CESSÃO DE QUOTA
OBJECTO NEGOCIAL
TRESPASSE
CLÁUSULA CONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
VONTADE DOS CONTRAENTES
Sumário

Um contrato de cessão de quotas em que se inclui uma cláusula segundo a qual esta é feita com "todos os móveis, utensílios, licenças, alvará e outros elementos que integram o estabelecimento", não pode ser interpretado como de trespasse. Tal cláusula complementa o contrato, dela não resultando qualquer indeterminação quanto ao seu objecto.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B e mulher C e D pedindo que seja declara a nulidade do contrato promessa que identifica e a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de 1.500.000$00, acrescida de juros contados desde a data do recebimento bem como a entregarem-lhe 73 letras de câmbio emitidas pelo Autor e que têm em seu poder.

Alegou para o efeito e em substância que celebrou, por escritura particular, um contrato promessa de cessão de quotas em que os Réus figuram como promitentes cedentes, pelo preço de 12.500.000$00. Para o efeito entregou a quantia de 1.500.000$00 bem como 73 letras de câmbio.

Alegou para o efeito e em substância que o contrato promessa é nulo por indeterminação do respectivo objecto, parecendo resultar das suas cláusulas que, em vez de uma cessão de quotas as partes na realidade desejaram o trespasse de estabelecimento comercial cujos elementos não constam do contrato.

A acção foi julgada improcedente. Por acórdão de 7 de Outubro de 2004, a Relação do Porto negou provimento ao recurso de apelação do Autor.
Inconformado, recorreu A para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:

1. Como se infere da leitura do contrato objecto dos autos e "sub judice", o mesmo não prevê qual o respectivo objecto.

2. Apesar da epígrafe de "Contrato Promessa de Cessão de Quotas", resulta, quer do considerando prévio à cláusula primeira, quer, em especial, da cláusula terceira, que as partes apuseram no contrato cláusulas típicas de um contrato de trespasse de estabelecimento comercial.

3. O dito estabelecimento não está correctamente identificado, apenas resultando do clausulado que o mesmo é de "Bufete" (segundo parágrafo da cláusula primeira) e que se encontra instalado no r/c do prédio urbano sito na rua das Perlinhas n°... - Rio Tinto - Gondomar (considerando prévio à cláusula primeira), mas não se prevê quaisquer outros elementos que permitam a sua cabal identificação, nomeadamente o senhorio do imóvel, a renda paga, etc;

4. A firma da referida sociedade, "E - Sociedade Comercial de Videoomagem, Lda.", nada tem a ver com a exploração de estabelecimentos comerciais de cafetaria ou "bufete".

5. Atendendo ao princípio de que " a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante" (art. 236, n°1 do Cód. Civil), conjugado com a regra de que "nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso" (art. 238°, n°1 do Cód. Civil), não é possível descortinar qual a vontade real das partes ao celebrarem o dito contrato e fazer a respectiva integração (cf.art. 239 do Cód. Civil).

6. O referido contrato não pode valer como contrato promessa de cessão de quotas porque:
a) não é possível descortinar o preço de cada cedida - ou melhor, prometida ceder;
b) refere-se, no considerando antes da cláusula primeira, que se trata de um "Contrato Promessa de cessão de quotas do estabelecimento comercial" e, na cláusula sexta que "é feito com todos os móveis, licença, alvará e outros elementos que o integram".

7. As partes acrescentam ao contrato "sub judice" cláusulas típicas de um contrato de trespasse de estabelecimento comercial e foram claras ao afirmar que o contrato se refere ao estabelecimento comercial.

8. Também não pode valer como promessa de trespasse de estabelecimento comercial porque, desde logo, o mesmo não se encontra correcta e cabalmente identificado no contrato, não se encontrando também referido o respectivo senhorio, o montante da renda em vigor, etc.

9. Ao contrário do que se decidiu nas instâncias, não é possível descortinar o significado do conteúdo do contrato "sub judice", nomeadamente o respectivo objecto.

10. Tão-pouco, afirmar que "o objecto do contrato-promessa se cifra na cessão das quotas da sociedade que nele se refere".

11. Aliás os próprios RR. na sua contestação excepcionaram a sua ilegitimidade passiva, dizendo claramente (Art.1°) que "o contrato promessa ...foi celebrado entre a sociedade comercial por quotas que gira sob a firma E - Sociedade Comercial de Videoimagem, Lda" (Sic), sinal evidente que não eram os RR quem cedia quaisquer quotas,

12. Ou quando muito, querendo parecer que era aquela sociedade, enquanto proprietária do tal estabelecimento de "bufete" tão mal identificado no contrato, que prometia trespassar o mesmo!

13. Fica-se sem saber em que ficamos, atento até, repete-se, que o comportamento dos RR jamais consentiria a interpretação do contrato que lhe foi dada na sentença recorrida, já que estes se afirmam, peremptoriamente, parte ilegítima na própria acção.

14. Nenhuma interpretação ou integração pode chegar a um resultado que não tenha um mínimo de apoio no texto do contrato "sub judice" (art. 238°, n°1 do Cód. Civil).

15. O resultado interpretativo das instâncias, nomeadamente da Veneranda Relação do Porto, viola o disposto nos arts. 236° e 238°, n°1 do Cód. Civil.

16. O referido contrato é , como se disse, nos termos do art. 280°, n°1 do Cód. Civil, Nulo por indeterminabilidade do respectivo objecto, que se invoca para os devidos efeitos (art. 286° do Cód. Civil),

17. Recaindo, em consequência, sobre os Rec.dos a obrigação de restituir aa Rec.te o que lhes foi entregue a título de sinal (1.500.000$00), acrescido de juros à taxa legal, enquanto frutos civis do dinheiro recebido pelos RR., desde a data da sua entrega até efectiva devolução ao A.., bem como todas as 73 letras de câmbio emitidas e entregues pelo Re.te que têm em sua posse (art. 289°, n°1 do Cód. Civil).

2. Quanto à matéria de facto, importa ter em conta o teor do contrato promessa em causa:
"Contrato Promessa de Cessão de Quotas Outorgantes:
1. D (....)
2. B (....)
3. A (....)
Entre o Primeiro, Segundo e Terceiro Outorgantes é livremente e de Boa-Fé celebrado e reciprocamente aceite o seguinte:
Contrato Promessa de Cessão de Quotas do estabelecimento comercial instalado no r/c do prédio urbano sito na rua das Perlinhas n°401 - Rio Tinto - Gondomar, que se regerá pelas cláusulas seguintes:

1. O Primeiro a Segundo Outorgantes declaram que são os únicos sócios da Sociedade Comercial por quotas que gira sob a firma "E Sociedade Comercial de Videoimagem, Lda" com sede na rua das Perlinhas n°401°- r/c, freguesia de Rio Tinto, concelho de Gondomar, pessoa colectiva n°502252332, matriculada na 3ª Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o n°46509 e com capital social de "Quatrocentos mil escudos" integralmente realizado em dinheiro dividido em duas quotas de "Duzentos mil escudos" cada uma delas pertencente a cada um dos sócios.
A Sociedade não é titular de quaisquer bens imóveis, em causa cedência única e exclusiva só bufete.

2. O preço global é de "Doze milhões e quinhentos mil escudos" que será pago da seguinte forma:
Como entrada e princípio de pagamento receberam o Primeiro e Segundo Outorgantes a quantia de "Um milhão e quinhentos mil escudos" ao qual dão quitação.
A) A quantia de "Onze milhões de escudos será paga em "73" prestações mensais ...tituladas por igual n° de letras de câmbio..., sendo "72" do valor de "Cento e cinquenta mil escudos" e a "73ª" do valor de "Duzentos mil escudos". A 1ª letra vence dia 05/05/2001, seguindo-se cada uma das restantes em igual dia dos meses subsequentes até integral pagamento do preço em dívida não vencendo estas quaisquer juros ou encargos bancários;
B) No incumprimento por falta de pagamento de duas letras as outras serão vencidas.
C) Fica consignada uma cláusula penal no valor do sinal ora dado "Um milhão e quinhentos mil escudos" que será pago pelos Outorgantes que faltarem ao aqui prometido.

3. Esta cessão de quotas é feita com todos os móveis, utensílios, licenças, alvará e outros elementos que o integram, mas livre de qualquer passivo seja ele qual for.

4. A escritura de cessão de quotas efectivará uma reserva de titularidade das quotas até integral pagamento do preço, desde já autorizando que o cessionário realize transmissões de quotas, sendo contudo necessário que a transmissão lhes seja comunicada e a dívida existente à data mantida mas reconhecida".
As cláusulas 5ª e 6ª, relativas a despesas, reconhecimento das assinaturas e data da realização da escritura em nada relevam para a apreciação da revista.
Cumpre decidir.

3. Quanto à indeterminabilidade do objecto do contrato, o acórdão recorrido, depois de salientar a deficiente redacção da parte introdutória em que se menciona tratar-se de "contrato promessa de cessão de quotas do estabelecimento sito..." observa que, a seguir, repetidamente se alude à cessão de quotas e à reserva da titularidade destas .
Ora, esta expressão que entro na gíria corrente mostra bem qual a vontade das partes.

É certo na cláusula 3ª mencionar-se que a cessão é feita com todos os móveis, utensílios, licenças, alvará e outros elementos que integram o estabelecimento, linguagem utilizada, o mais das vezes, no trespasse. Mas daí não resulta que, contrariamente ao objecto do contrato tal como foi definido pelas partes, estas tenham desejado um trespasse. Trata-se antes de cláusula que complementa o contrato, dela não resultando qualquer indeterminação do seu objecto.

Esta interpretação não é susceptível de ser posta em causa pelo facto de os Réus terem contestado alegando ter o contrato sido concluído pela sociedade e não por eles. Trata-se de uma questão de interpretação que em nada afecta a validade do contrato.

Enfim, também em nada releva o facto de o preço ter sido globalmente fixado: encontramo-nos no domínio da autonomia da vontade, estando nas mãos das partes a fixação do preço por unidade ou global.

Para esta fundamentação se remete (artigos 713°, n°5 e 726° do Código de Processo Civil).
Nega-se, pois, a revista.
Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 21 de Abril de 2005
Moitinho de Almeida,
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos.