendendo à data da instauração do presente processo.

Tratando-se ao invés do n. 3 do artigo 659, o que está em causa é exactamente um julgamento de facto, sentido em que não podem efectivamente deixar de ser valorados pelo intérprete os termos do preceito, ao estipular dever o tribunal na fundamentação tomar «em consideração os factos admitidos por acordo, por documentos ou por confissão escrita» - além dos que o tribunal colectivo, sendo caso disso, deu como provados -, fazendo para o efeito «o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer» (5) ..

Deve, por consequência, haver lugar no momento a um julgamento de facto, não se encontrando a Relação, conforme o entendimento corrente, estritamente confinada ao perímetro factual definido pela especificação e as respostas ao questionário.

E não vemos como censurar o mérito desse julgamento, quer na óptica, portanto, do artigo 668, n.º 1, alínea a), quer factualmente na perspectiva do artigo 722, n. 2.
III
Na improcedência, por todo o exposto, das conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pela autora recorrente (artigo 446 do Código de Processo Civil).

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) O artigo 15.º do petitório - inserido em sequência dos artigos 9.º a 14.º, nos quais a autora articula os custos parcelares da empreitada em curso, consoante alegados autos de medição totalizando 17.475.142$00 - é do seguinte teor: «Os réus fizeram adiantamentos por conta no montante total de 10.340.000$00, pelo que falta liquidar o montante de (17.475.142$00 - 10.340.000$) 7.135.142$00». É, pois, indubitável que a confissão da autora tem por objecto o recebimento da aludida importância como parte do preço da empreitada, e não a qualquer outro título.
(2) Resposta que teve por base, como se lê na fundamentação do tribunal (fls. 194 verso), exactamente «a valoração dos documentos de fls. 137/145», não tendo de resto sido produzida em audiência qualquer outra prova
(3) Acerca do sentido da exigência «sem qualquer declaração de voto» vertida no n.º 5 do artigo 713, aspecto que aqui não releva directamente, cfr., todavia, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de Outubro de 2003, na revista n.º 327/03, 2.ª Secção (ponto III, 3.1.)
(4) Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações m Geral, vol. II, 7.ª edição (Reimpressão da 7.ª edição - 1997, Almedina, Coimbra, Julho de 2001, pág.101.
(5) Na orientação em que nos situamos, cfr. o acórdão, de 12 de Fevereiro de 2004, revista n. 1414/03, 2.ª Secção.