POSSE DE BOA FÉ
PRAZO
USUCAPIÃO
Sumário

I - A prova - mediante alteração introduzida pela Relação no segmento da resposta ao quesito 2.º relativo ao tempo da posse - de que «pelo menos há mais de 20 anos os réus passaram a tratar do prédio como se se tratasse de sua propriedade, convictos de que assim era e ignorando lesar interesses alheios», permite concluir pela boa fé dos réus possuidores, resultando por consequência ilidida a presunção de má fé por falta de título delineada no artigo 1260, n.º 2 do Código Civil;
II - A posse adquire-se, entre outros factores enunciados nas alíneas do artigo 1263, «pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito»;
III - Neste conspecto, a prova aludida em I, de que o início desses actos genéticos da posse dos réus - cuja reiteração e publicidade, inclusive perante os autores, resultou igualmente provada -, na ignorância de lesar interesses de outrem, teve lugar há mais de 20 anos, revela do mesmo passo que a boa fé dos possuidores se reporta ao momento da aquisição da posse (artigo 1260.º, n.º 1);
IV - Os tipos legais são normalmente constituídos por segmentos, quer normativos, quer de natureza factual-descritiva, contando-se, entre estes últimos, elementos por certo da realidade material e concreta - seres vivos ou inanimados, coisas, objectos da mais variada espécie -, mas também os do mundo ideal ou imaterial, tais como acções, qualidades, estados, factores ou valores intelectuais e culturais, que não deixam de reconduzir-se ao domínio dos factos pela mera circunstância da sua abstracta natureza;
V - Assim, a locução «ignorando lesar interesses alheios» (cfr. a resposta ao quesito 2.º supra, I, e o n.º 1 do artigo 1260), inclui o elemento nuclear ignorância, um estado anímico, de intelecto e de cultura, referido secundariamente a um conteúdo indeterminado de interesses sem recorte jurídico preciso, o que tudo não deixa de assumir natureza factual, conquanto abstracta, que lhe confere aptidão como tema e objecto da prova.
E a circunstância de tais elementos se oferecerem como constitutivos do tipo legal não veda apor si só a inclusão no questionário, tanto mais que não contêm matéria imbuída de um tal grau de abstracção conclusiva, e muito menos matéria de direito, que possa vedar submetê-los a prova directa;
VI - O prazo de pelo menos 20 anos de posse, referido em I, não deve contar-se a partir, retrospectivamente, da data do julgamento - quase 5 anos volvidos sobre a instauração da acção e a citação dos réus -, onde foram produzidos os depoimentos que motivaram a alteração da resposta ao quesito 2.º no aspecto do mencionado prazo;
VII - Efectivamente, os vectores circunstanciais dos factos - v. g., a quantidade, o modo, e sobretudo o tempo - devem em princípio ser valorados com referência à sua alegação, e ao momento desta, como é evidente, tratando-se aí do acto que descreve e define estruturalmente o facto tal como há-de ser objecto dos meios de prova.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "A" e esposa, B, residentes em S.to Tirso, instauraram no tribunal desta comarca, em 26 de Maio de 1997, contra C e esposa D, residentes em Vila Nova de Famalicão, acção ordinária de reivindicação do prédio identificado nos autos, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade por sucessão e usucapião, e a condenação dos réus a absterem-se da prática de actos conflituantes, entregando-lhes o imóvel livre de pessoas e coisas.

Contestaram os réus, alegando por seu lado a propriedade do prédio, derivada de compra aos autores em 1980, mediante contrato verbal com tradição do mesmo por 1.600.000$00, e aduzindo factos integradores da usucapião.

Pedem em via de reconvenção a declaração do direito de propriedade a seu favor, e, admitindo a improcedência da pretensão, a condenação dos autores a pagarem-lhes a quantia de 40.000 contos a título de indemnização por benfeitorias ou de enriquecimento sem causa.

Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 11 de Agosto de 2002, que julgou improcedente a acção, absolvendo os réus, e procedente a reconvenção com fundamento em usucapião retrotraída a Abril de 1980, com o consequente cancelamento do registo existente a favor dos autores.

A apelação dos autores, em que impugnaram além do mais a decisão da matéria de facto - no caso a resposta ao quesito 2.º, em pois planos adiante referenciados, da qual, aliás, se abstiveram de reclamar quando da sua emissão -, não logrou provimento, tendo a Relação do Porto estudado a gravação da prova produzida em audiência e alterado a resposta aludida em sentido diferente do preconizado pelos recorrentes, confirmando a sentença.

