PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÃO DE CULPA
EMPREITADA
EMPREITEIRO
SUBEMPREITADA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
COMISSÃO
COMISSÁRIO
COMITENTE
RESPONSABILIDADE CIVIL DO COMITENTE
Sumário

I - O terem as instâncias entendido que não havia sido ilidida a presunção de culpa é um problema de fixação da matéria de facto através de conclusão, que é insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.
II - Mesmo que a obra seja realizada pelo subempreiteiro, se essa realização causar danos a terceiros, é por ela responsável o empreiteiro, nos termos do artº 493º nº 1 do C. Civil, uma vez que mantém o dever de vigilância da obra, por manter o dever da sua supervisão técnica.
III - Na hipótese de existir subempreitada, não é possível pedir a responsabilidade do empreiteiro a título de risco, nos termos do artº 500º do C. Civil, porque não existe entre ele e o subempreiteiro uma relação de comissão, atenta a autonomia com que este último actua.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I

"A" e B moveram a presente acção ordinária contra C - Produtora Energética SA e D - serviços de Engenharia e Comercialização Industrial Lda, pedindo que as ré fossem condenadas solidariamente a pagar-lhes a quantia de 4.100.000$00, acrescida dos juros de mora legais a partir da citação.
A 1ª ré contestou.
A 2ª ré pediu a intervenção acessória provocada das sociedades E e Sociedade F, o que foi deferido, tendo contestado a primeira das chamadas.
Os autores replicaram.
O processo seguiu os seus trâmites e feito o julgamento, foi proferida sentença em que se julgou a acção improcedente.
Apelaram os autores, tendo-lhes sido concedido parcialmente a apelação, sendo a ré D condenada a pagar-lhes a quantia de 2.700.000$00
Recorre, agora, esta ré, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1. A recorrente subempreitou nas chamadas a realização da obra, pelo que não foi ela quem materialmente executou os trabalhos, nomeadamente as detonações.

2. Assim, não estando o subempreiteiro sujeito a quaisquer ordens ou instruções do empreiteiro, sendo que a faculdade de fiscalizar a obra integra um direito, não um dever de vigilância, não existe entre eles quaisquer relações de comitente /comissário.

3. Donde é de concluir pela exclusão da responsabilidade da recorrente, nos termos do artº 500º do C. Civil.

4. Por outro lado, a autonomia existente na actividade do subempreiteiro, tal como indicado em 2, implica que, não havendo um dever de vigilância por parte do empreiteiro, não pode a recorrente ser responsabilizada ao abrigo do disposto no artº 493º nº 1 do C. Civil.

5. Os autores sempre alegaram no sentido de que a responsabilidade da ré D existia face ao disposto no artº 500º do C. Civil, sendo que a sentença de 1ª instância também só equacionou essa possibilidade e que a defesa da ré recorrente teve sempre por base esse preceito.

6. O acórdão recorrido, ao decidir com base noutro preceito, o artº 493º nº 1, colocou uma questão nova que as partes não tiveram a oportunidade de discutir, violando-se assim o princípio do contraditório consagrado no artº 3º nº 3 do C. P. C.
7. Nem se diga que se trata duma simples rectificação da qualificação jurídica, porque está em causa uma norma diversa geradora de efeitos substancialmente diferentes dos da norma precedentemente considerada, pelo que sempre ter+á de ser tida como uma nova questão de direito.

8. Termos em que a violação do princípio do contraditório, por não tendo sido dada às partes a oportunidade de discutir a referida questão nova, implica irregularidade processual, que, por poder influir na decisão da causa, acarreta uma nulidade, conforme os artºs 3º nº 3 e 201º nº 1 do C. P. Civil.

9. As instâncias consideraram que não tinha sido ilidida a presunção de culpa do artº 493º nº 2 do C. P. Civil., quando é certo que, tendo ficado provado que haviam sido respeitadas todas as normas técnicas exigíveis, deveriam ter considerado que as rés e as chamadas mostraram que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir o dano.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consigna-se a matéria de facto dada por assente pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 952 a 961.

III
Apreciando

1. Da ilisão da presunção de culpa

Face à matéria provada, as instâncias consideraram que não havia sido ilidida a presunção de culpa do artº 493º do C. Civil.
Pretende a recorrente que de tal matéria havia de se concluir precisamente em sentido inverso.
Trata-se dum problema de fixação dos factos através de conclusão, que, como vem sendo jurisprudência constante deste Supremo, escapa ao seu conhecimento, por constituir julgamento da matéria de facto, que depende da convicção do julgador e, por isso insindicável em sede de revista - cf. os artºs 729º nº 2 e 722º nº 2 do C. P. Civil - . Mesmo antes de existir a norma do nº 6 do artº 712º do C. P. Civil, que veda o recurso para o STJ das decisões de direito ou de facto do Tribunal da Relação sobre a fixação dos factos, já assim era entendido.
Assim, o modo como as instâncias consideraram a questão é, agora, um dado adquirido nos autos.

2. Do eventual dever de vigilância do empreiteiro na subempreitada.

Na relação jurídica que se estabelece entre o empreiteiro e o subempreiteiro, tem o primeiro uma posição idêntica à do dono da obra. Consequentemente, assume no âmbito da subempreitada o conjunto de direitos e deveres que a lei confere ao referido dono da obra.
A tese da decisão sub judice é a de que impendendo sobre o dono da coisa o dever de a vigiar por forma que a mesma não cause danos, passando a figurar o empreiteiro como se dono da obra fosse, esse dever transfere-se para este último.

