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RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
MORA
INÍCIO
Sumário
I - Para haver mora, não basta a interpelação do devedor.
II - Para que haja mora, além da culpa do devedor e, consequentemente da ilicitude do retardamento da prestação, é ainda necessário que esta seja certa, líquida e exigível.
III - Não há culpa do devedor quando ele não cumpre apenas por não saber, nem ter o dever de saber qual o montante exacto da dívida.
IV- Diz-se ilíquida a obrigação cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado.
V- No domínio da responsabilidade contratual, o simples facto do credor pedir quantia certa, avaliando os danos por sua conta e risco, não significa que a dívida se torne líquida com a petição inicial, pois só se tornará líquida com a decisão.
VI - Líquido ou específico será apenas o pedido formulado, mas não a obrigação, pelo que os juros de mora apenas são devidos a partir da decisão judicial que fixe o montante da indemnização.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 1-3-00, A- Indústria de Cortiças, S.A., instaurou a presente acção ordinária contra a ré Companhia de Seguros B, L.da, pedindo a condenação desta:
a) - a pagar-lhe a quantia de 21.005.630$00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
b) - caso assim se não entenda, ser a ré declarada responsável pelo pagamento das indemnizações devidas pela autora à C, no montante de 15.314.220$00, e à D, no valor de 5.691.410$00, acrescidas de juros à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Para tanto, alegou resumidamente, o seguinte:
Celebrou com a ré um contrato de seguro, do ramo Responsabilidade Civil de Produtos, tendo por objecto a garantia "da responsabilidade civil legalmente imputável ao segurado por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, exclusivamente decorrentes de lesões corporais e/ ou materiais, causados a terceiros, em consequência da sua actividade industrial de fabrico de rolhas de cortiça, desenvolvida nas suas instalações, bem como provenientes do fornecimento de produtos defeituosos ".
No desenvolvimento dessa actividade, a autora forneceu às sociedades "C" e " D ", sediadas, respectivamente, na Alemanha e na Suécia, determinadas quantidades de rolhas, tendo elas reclamado que essas rolhas tinham defeitos, concretamente, que as enviadas para a primeira apresentavam pingadeiras, gerando prejuízos de DEM 149.000,00, e as remetidas para a segunda provocaram coloração na bebida e partículas de rolhas nas garrafas, originando prejuízos de SEK 244.855,00, tudo no total de 21.005.630$00.
As reclamações desses alegados prejuízos foram imediatamente comunicadas pela autora á ré, mas esta não assumiu qualquer posição.
Por virtude deste impasse provocado pela ré, que, na sua qualidade de seguradora, estava obrigada a assumir os reclamados prejuízos, a autora deixou de receber o preço das rolhas fornecidas àquela sociedade, ficando com a sua imagem comercial afectada e em risco de perder negócios futuros.
A ré contestou, aceitando a existência do contrato de seguro, mas negando a obrigação do pagamento dos reclamados prejuízos, quer à autora, quer às sociedades identificadas na petição, por falta de prova da existência dos defeitos e do valor dos prejuízos.
Acrescenta que, ainda que fosse de atribuir qualquer indemnização à autora, deverá esta ser deduzida da franquia contratual de 10% que foi estabelecida entre as partes, sendo os juros devidos apenas desde o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Houve réplica.
Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que, na procedência parcial da acção, decidiu:
1 - absolver a ré do pedido principal, consistente na sua condenação a pagar à autora a quantia de 21.005.630$0, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
2 - julgar parcialmente procedente o pedido subsidiário e, por isso, declarar a mesma ré responsável pelo pagamento das indemnizações devidas pela autora à "C", que actualmente se cifram em 68.748,19 euros, e à "D ", no montante de 23.865,78 euros, acrescidas de juros desde a citação (em 16-3-00) e até integral pagamento, à taxa legal vigente, que actualmente é de 12% ao ano.