2. Do acórdão neste sentido proferido, em 10 de Julho de 2003, recorrem os demandantes vencidos, mediante a presente revista, sintetizando a alegação respectiva nas conclusões que se transcrevem, as quais inclusive reproduzem substancialmente, e não raro literalmente, conclusões da apelação (frisados no original):

2.1. «O tribunal de Relação deu razão aos recorrentes sobre a circunstância de que nenhuma prova foi feita pelos recorridos quanto ao momento da aquisição da posse sobre o prédio;

2.2. «O tribunal de Relação ao referir que ‘no entanto com base nos depoimentos das testemunhas (...) é possível garantir-se que os réus começaram a tratar do prédio há, pelo menos 20 anos’, não atendeu ao facto de as testemunhas terem prestado depoimento na audiência de julgamento a qual só decorreu volvidos quase cinco anos sobre a data da entrada da acção em juízo, pois caso contrário teria concluído ‘...há, pelo menos dezassete anos’;

2.3. «Atendendo à prova testemunhal e, principalmente, à posição assumida pelos próprios recorridos de que se apossaram do prédio apenas em Abril de 1980, deverá ser esta a data aproximada a ter em consideração para o início da posse;

2.4. «Desde a data de início da posse até à data da citação dos recorridos para a presente acção decorreram cerca de dezassete anos e não vinte como referiu o tribunal de Relação;

2.5. «O artigo 1260, n.° l, do Código Civil determina que ‘a posse é de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o interesse de outrem’. Sendo que o n.° 2 do mesmo preceito estipula a presunção de que a posse não titulada é de má fé;

2.6. «A boa fé do adquirente tem necessariamente de ser averiguada no momento da aquisição (artigo 1260, n.° l, do Código Civil);

2.7. «Por toda a prova produzida resultou apenas provado que em data imprecisa, mas pelos inícios da década de oitenta, os recorridos se apossaram do prédio com o animus possidendi, pacificamente e publicamente, situação que se manteve até à data da entrada da presente acção em juízo, no dia 26 de Maio de 1997 e consequente citação daqueles para contestarem;

2.8. «Os recorridos têm uma posse não titulada (artigo 1259.° do Código Civil), por falta do ‘justo título’;

2.9. «Estabelece o n.° 2 do artigo 1260° do Código Civil que ‘a posse titulada presume-se de boa fé e a não titulada de má fé’;

2.10. «Referindo o artigo 1290.° do Código Civil que ‘não havendo registo do título a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé’;

2.11. «Impendia sobre os recorridos o ónus de ilidirem a presunção do n.° 2 do artigo 1260.° do Código Civil;

2.12. «Era essencial que os recorridos tivessem logrado provar (o que não conseguiram por qualquer forma) a celebração do contrato verbal de compra e venda com os recorrentes pois seria a forma de, através de factos, demonstrar a existência da sua boa fé no momento da aquisição e a sua consciência de não lesarem quaisquer interesses dos recorrentes;

2.13. «Mesmo tendo a boa fé um sentido psicológico, a expressão ‘na convicção de não se estar a lesar interesses alheios’ tem de assentar em factos concretos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 6/4/2000, retirado da Internet - páginas de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e acórdão do STJ, de 4/11/1993, CJSTJ, Ano I, Tomo III, págs. 98 e segs.);

2.14. «Em conclusão, não foi por qualquer meio ilidida pelos recorridos a presunção estabelecida no n.° 2 do artigo 1260.° do Código Civil;

2.15. «Pelo que, tendo decorrido dezassete anos sobre a tomada de posse do prédio pelos recorridos, atenta a sua má fé, não lograram estes adquirir o bem por usucapião;

2.16. «Deve, em consequência, a sentença em causa ser revogada sendo julgado totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelos recorridos, sendo estes últimos condenados a reconhecer o direito de propriedade dos recorrentes sobre o prédio.»

3. Contra-alegam os réus recorridos, dissecando com erudição, e conspícua densificação teórica aplicada, todas as questões envolvidas na revista - sem olvidar a minuciosa análise da matéria de facto envolvida -, pronunciando-se em resumo pela confirmação do aresto sub iudicio.

E o objecto da revista, considerando as conclusões que vêm de se extractar, à luz da fundamentação da decisão recorrida, compreende as seguintes questões: a) se a posse dos réus é de boa fé (conclusões supra, 2.5. / 2.6., 2.8. / 2.9., e 2.11. / 2.14.); b) se, atento o início e o tempo de duração da posse dos réus, se consumou o prazo de usucapião do imóvel (conclusões 2.1./2.4., 2.7., 2.10., e 2.15/2.16.).
II
1. A Relação deu por assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, com a alteração da resposta ao quesito 2.º há pouco mencionada.

1.1. Com efeito, o quesito foi considerado provado na sua original redacção: «Desde Abril de 1980 os réus passaram a tratar do prédio como se se tratasse de sua propriedade, convictos de que assim era e ignorando lesar interesses alheios?»

Pretendiam, todavia, os autores apelantes ver alterada a resposta como segue: «Provado apenas que em data indeterminada dos inícios da década de oitenta os réus passaram a tratar do prédio como se se tratasse da sua propriedade, convictos de que assim era».

Entendiam, por outro lado, que as expressões «como se se tratasse da sua propriedade» e «ignorando estar a lesar interesses alheios», têm um sentido jurídico resultante, respectivamente, dos artigos 1251.º e 1260.º, n.º 1, do Código Civil, devendo como matéria de direito considerar-se não escritas (artigo 664.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

1.2. Nestas condições, a Relação do Porto examinou de perto os depoimentos gravados e decidiu desde logo alterar o segmento inicial da resposta de forma a constar : «Pelo menos há 20 anos (...) (...)» etc.

Quanto ao segundo aspecto do quesito, considerou que as expressões citadas, tendentes a averiguar o animus possidendi e a boa fé dos réus, continham matéria com expressão factual susceptível de ser indagada através da prova pertinente.

2. A despeito de a matéria de facto assim dada como provada na 2.ª instância dever aqui manter-se inalterada, prescinde-se da faculdade de remissão prevista no n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, a benefício de adequada elucidação dos factos assentes, por isso se transcrevendo o respectivo elenco na parte com interesse:
2.1. «(...);
2.2. «O prédio referido em 1. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.° 00209/220493, aí se encontrando registada a aquisição a favor dos autores por usucapião;

2.3. «Os réus depositaram no prédio identificado em 1. pedras e abriram um caminho;

2.4. «Pelo menos há 20 anos, os réus (2) passaram a tratar do prédio como se se tratasse de sua propriedade, convictos de que assim era e ignorando lesarem interesses alheios [trata-se aqui, como resulta claro do anteriormente exposto, da questionada resposta ao quesito 2.º];

2.5. «E, desde então, começaram a cortar pinheiros e eucaliptos no dito prédio, esmoutar o terreno e proceder a obras de terraplanagem, para tanto esventrando e cavando terras nas partes mais altas e transpondo-a para as partes mais baixas para nivelar o terreno;

2.6. «Os réus cortaram e arrancaram penedos e pedras existentes no terreno, de forma a que a sul/nascente o terreno foi escavado numa profundidade de cerca de 9 metros para o nivelar e terraplanar;

2.7. «Na parte sul do prédio, os réus construíram um muro com cerca de 100 metros de comprimento e 9 metros de altura, metade em betão e a parte superior em tijolos;

2.8. «A nascente e norte, pelas estremas do prédio, os réus construíram um muro de vedação em blocos de granito salientes à superfície, numa altura de cerca de l metro, e com rede de arame sobreposta e presa em varões de ferro, com cerca de 1,5 metros de altura, no qual abriram uma entrada de cerca de 3 metros de altura, ladeada por dois pilares em granito com cerca de 3 metros na vertical e 0,40 metros de largura nas 4 faces;

2.9. «E abriram um caminho de terra batida com três metros de largura e 50 metros de extensão até ao interior do prédio e para acesso à via pública;

2.10. «Ao longo dos últimos 17 anos, os réus, de forma repetida e reiterada, depositavam no prédio materiais de construção;

2.11. «As obras levadas a cabo no prédio, constantes dos pontos anteriores custaram aos réus cerca de 25.000.000$00;

2.12. «Desde Abril de 1980, os réus entram e saem livremente do referido prédio e aí estacionam os seus veículos;

2.13. «Todos os actos praticados pelos réus no prédio identificado em 1., e constantes dos pontos anteriores, foram efectuados à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos autores e agindo os réus na convicção que o prédio lhes pertencia;

2.14. «(...);

2.15. «(...)»

3. A partir da factualidade descrita, ponderando o direito aplicável, o acórdão sub iudicio respondeu de forma afirmativa às questões há momentos enunciadas como objecto da revista, em termos de dar como verificados todos os pressupostos da usucapião a favor dos réus.

Em resumo, considerou em primeiro lugar o corpus possessório bem desenhado nos pontos 2.3. a 2.10 da recensão factual que vem de se inventariar.

O animus possidendi resulta, por seu turno, da resposta ao quesito 2.º, mediante o qual se provou que os réus passaram a cuidar do prédio «como se se tratasse da sua propriedade», expressão «entendível por qualquer pessoa comum, não exigindo para a sua apreensão o manejo de definições técnico-jurídicas».

Em terceiro lugar, a posse é de boa fé, uma vez que os reconvintes a exerceram «na ignorância de lesarem interesses alheios, nomeadamente dos autores», consoante flui da mesma resposta (artigo 1260, n.º 1).

E sendo de boa fé, observa a Relação, a alteração da primeira parte da resposta ao quesito 2.º - «pelo menos há 20 anos» - nem chega a influir no desfecho da causa, uma vez que a lei se basta com o prazo de 15 anos (artigo 1296.º do Código Civil).

Trata-se, por fim, de uma posse pública e pacífica, tendo os actos possessórios sido praticados, como resulta exuberantemente demonstrado no ponto de facto 2.13., «à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, nomeadamente dos autores» (artigos 1261.º, 1262.º e 1297.º).

E deste modo concluindo pela existência de todos os requisitos da usucapião em benefício dos réus, o aresto da Relação do Porto merece a nossa inteira concordância, seja no plano decisório propriamente dito, seja no tocante à fundamentação, para a qual se remete nos termos do n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil.

4. Objectam, no entanto, os recorrentes em sintonia com as duas questões enunciadas no início como constituindo objecto da revista, questionando, por conseguinte, a boa fé dos possuidores; e o prazo conducente à usucapião que, atendendo à má fé, seria de 20 anos, duração ademais que a posse dos réus nem sequer haveria atingido.

Cremos, todavia, que não lhes assiste razão.

4.1. Na vertente da má fé a argumentação dos recorrentes analisa-se em dois aspectos: primeiro, sendo a presente posse não titulada, a mesma presume-se de má fé, conforme o n.º 2 do artigo 1260.º, presunção que os réus não ilidiram; segundo, a boa fé dos reconvintes carecia em todo o caso de ser demonstrada com referência ao momento da aquisição da posse, o que os mesmos não lograram provar.

Nos termos do artigo 1260.º, n.º 1, a posse diz-se de boa fé «quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem».

Pois bem. Quanto ao primeiro aspecto, recordar-se-á ter ficado provado, mercê da resposta ao quesito 2.º, que os réus, pelo menos há 20 anos, passaram a tratar do prédio, como se fosse propriedade sua, convictos de que assim era, e ignorando lesar interesses alheios.

Provada por consequência a boa-fé dos réus possuidores, assim resultou por seu turno necessariamente ilidida, salvo o devido respeito, a presunção de má fé consignada no artigo 1260.º, n.º 2.

É por outro lado evidente, na óptica do segundo aspecto do argumento, que a prova emergente da resposta ao quesito 2.º se reporta do mesmo passo ao momento da aquisição da posse.

Com efeito, a posse adquire-se, entre outros factores enunciados nas alíneas do artigo 1263.º, «pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito».

E o início da prática desses actos genéticos - cuja espécie e natureza, reiteração e publicidade resultam manifestamente de outros pontos de facto vistos há momentos -, foi localizado pela resposta ao quesito 2.º em data indeterminada de há 20 anos, pelo menos.

Por outras palavras, há pelo menos 20 anos, diz-nos a resposta ao referido quesito, que os réus, ignorando lesar interesses de outrem, e, por conseguinte, de boa fé, passaram a praticar os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o prédio dos autos, consequenciando a radicação da posse do mesmo direito na sua titularidade.

Eis assim a prova da boa fé reportada pela resposta do quesito 2.º, e nas conexões factuais que lhe vão implicadas, ao momento da aquisição da posse.

4.2. Mas os recorrentes não se dão por vencidos, contrapondo ainda que a «ignorância de lesar interesses alheios» é expressão conclusiva, que deve assentar em factos concretos, ou portadora de um específico sentido jurídico resultante do artigo 1260.º, n.º 1, consubstanciando quiçá matéria de direito, como sustentaram sem sucesso perante a Relação.

Consoante se ponderou em recente aresto deste Supremo Tribunal (3) , os tipos legais são normalmente constituídos por segmentos, quer normativos, quer de natureza factual--descritiva. E entre estes últimos contam-se elementos da realidade material e concreta - seres vivos ou inanimados, coisas, objectos da mais variada espécie -, mas também os do mundo ideal ou imaterial, tais como acções, qualidades, estados, factores ou valores intelectuais e culturais, que não deixam de reconduzir-se ao domínio dos factos pela mera circunstância da sua abstracta natureza.

Ora, a locução em exame inclui o elemento nuclear ignorância, um estado anímico, de intelecto e de cultura, referido secundariamente a um conteúdo indeterminado de interesses sem recorte jurídico preciso, o que tudo não deixa de assumir natureza factual, conquanto abstracta, que, se não se erra, lhe confere aptidão como tema e objecto da prova.

A circunstância de tais elementos se oferecerem como constitutivos do tipo legal cremos que não veda por si só a inclusão no questionário. Decerto, na delicada elaboração desta peça processual vai necessariamente implicado um maior ou menor apuramento técnico, talvez condicionado por sua vez ao esmero das alegações de facto em que se ancora.

Coisa diversa é que semelhantes elementos contenham matéria de direito, ou matéria imbuída de um tal grau de abstracção conclusiva que possa vedar submetê-los a prova directa.

Não será este o nosso caso, se bem se julga, pesem os condicionalismos aludidos. Tratar-se-á, pois, de matéria de facto, susceptível de ser provada directamente através de qualquer meio probatório.

E sempre se dirá, em todo o caso, que não faltam no elenco da matéria de facto provada suportes ou índices concretos da expressão em causa, como será o caso dos sugestivos factos alusivos à publicidade da posse, sobretudo perante os autores, que não deixam de concorrer em demonstração da boa fé dos réus.

Podiam decerto ter-se alegado outros factos indiciários da má fé assente na discutida locução. Achamos como quer que seja, submetido o tema à livre convicção do tribunal, colocado em apreciação dialéctica de um número complexivo de meios probatórios, ter-se provado o suficiente no sentido da boa fé dos réus.

4.3. Resta a objecção do prazo conducente à usucapião.

Perspectivando a presuntiva má fé dos réus, aduzem os recorrentes que a posse destes não perdurou pelo tempo para o efeito indispensável de 20 anos (artigo 1296.º do Código Civil), mas tão-somente por um período, insuficiente, de cerca de 17 anos.

O raciocínio dos autores conducente a tal conclusão pode resumir-se em poucas palavras.

Conquanto a acção tenha sido instaurada em 26 de Maio de 1997 - alegam -, altura em que, com a citação dos réus, se interrompeu o prazo para a usucapião, o certo é que as testemunhas só foram ouvidas em audiência, a 23 de Abril de 2002, quase 5 anos volvidos.

De modo que, ao referirem-se a um momento situado «há mais de 20 anos», reportavam-se à data em que estavam a prestar os depoimentos e não à data da entrada da acção em juízo, facto que a Relação não tomou em consideração.

Diga-se apenas que a pretensão dos autores assim equacionada carece de qualquer fundamento plausível.

Em primeiro lugar, porque no pensamento exposto vai implicada uma pretensão de alteração da matéria de facto provada mediante a resposta ao quesito 2.º, fora do domínio de competência do tribunal de revista definido no n.º 2 do artigo 722 do Código de Processo Civil, que, por conseguinte, não pode aqui ser conhecida.

Segundo, porque se provou inclusivamente a boa fé dos réus, como vimos, bastando, portanto, a consumação do prazo de 15 anos para a verificação da usucapião.

Admita-se, no entanto, por mera hipótese de raciocínio, que havia má fé, postulando o prazo mais longo de 20 anos.

Nem por isso tinha este prazo de contar-se a partir da data do julgamento onde foram produzidos os depoimentos que motivaram a alteração da resposta ao quesito 2.º

Efectivamente, os aspectos circunstanciais dos factos - v. g., a quantidade, o modo, e sobretudo o tempo - devem em princípio ser valorados com referência à sua alegação, e ao momento desta, como é evidente, tratando-se aí do acto que descreve e define estruturalmente o facto tal como há-de ser objecto dos meios de prova.

E os autores deviam, salvo o devido respeito, ter omitido o argumento de que as testemunhas contaram os 20 anos a que aludiam desde a data do depoimento, quando ao menos recordassem, permita-se o aparte, a instância que em julgamento dirigiram à testemunha Joaquim Ferreira Rodrigues e, bem assim, a significativa resposta desta, episódio do mais sugestivo recorte que os demandados descrevem na sua contra-alegação a fls. 298, para que se remete.
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelos autores recorrentes (artigo 446.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido (supra, nota 1).

Lisboa, 21 de Abril de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) Que litigam com apoio judiciário, oportunamente concedido (fls. 214).
(2) No catálogo dos factos constante da sentença, que o aresto em recurso reproduz, lê-se autores, mas por manifesto lapsus calami, como a simples leitura do quesito - que o acórdão recorrido aliás transcreve - imediatamente revela.
(3) Acórdão, de 19 de Outubro de 2004, na revista n.º 49/04, 2.ª Secção, que momentaneamente se segue muito de perto