Ou seja, entende que, na empreitada o poder de vigilância continua no dono da obra e, por conseguinte, na subempreitada radica no empreiteiro.
Há aqui e salvo o devido respeito, um vício lógico de qualificação. O dono da coisa é o seu possuidor. O dono da obra é o mesmo, mas apenas para efeitos do contrato de empreitada, ou seja, considerado apenas no que a este contrato diz respeito, sem que se tenha em conta os demais deveres que ao possuidor incumbem.

Por outras palavras, o conceito de dono da obra interessa apenas para a determinação dos direitos e deveres que emanam da empreitada e não coincide com o conceito de dono da coisa para efeitos da prevenção de danos tal como o artº 493º do C. Civil o prevê.

Caberá então aqui perguntar se, ocorrendo a empreitada, o dito dever de vigilância permanece no dono da coisa.
Entendemos que não. Quem não tem a vigilância efectiva da coisa não pode prevenir os danos que dela possam advir. Deste modo, é forçoso concluir que o dever de vigilância passa para aquele que passa a ter a detenção da coisa, ou seja o empreiteiro.

Como se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 26.04.88 - BMJ 376 587 - "O dono da obra, quando esta é executada por empreiteiro, não está obrigado a vigiar a sua execução por forma a excluir danos nos prédios vizinhos. O poder do dono da obra de fiscalizar à sua conta a execução dela, não integra a conduta o facto indispensável para haver responsabilidade civil, ainda que por facto lícito, já que essa fiscalização não significa exercício de autoridade e direcção sobre o autor das obras, o empreiteiro que age sob a sua própria direcção, com autonomia."

Que o mesmo é dizer que o dono da coisa, quando passa a dono da obra, por virtude do contrato de empreitada que tem tal coisa como objecto, deixa de ter o poder e, consequentemente o dever, da sua vigilância.

Poderia parecer que, ocorrendo a subempreitada, pelo paralelismo legal entre os dois contratos - artº 1212º do C. Civil - , que faz com que o empreiteiro seja como que o dono da obra face ao subempreiteiro, passaria para este o dever de vigilância da coisa, em termos semelhantes àqueles que atrás se consignou para o caso do empreiteiro.
No entanto, a simetria entre o contrato de empreitada e o de subempreitada não é total.

A própria lei, no referido artº 1212º, ao equiparar o regime daqueles contratos, ressalva, embora apenas para a responsabilidade contratual, a culpa in eligendo do artº 264º do C. Civil. O que inculca que o subempreiteiro é um mero auxiliar do empreiteiro e que a sua autonomia não é portanto completa. E que mantém este um poder de direcção e controle, que acabam por caracterizar um dever de guarda e vigilância.

A Cour de Cassation francesa entende que - cf. decisão de 28.03.90, Resp. civ. Et ass. 1990 180) o subcontratante (na empreitada) não vê a priori transferida para si a guarda da obra.
Vejamos.
O dono da obra deixa de ter a sua guarda, porque, sendo, por definição, estranho ao know how técnico que implica, é forçado a dela abrir mão. Logo, deixa de ter qualquer poder de direcção e controle que é o que fundamenta o dever de vigilância sobre a mesma.

Mas o empreiteiro, mesmo naqueles casos em que deu a obra de subempreitada, continua obrigado à vigilância, da dita obra, porque continua a impender sobre ele o dever de supervisão técnica da sua feitura, sendo, por isso, de considerar que, em alguma medida mantém, mesmo na hipótese de subcontratação, os referidos poderes de controle e direcção. O que leva a considerar que o dever de vigilância não transita para o subempreiteiro, sem prejuízo de sobre este impender idêntico dever.

Por outras palavras, havendo subempreitada, o empreiteiro não tem apenas o direito de fiscalização, tal como, nos termos do artº 1209º do C. Civil, tem o dono da obra, ou seja, o direito de verificar se ela corresponde ao acordado com este último.
Para além disso e ao contrário do dono da obra, a quem a autonomia do empreiteiro não permite uma fiscalização técnica, incumbe-lhe fazer, face ao trabalho do seu subempreiteiro, este tipo de fiscalização.

A autonomia do subempreiteiro não pode prevalecer sobre o cumprimento do dever do empreiteiro de realizar a obra segundos os seus critérios técnicos e funcionais.
Aliás, isto é mais nítido num caso frequente, que é o de existirem diversos subempreiteiros, ou da subempreitada ser parcial. Aqui a necessária coordenação técnica das obras parciais, tem de forçosamente pertencer ao contratador principal.

Deste modo, por razões diferentes das invocadas na decisão em apreço, acabamos também por entender que o empreiteiro, não deixa de ter o dever de vigilância da obra, apesar de ter celebrado um contrato de subempreitada para a sua conclusão.

3. A sua responsabilidade por risco nos termos do artº 500º do C. Civil, em que se dispõe sobre a responsabilidade do comitente é igualmente de afastar, uma vez que a relação de comissão implica uma coordenação entre comitente e comissário por forma a que este actue segundo as instruções do primeiro, que não existe no tipo de contrato em causa.
Precisamente o que distingue o contrato de empreitada de outras figuras é a já referida autonomia com que o empreiteiro realiza a obra. Elucidativo este respeito é o nº 1 do artº 1209º do C. Civil, quando determina que o dono da obra, ao fiscalizá-la, não pode perturbar o andamento ordinário da empreitada.

4. Temos, pois, que a ré recorrente, tendo a guarda da coisa, nos termos do artº 493º nº 1 do C. Civil e não tendo ilidido a presunção de culpa aí prevista, é responsável pelos danos que a realização da obra causou.

Pelo exposto, acordam em negar a revista e confirmam, embora por outros motivos, o acórdão recorrido
Custas pela recorrente.

Lisboa, 14 de Abril de 2005
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida,
Noronha do Nascimento.