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RECURSO DE REVISTA
ÂMBITO DO RECURSO
BASE INSTRUTÓRIA
PROVA DOCUMENTAL
PROVA PLENA
Sumário
1. A lei não permite que no recurso de revista se conheça do mérito do acórdão da Relação na parte em que conheceu do recurso de agravo do despacho interlocutório proferido no tribunal da 1ª instância ordenante do desentranhamento de um documento. 2. Tendo a sentença do tribunal da 1ª instância julgado os embargos de terceiro improcedentes com fundamento na caducidade do direito de embargar, considerando prejudicado o conhecimento do seu mérito, a Relação não incumpriu o dever de pronúncia previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil ao não conhecer no acórdão - confirmatório daquela sentença - das questões relativas ao mérito da causa suscitadas no recurso de apelação pelo apelante.. 3. Não podem ser formulados quesitos sobre factos apenas susceptíveis de prova documental, autêntica ou particular, e, se o forem, não pode o juiz decisor da matéria de facto responder-lhes, e, se lhes responder, as respostas devem ser declaradas inexistentes. 4. É susceptível de admissão por acordo das partes - prova plena -, a afirmação do embargado no instrumento de contestação dos embargos, a propósito da excepção peremptória de caducidade, não impugnada pelo embargante na réplica, de que uma cópia do auto de penhora acompanhou o instrumento de citação a que se reporta o artigo 119º, nº 1, do Código do Registo Predial. 5. Como os recursos são meios instrumentais ao reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para proferir decisões sobre matéria nova - não submetida à apreciação do tribunal de que se recorre - não podia a Relação conhecer da arguição de vícios processuais relativos â execução não invocados nos articulados dos embargos e, por isso, não apreciados no tribunal da 1ª instância. 6. No âmbito do procedimento de embargos, julgados improcedentes com fundamento na caducidade do direito de embargar, a partir do conhecimento pelo embargante da penhora do prédio na data da citação a que se reporta o artigo 119º, nº 3, do Código do Registo Predial, não pode estar em causa, pela própria natureza das coisas, a sua interpretação em sentido adverso ao normativo do artigo 62º, nº 1, da Constituição.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
"A", deduziu, no dia 21 de Novembro de 2001, embargos de terceiro, no âmbito da acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, intentada por E-Comércio de Automóveis Ldª contra C e o seu cônjuge, D, pedindo o levantamento da penhora incidente sobre o prédio urbano sito na freguesia de Granja, Boticas, inscrito na matriz sob o artigo 246º, com o fundamento de o ter comprado aos executados no dia 12 de Novembro de 1998 e de ter registada a aquisição a seu favor.
Recebidos os embargos na sequência da produção de prova testemunhal, contestou-os "E" Ldª, invocando a caducidade da acção de embargar e impugnando a restante matéria de facto, e o embargante replicou no sentido da improcedência da excepção de caducidade e da procedência dos embargos.
Realizado o julgamento e decidida a matéria de facto no dia 7 de Outubro de 2003, reclamou o embargante da resposta dada aos quesitos 1º a 8º da base instrutória, juntando uma certidão judicial extraída no dia 24 de Abril de 2003 de uma acção executiva, que correu termos em outra vara do mesmo tribunal, à qual também deduzira embargos de terceiro.
A reclamação da decisão da matéria de facto foi julgada improcedente e o juiz ordenou o desentranhamento do processo da referida certidão, despacho de que o embargante agravou e, no dia 15 de Janeiro de 2004, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes com fundamento na caducidade do direito de embargar.
Apelou o embargante daquela sentença, e a Relação, por acórdão proferido no dia 18 de Outubro de 2004, negou provimento ao recurso de agravo com fundamento na extemporaneidade de apresentação da certidão e julgou improcedente o recurso de apelação por considerar verificada a excepção da caducidade do direito de embargar do apelante.
Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- há omissão de pronúncia pela Relação, não foram examinadas todas as conclusões do recorrente, ocorre a nulidade do acórdão prevista alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, devem ser consideradas procedentes as conclusões 10ª a 16ª;
- a Relação fez inadequada reapreciação da prova, deve fazer-se adequada apreciação da matéria de facto, tendo em conta a escritura de compra e venda e o registo predial e a prova testemunhal, bastando à Relação ouvir e reapreciar os depoimentos das testemunhas arroladas pelo recorrente para concluir pela resposta positiva aos quesitos 7º a 8º, julgar os embargos procedentes e remeter os interessados para os meios comuns;
- mesmo julgados não provados os quesitos 7º e 8º, os factos disponíveis impunham solução diferente, não há prova da notificação ao recorrente do auto de penhora nem que lhe tenha sido entregue cópia, pelo que não podia o tribunal a quo considerar isso provado por acordo das partes;
- não foram afixados na porta do imóvel nem na sede da junta de freguesia os editais para a citação dos credores nem o termo da penhora e o recorrente não foi citado pessoalmente, só conheceu que a sua propriedade corria risco ao saber da venda;
- como o recorrente não foi citado pessoalmente da execução nem da penhora, há nulidade de citação e de todo o processado a partir do requerimento de execução ou da nomeação do prédio à penhora, nos termos dos artigos 195º, alíneas a), c) e e), 198º, 199º e 203º do Código de Processo Civil, a declarar, e só por isso os embargos nunca poderiam ser declarados extemporâneos;
- não impugnada a escritura pública de compra e venda e registada a aquisição a favor do recorrente um ano antes da nomeação do prédio à penhora, ela é oponível à recorrida nos termos dos artigos 2º e 5º do Código do Registo Predial e 408º , 879º, alínea a), e 1316º do Código Civil;
- provada e titulada a propriedade do imóvel pelo recorrente e a sua posse efectiva, face ao disposto nos artigos 1251º e 1252º do Código Civil, o juiz a quo devia declarar os embargos procedentes;
- independentemente de qualquer prazo, o recorrente, proprietário, titular inscrito, e possuidor, podia reivindicar o prédio penhorado, e ainda que o recorrente, uma vez citado, se tivesse remetido ao silêncio, a consequência seria a de expedição de certidão à conservatória;
- decidido em embargos de terceiro a outra execução com trânsito em julgado e conhecido do juiz ter o ora recorrente declarado que o prédio penhorado lhe pertencia, suspensa a execução e remetidos os interessados para os meios comuns, há caso julgado com força obrigatória dentro e fora do processo, pelo que os embargos deviam ser julgados procedentes e extinta a execução;
- o acórdão, ao decidir como decidiu, interpretou erradamente e violou os artigos 408º, 409º, 879º, alínea a), 1308º, 1316º e 1317º, todos do Código Civil, e 5º e 7º e 119º, nºs 3 e 4, ex vi dos artigos 5º e 7º do Registo Predial;
- o entendimento que a Relação fez dos artigos 119º, nºs 1 e 4, do Código de Registo Predial envolve ilegalidade e inconstitucionalidade;
Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- não relevam no recurso as conclusões 2ª a 8ª e 10ª a 26ª porque versam sobre matéria do recurso de agravo já decidido com trânsito em julgado ou que consta de outro processo a que a recorrida é alheia;
- as conclusões do recorrente reeditam questões novas de que a Relação não conheceu, por não o poder fazer, e não referem qualquer fundamento que consubstancie a violação do nº 2 do artigo 353º do Código de Processo Civil ou outra disposição que conduza a decisão diferente;
- a nulidade da citação é questão nova porque só arguida em sede de recurso, e a matéria de facto assente não pode ser alterada, porque não houve ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova;
- o regime do artigo 119º do Código do Registo Predial não se confunde com a oposição por embargos de terceiro, o silêncio do recorrente implicou o funcionamento do seu nº 3, e os embargos deduzidos dois anos depois não sanam nem eliminam aquela consequência;
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. No dia 1 de Agosto de 1994, D e C outorgaram a favor do embargante a procuração inserta a folhas 65 e seguintes para vender a si próprio o prédio constituído por casa de habitação de rés de chão, 1º e 2º andares, sito no Pereiro, Estrada Nacional, freguesia de Granja, Concelho de Boticas, com superfície coberta de 100 m2 e logradouro de 510 m2, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 246 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Boticas na ficha n.º 00080/140587, entregando nessa data o último aos primeiros o preço de 10 500 000$.