Apelou a ré, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 19-10-04 negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Continuando inconformada, a ré recorreu de revista, onde conclui:
1- O pedido subsidiário, que foi julgado parcialmente procedente, tem a natureza de pedido de simples apreciação, de declaração de direitos de crédito sobre a ré, das sociedades clientes da autora.
2 - Como tal, a ré só ocorre em mora a partir da interpelação que vier a ser efectuada pelas lesadas, para pagamento das indemnizações cuja titularidade lhes foi reconhecida.
3 - Ainda que assim se não entenda, os referidos créditos eram ilíquidos, iliquidez não imputável à ré.
4 - A tanto não obsta o facto da autora ter concretizado os pretensos montantes indemnizatórios, até porque se veio a provar e a ser considerado na decisão que a autora pediu mais do que aquilo que era devido pela ré.
5 - Assim, os créditos só se tornaram líquidos pela sentença.
6 - Por tal razão os juros de mora só serão devidos a partir do trânsito em julgado da sentença.
7 - Ao decidir contrariamente, foram violados os arts 4, nº2, al. a) e b) do C.P.C., bem como o preceituado no art. 805, nº3, 1ª parte, do C.C.
A autora contra-alegou em defesa do julgado.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, ao abrigo dos arts 713, nº6 e 726 do C.P.C.
A única questão a decidir consiste em saber a partir de que momento a ré deve ser considerada em mora, para efeito do início da contagem dos juros moratórios sobre os montantes das ajuizadas indemnizações devidas pela autora à "C" e à "D" e por cujo pagamento a mesma ré foi declarada responsável, em face do estipulado no invocado contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré.
A Relação, tal como a 1ª instância, decidiu que há mora desde a citação e, por isso, declarou a ré responsável pelo pagamento de juros moratórios desde a data da sua citação.
A recorrente entende que só haverá mora a partir da interpelação que vier a ser feita pelas lesadas para proceder ao pagamento das indemnizações cuja titularidade lhes foi reconhecida ou, quando muito, a partir do trânsito em julgado da sentença proferida nestes autos, por só, então, o crédito se ter tornado líquido.
Que dizer ?
Provou-se que as sociedades "C " e "D " reclamaram perante a autora a existência dos defeitos das rolhas que esta lhes forneceu e o pagamento dos respectivos prejuízos que alegaram ter sofrido, nos montantes de DEM 149.400,00 e de SEK 244.855,00, respectivamente.
A autora transmitiu tal reclamação à ré, por cartas de 27-10-98 e de 22-2-99, pedindo que esta tomasse as devidas providências, a fim de se apurarem as causas do sinistro e de assumirem, perante terceiro, a respectiva responsabilidade.
Todavia, a ré não assumiu qualquer posição perante a autora, nem perante as sociedades lesadas.
A autora também não procedeu a nenhum pagamento a qualquer daquelas sociedades, a título de indemnização pelos prejuízos reclamados.
A responsabilidade da ré é uma responsabilidade transferida, resultante da outorga do invocado contrato de seguro, através do qual esta garantiu, além do mais, o pagamento dos danos causados a terceiros, provenientes do fornecimento de produtos defeituosos, por parte da autora.
A ré seguradora responde na mesma medida da autora, ressalvado o desconto da franquia de 10% , tal como ficou clausulado no contrato de seguro.
Foi extrajudicialmente interpelada para cumprir, por banda da autora, através daquelas cartas de 27-10-98 e de 22-2-99, tendo a ré sido declarada responsável, nesta acção, pelo pagamento das indemnizações de 68.748,19 euros e de 23.865,78 euros devidas pela mesma autora, respectivamente, à "C" e à "D".
Assim sendo, não é defensável que a recorrente só se constitua em mora a partir da interpelação que vier a ser efectuada pelas lesadas, para pagamento das indemnizações cuja titularidade lhes foi reconhecida.
Ao atribuir eficácia executiva às sentenças de condenação, a lei quis abranger nesta designação "todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade " ( Alberto dos Reis , Processo de Execução, Vol. I, 3ª ed. pág. 127).
Para que uma sentença ou despacho possam basear acção executiva, "não é preciso que condenem no cumprimento duma obrigação; basta que essa obrigação fique declarada ou constituída por eles " ( Manual da Acção Executiva, 3ª ed, pág. 39).
Acresce que o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir - art. 805, nº1, do C.C.
Todavia, no domínio da responsabilidade contratual, importa ter em conta que se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor - art. 805, nº3, do C.C.
Efectivamente, para que haja mora, além da culpa do devedor e, consequentemente da ilicitude do retardamento da prestação, consideram os autores necessário que a prestação seja certa, líquida e exigível.
Diz-se ilíquida a obrigação "cuja existência é certa, mas cujo montante não está ainda fixado (juros não contados; encontro de créditos e débitos que ainda se não fez, como no caso da gestão, do mandato, etc; danos cujo valor ainda se não determinou, na obrigação de indemnização)" - Antunes Varela , Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª ed., pág. 114, nota 1.
Se a obrigação é ilíquida, por não estar ainda apurado o montante da prestação, a mora não se verifica, por não haver culpa do devedor, no atraso do cumprimento.
Ora, no caso concreto, a falta de liquidez dos créditos não é imputável à recorrente, por esta não estar senhora, desde o cumprimento defeituoso da autora e da reclamação apresentada pelas ditas sociedades de todos os pressupostos necessários ao cálculo exacto do que deve às credoras (Ac. S.T.J. de 27-3-03, Col. Ac. S.T.J., XI, 1º, 145).
É às referidas sociedades "C" e "D", como lesadas, que incumbe a prova dos danos que sofreram com o cumprimento defeituoso da autora e do seu exacto valor - art. 487, nº1, do C.C.
Na economia desta acção, face aos pedidos formulados e à respectiva causa de pedir, tal prova pertence à autora.
Assim sendo, é razoável e equitativo que os juros moratórios só sejam devidos e contados a partir da decisão judicial que fixe o montante da indemnização, pois, até então, desconhece-se a importância exacta da dívida.
O simples facto do credor pedir quantia certa, avaliando os danos por sua conta e risco, não significa que a dívida se torne líquida com a petição inicial, pois só se tornará líquida com a decisão.
Líquido ou específico será apenas o pedido formulado, mas não a obrigação (Ac. S.T.J. de 28-2-85, Bol. 344-427)
Já vimos que, para haver mora, não basta a interpelação do devedor.
E só há mora quando haja culpa do devedor, a qual inexiste se ele não cumpre apenas por não saber, nem ter o dever de saber qual o montante exacto da dívida.
In casu, a ré veio, até, a ser condenada em quantia inferior ao pedido.
Consequentemente, não pode afirmar-se que a recorrente procedeu com culpa, ao recusar-se a cumprir depois de ter sido citada e enquanto não foi proferida a sentença da 1ª instância, pois esse comportamento não significa retardamento culposo da sua obrigação, não existindo mora, nem lugar ao percebimento de juros moratórios até ao momento da decisão.
Acontece que da sentença da 1ª instância só foi interposto recurso para sindicar o momento a partir do qual são devidos os juros moratórios.
Quanto à fixação dos valores da indemnização a pagar às sociedades lesadas, a sentença transitou em julgado, pois os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso - art. 684, nº4, do C.P.C.
Em face de tudo o que ficou exposto, os juros de mora não são devidos desde a data da citação, como foi decidido pelas instâncias, mas antes desde a data da sentença da 1ª instância, em que os créditos devidos pela autora às sociedades "C" e "D" se tornaram líquidos.
Termos em que, concedendo parcialmente a revista, revogam o Acórdão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância, na parte em que determinou o pagamento de juros de mora desde a data da citação, juros esses por cujo pagamento a ré é antes responsável desde a data da sentença da 1ª instância, proferida em 27-2-04.
Em tudo o mais, mantém-se o decidido.
Custas pela recorrente e recorrida, na proporção do vencido.
Lisboa, 27 de Abril de 2005
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Ponce Leão