2. Por escritura pública de 12 de Novembro de 1998, outorgada no Cartório Notarial de Boticas, o embargante, outorgando por si e na qualidade de procurador de D e de C, declarou aqueles venderem-lhe e ele comprar-lhes o prédio mencionado sob 1 por 10 500 000$.
3. O embargante fez inscrever no registo predial, no dia 30 de Novembro de 1998, a seu favor, a aquisição do prédio mencionado sob 2, o qual está inscrito na matriz predial respectiva em nome de D.
4. No dia 2 de Junho de 1999, foi lavrado termo de penhora do prédio mencionado sob 1 na acção executiva para pagamento de quantia certa intentada por "E" Ldª contra D e C.
5. No dia 22 de Novembro de 1999, na execução mencionada sob 4, foi o embargante citado, na qualidade de titular inscrito no registo predial da aquisição mencionada sob 2 e 3, para, em dez dias, declarar se o imóvel constante do auto de penhora lhe pertencia, nos termos do artigo 119º do Código do Registo Predial, e nada declarou no referido prazo.
III
A questão essencial decidenda é de saber se caducou ou não o direito de embargar do recorrente.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação do recorrente e da recorrida, sem prejuízo de a solução dada uma prejudicar a solução a dar a outra ou a outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pode ou não este Tribunal conhecer da legalidade ou ilegalidade do acórdão da Relação que negou provimento ao recurso de agravo?
- está ou não o acórdão da Relação afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- pode ou não este Tribunal sindicar o resultado da apreciação feita pela Relação no que concerne à decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância?
- infringiu ou não a Relação alguma disposição legal sobre prova legalmente exigida em relação a algum facto?
- os factos que devem ser considerados provados implicam ou não a conclusão de caducidade do direito de embargar?
- a interpretação feita nas instâncias do artigo 119º do Código do Registo Predial infringe ou não alguma norma ou princípio constante da Constituição?
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.
Comecemos por verificar se este Tribunal pode ou não conhecer da legalidade ou ilegalidade do acórdão da Relação que negou provimento ao recurso de agravo do despacho proferido no tribunal da 1ª instância que ordenou o desentranhamento de documento apresentado pelo recorrente.
O recorrente suscita no recurso de revista a problemática do desentranhamento no tribunal da 1ª instância de uma certidão judicial extraída por uma vara diversa do mesmo tribunal, relativa a acção executiva instaurada contra os mesmos executados, com penhora provisória do mesmo prédio, da qual, com êxito, embargara de terceiro.
Salientou o relevo dessa certidão e que antes do encerramento da audiência de julgamento juntara fotocópia do despacho a que ela se reportava, por via do qual os interessados haviam sido remetidos para os meios comuns, e afirmou em face disso a verificação do caso julgado no e fora do processo.
A aludida problemática foi, porém, apreciada pela Relação no recurso de agravo do referido despacho proferido na 1ª instância, e está aqui em causa, neste ponto, a infracção ou não por ela de normas processuais.
Expressa a lei que, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admitido recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um mesmo recurso (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se do princípio designado da unidade ou absorção, em que o recurso de revista, em razão do seu objecto essencial relativo à violação de normas jurídicas substantivas, arrasta para a sua órbita o conhecimento da violação de normas jurídicas adjectivas, próprio do recurso de agravo.
Todavia, para o efeito, exige a lei, como condição do conhecimento da violação de normas jurídicas processuais, que a decisão da Relação sobre essa matéria seja impugnável, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
A este propósito, estabelece a lei, por um lado, ser admissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação (artigo 754º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, não ser admissível recurso de agravo do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A excepção à proibição prevista na primeira parte do nº 2 do artigo 754º só ocorre no que concerne aos agravos a que se reportam os nºs 2 e 3 do artigo 678º e a alínea a) do nº 1 do artigo 734º, todos do Código de Processo Civil (artigo 754º, nº 3, do Código de Processo Civil).
O artigo 678º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil refere-se a recursos de decisões em que se suscite a violação de regras de competência internacional do tribunal ou de caso julgado ou a questão do valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com o fundamento de o valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.
O artigo 734º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil refere-se, por seu turno, a recursos de agravo que ponham termo ao processo.
Ora, no caso vertente, estamos perante um acórdão da Relação que se pronunciou sobre um despacho que ordenou o desentranhamento de um documento, portanto de natureza interlocutória, que se enquadra na proibição da primeira parte do nº 2 do artigo 754º do Código de Processo e não é salvaguardado em termos de excepção pelo nº 3 daquele artigo.
Em consequência, a lei não permite que no recurso de revista em apreciação se conheça da matéria de natureza processual concernente ao desentranhamento da referida certidão que a Relação decidiu a título definitivo.
2.
Vejamos, ora, se o acórdão da Relação está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
O recorrente invocou a nulidade do acórdão recorrido sob o fundamento de a Relação só haver conhecido, de entre a matéria condensada nas vinte e uma conclusões formuladas no recurso de apelação, a constante das conclusões 4ª, alínea f), e 12ª.
Prescrevem, por seu turno, os artigos 668º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, e 716º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que o acórdão é nulo quando o colectivo de juízes deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Os referidos normativos estão conexionados com o que prescrevem os artigos 660º, n.º 2, 1ª parte, e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil, segundo os quais, o colectivo de juízes da Relação deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido ao seu conhecimento, salvo as que estejam prejudicadas pela solução dada a outras.
No caso de a Relação ter realmente omitido o conhecimento de alguma questão de que devia conhecer, salvo se prejudicada pela solução dada a outra ou outras, não poderia este Tribunal suprir a respectiva nulidade, antes se lhe impondo a remessa do processo àquele Tribunal a fim de a suprir (artigo 731º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Mas as questões a que se referem os referidos normativos não se consubstanciam em argumentos ou razões de facto e ou de direito, dado que o tribunal é livre na interpretação e aplicação aos factos das normas jurídicas (artigo 664º do Código de Processo Civil).
As questões a que alude o mencionado normativo centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções.
Assim, não se confundem os conceitos de motivação ou argumentação fáctico-jurídica e de questões, como pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes centralizam o litígio, incluindo as excepções, sendo que só a elas os referidos normativos se reportam.
Ora, no caso vertente, a Relação expressou que apesar de apelante haver formulado vinte e uma conclusões de alegação só transcrevia as identificadas sob 4ª f) e 12ª, dado a decisão recorrida se ter baseado na procedência da excepção peremptória da caducidade do direito de embargar.
Na realidade, a sentença proferida no tribunal da 1ª da primeira instância julgou os embargos de terceiro improcedentes com base na caducidade do direito de embargar, pelo que não conheceu da questão da legalidade ou ilegalidade do acto de penhora em razão de o prédio penhorado se inscrever na titularidade dominial do ora recorrente ou dos executados.
Com efeito, declarou-se na referida sentença que, verificada a excepção de caducidade do direito de embargar, não tinha o tribunal de se pronunciar sobre o mérito dos embargos.
Assim, atento o fundamento do decidido pelo juiz do tribunal da 1ª instância, aquilo que além desse tema foi afirmado na sentença não envolve mais do que expressão chamada de obter dictum, naturalmente sem relevo de caso julgado.
A Relação delimitou o objecto do recurso no sentido de só apreciar as conclusões com relevo de thema decidendum, o que é harmónico com o princípio da economia processual que envolve a lei de processo (artigos 30º, 31º, 137º, 138º, nºs 1 e 2, 449º, nº 2, alínea c), 470º, 662º e 663º do Código de Processo Civil).
A Relação não se pronunciou, na realidade, deliberadamente, sobre as questões envolvidas nas conclusões a que o recorrente por exclusão de partes se reporta, mas nem delas tinha que conhecer.
Consequentemente, não está o acórdão recorrido afectado da nulidade a que alude a primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
3.
Atentemos agora na questão de saber se este Tribunal pode ou não sindicar o resultado da apreciação feita pela Relação no que concerne à decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância.
A este propósito, alegou o recorrente que a Relação não fez adequada reapreciação da prova, que ela devia ter declarado provados os quesitos 1º a 8º da base instrutória face à prova testemunhal, à escritura de compra e venda e ao documento comprovativo do registo da aquisição, e que lhe bastava para o efeito ouvir e reapreciar o depoimento das testemunhas que arrolara.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no referido recurso, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto e a fixação dos factos materiais da causa formado pela Relação quando esta tenha dado como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico, porque, nesses casos excepcionais do que se trata é da questão de direito consubstanciada em saber se ocorreu ou não ofensa de alguma disposição legal.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa excede o âmbito do recurso de revista, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos livremente apreciáveis pelo julgador.
Todavia, no âmbito da decisão da matéria de facto, não pode o juiz responder a quesitos que se reportem a factos apenas susceptíveis de prova documental ou que estejam plenamente provados por documentos, sejam eles particulares ou autênticos, sob pena de a resposta dever ser considerada inexistente (artigo 646º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Consequentemente, tendo em conta o princípio da economia processual, não podem ser formulados quesitos sobre factos apenas susceptíveis de prova documental. Mas, no caso vertente, face ao conteúdo dos quesitos 1º a 8º da base instrutória, a conclusão é no sentido de que são susceptíveis de prova testemunhal.
Ora, em relação aos mencionados quesitos, foi produzida prova testemunhal em audiência de discussão e julgamento, a qual foi gravada e transcrita e que a Relação apreciou, expressando inexistirem quaisquer elementos de prova, mormente documentos ou testemunhais suficientes para alterar a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto aos pontos sétimo e oitavo da base instrutória e salientou que, pelo menos desde 22 de Novembro de 1999, o embargante ficou ciente de que sobre o imóvel em causa pendia a penhora ordenada na execução tal como fora concluído na sentença recorrida.
Considerando o referido juízo de prova da Relação, baseado no princípio da livre convicção, não pode este Tribunal sindicá-lo, pelo que inexiste fundamento legal para alteração da decisão da matéria de facto proferida nas instâncias.
4.
Vejamos agora se a Relação infringiu ou não alguma disposição legal sobre prova legalmente exigida em relação a algum facto.
Afirmou o recorrente não haver prova da sua notificação do auto de penhora nem que lhe tenha sido entregue cópia e que, por isso, não podia o tribunal considerar isso provado por acordo das partes.
A este propósito está provado que o recorrente foi citado, nos termos do artigo 119º do Código do Registo Predial, no dia 22 de Novembro de 1999, na qualidade de titular inscrito no registo predial para, em dez dias, declarar se o imóvel constante do auto de penhora lhe pertencia.
Importa salientar que a referida citação ocorreu por via de carta registada com aviso de recepção, ou seja, trata-se de facto provado por via de documento idóneo para o efeito, constante do processo da acção executiva, e que a Relação só considerou provado por acordo das partes da junção nesse acto da fotocópia do auto de penhora.
Isso foi motivado a partir da afirmação do recorrente, na petição de embargos, de que só havia tido conhecimento do acto de penhora há cinco dias, na altura do contacto do encarregado da venda do prédio, e da resposta da recorrida, no âmbito da descrição do mencionado acto de citação, no sentido de que lhe fora junto fotocópia do acto de penhora, afirmação que o primeiro não negou na réplica.
O procedimento de embargos em causa seguiu, considerando o respectivo valor processual, os termos do processo ordinário (artigos 357º, nº 1, 462º, nº 1, do Código de Processo Civil e 24º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro).
O referido facto afirmado pela recorrida, face à fundamentação do recorrente na petição de embargos, envolvido no fundamento caducidade do direito de embargar, assume a natureza de excepção peremptória (artigo 487º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O recorrente podia, por isso, na réplica, impugnar o referido facto, cuja prova não depende, como é natural, de documento, e, como o não fez, a conclusão é no sentido de que o mesmo devia ser considerado admitido por acordo das partes (artigos 490º, nº 2, 502º, nº 1 e 505º do Código de Processo Civil).
A Relação, perante o acordo das partes quanto ao mencionado facto, envolvido de prova plena, cumpriu a lei ao considerá-lo como tal no acórdão recorrido (artigos 659º, nº 3, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
De qualquer modo, tendo em conta a menção no registo predial do acto de penhora do prédio desde 8 de Outubro de 1999 e a citação que lhe foi feita no dia 22 do mês seguinte, a falta de prova do mencionado facto não implicaria, só por si, a conclusão de que o recorrente não conheceu por daquela citação do aludido acto de penhora.
5.
Invoca o recorrente, no que concerne à acção executiva, por um lado, a não afixação de editais para citação dos credores nem o termo da penhora na porta do prédio nem na junta de freguesia e a sua não citação pessoal e, por outro, que lhe não foi notificado o auto de penhora nem entregue cópia.
Afirmou, com base nisso, a nulidade da citação, invocou a violação dos artigos 195º, alíneas a), c) e e), 198º, 199º e 203º do Código de Processo Civil, e que devia anular-se todo o processado a partir da apresentação do requerimento executivo ou da nomeação do prédio à penhora.
Independentemente da legitimidade ou ilegitimidade do recorrente para arguir nos embargos de terceiro vícios processuais que se reportam à acção executiva em que não é parte, sucede que nem a recorrente nem a recorrida suscitaram esta problemática nos artigos dos embargos de terceiro, pelo que não foi apreciada no tribunal da primeira instância nem podia ser conhecida pela Relação.
Apenas suscitou essa problemática nos recursos, naturalmente para dela extrair efeitos jurídico-processuais vantajosos, naturalmente de levantamento do acto de penhora.
Mas os recursos são meios instrumentais ao reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para proferir decisões sobre matéria nova, isto é, não submetida à apreciação do tribunal de que se recorre (artigos 676º, n.º 1, e 690º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Decorrentemente, não podia a Relação conhecer da referida questão, por ser nova, porque não foi suscitada nem conhecida no tribunal da 1ª instância, tal como este Tribunal dela não pode conhecer.
6.
Vejamos agora se os factos que devem ser considerados provados implicam ou não a conclusão de caducidade do direito de embargar.
A Relação, face aos factos que considerou provados expressou que, no dia 21 de Novembro de 2001, data da dedução dos embargos, há muito que havia decorrido o prazo a que alude o artigo 313º, nº 2, do Código de Processo Civil e que, por isso, era correcta a sentença recorrida ao declarar a extemporaneidade dos embargos e quedava prejudicado o conhecimento das demais questões.
Se a penhora ofender a posse ou o direito de propriedade incompatível com a sua realização de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-los valer, deduzindo embargos de terceiro (artigo 351º, nº 1, do Código de Processo Civil).
É incompatível com o acto de penhora o direito de terceiro derivado, além do mais, da posse ou da propriedade, impeditivo da realização da respectiva função, designadamente a venda no processo de execução.
Expressa, por seu turno, o nº 2 do artigo 353º do Código de Processo Civil dever o embargante deduzir a sua pretensão, mediante petição, nos trinta dias subsequentes àquele em que a diligência foi efectuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.
A prova de que os embargos de terceiro foram deduzidos mais de trinta dias depois do conhecimento do acto judicial ofensivo do direito substantivo do terceiro deve ser produzida pelo embargado (artigo 342º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O despacho liminar de recebimento dos embargos de terceiro só assegura o seu prosseguimento, pelo que os factos que lhes servem de suporte podem ser infirmados pelo embargado no âmbito do exercício do contraditório (artigo 357º, nº 1, e 358º do Código de Processo Civil).
Ora, provado que ficou que o recorrente conheceu do acto de penhora em causa, pelo menos no dia 22 de Novembro de 1999, certo é que, no dia 21 de Novembro de 2001, já há muito havia passado o prazo de trinta dias a que se reporta o artigo 353º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Verifica-se, por isso, o facto do decurso do tempo, excepção peremptória de caducidade do direito de embargar, implicante da improcedência dos embargos (artigos 144º, nº 4 e 487º, nº 2, do Código de Processo Civil e 328º e 329º do Código Civil).
Em consequência, os factos provados sustentam nos termos da lei o conteúdo do acórdão da Relação confirmativo da sentença proferida no tribunal da 1ª instância que julgou improcedentes os embargos de terceiro com fundamento na caducidade do direito de embargar.
Perante o referido fundamento de improcedência dos embargos de terceiro queda prejudicado o conhecimento por este Tribunal das questões relativas ao mérito dos mesmos, isto é, as concernentes ao direito de propriedade e de posse da titularidade do recorrente sobre o prédio penhorado.
E não tem qualquer fundamento legal, no confronto com o efeito por ele pretendido nos embargos de terceiro em análise, a afirmação do recorrente de que podia reivindicar o prédio a todo o tempo, naturalmente porque isso não ocorreu nem podia ocorrer no quadro processual envolvente.
7.
Vejamos, finalmente, se a interpretação feita não acórdão recorrido do artigo 119º do Código do Registo Predial infringe ou não alguma norma ou princípio constante da Constituição.
Afirmou o recorrente ser inconstitucional e violadora do seu direito de propriedade a errada e literal interpretação da segunda parte do n.º 3 daquele artigo, acrescentando que face à prova produzida o prédio lhe pertence.
A Constituição expressa, no artigo 62º, nº 1, a todos ser garantido o direito de propriedade privada e a sua transmissão em vida ou por morte.
Expressa, por seu turno, o artigo 119º do Código do Registo Predial, além do mais que aqui não releva, por um lado, no nº 1, que havendo registo provisório de penhora de bens inscritos a favor de pessoa diversa do executado, deve o juiz ordenar a sua citação para no prazo de dez dias declarar se o prédio lhe pertence
E, por outro, nos termos do nº 3 daquele artigo, que se a referida pessoa não fizer alguma declaração será expedida certidão do facto à conservatória com vista à conversão oficiosa do registo.
Finalmente, conforme o nº 3 do referido artigo, se o citado declarar que os bens lhe pertencem, o juiz remeterá os interessados para os meios processuais comuns e expedir-se-á à conservatória competente certidão do facto com a data da notificação da declaração para anotação no registo.
A citação do titular inscrito para os fins previstos neste artigo destina-se a dar-lhe conhecimento de que foi penhorado, em execução movida contra terceiro, um prédio inscrito em seu nome, para que ele, se for seu dono, possa obstar ao prosseguimento da execução e evitar a sua venda.
O silêncio do titular inscrito, citado nos termos do nº 1 deste artigo, tem apenas o efeito de expedição de certidão à conservatória do registo predial para conversão oficiosa do registo provisório da penhora em registo definitivo, e a remessa dos interessados para os meios comuns depende de o citado declarar que os bens lhe pertencem.
Não obstante o quadro de alegação do recorrente, na realidade, não está em causa no recurso a infracção do disposto neste artigo, certo que dele não é objecto a legalidade ou a ilegalidade, em relação ao acto de penhora, da conversão do registo provisório do acto de penhora em registo definitivo.
Com efeito, a alusão no processo ao disposto neste artigo deriva apenas do facto de o conhecimento do acto de penhora ter decorrido da citação operada ao recorrente, na sua qualidade de terceiro em relação à acção executiva e com inscrição no registo a seu favor do direito de propriedade sobre o prédio penhorado.
Mas o normativo com base no qual o acórdão recorrido considerou a caducidade do direito de embargar do recorrente foi, naturalmente, conforme já se viu, o do artigo 353º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Tendo em conta a dinâmica meramente processual que está em causa nos embargos de terceiro e nos recursos, não se vislumbra que a decisão que julgou os embargos improcedentes por virtude de o recorrente os instaurar depois do prazo de trinta dias a partir do conhecimento por ele do acto de penhora do prédio envolva interpretação do artigo 119º do Código do Registo Predial em sentido contrário ao que dispõe o artigo 62º, nº 1, da Constituição.
Improcede, por isso, o recurso.
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.
Lisboa, 27 de Abril de 2005.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís