EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
OBRIGAÇÃO ALTERNATIVA
Sumário

I - A excepção do não cumprimento do contrato não se reconduz a qualquer inexigibilidade da obrigação exequenda, mas antes se enquadra na previsão do art. 813, al. g) do C.P.C.

II - Através da execução, não se trata de cumprir um contrato bilateral, mas antes de executar a sentença , transitada em julgado, que já declarou e definiu o direito, impondo obrigações para ambas as partes.

III - Por isso, a excepção de não cumprimento do contrato já devia ter sido deduzida no processo declarativo, para lá poder apreciada e considerada, na medida em que não respeita a factualidade que só tenha ocorrido após o encerramento da discussão no processo de declaração.

IV- Na falta de determinação em contrário, a escolha da prestação alternativa pertence ao devedor.

V - Tal escolha não carece de ser feita por escrito, por vigorar aqui o princípio da liberdade da forma.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em acção declarativa, instaurada pela ora exequente-embargada, A - Sociedade Técnica de Construções Civis, L.da, contra a ora executada-embargante Ramirez e Companhia (Filhos), L.da, que aí deduziu reconvenção, foi proferida sentença, transitada em julgado, que julgou parcialmente procedentes a acção e a reconvenção, decidindo:

a) - condenar a ré a pagar à autora a quantia de 17.512.610$00;
b) - condenar a autora a eliminar os defeitos do pavimento da fábrica, nos termos indicados, ou, em alternativa, a pagar à ré a quantia de 8.000.000$00, compensando-se o valor necessário ao seu crédito ;
c) - condenar a autora a executar a cobertura do tecto dos escritórios da fábrica, ou, em alternativa pagar à ré o valor equivalente, a liquidar em execução de sentença.

A A, instaurou execução para pagamento de quantia certa, no valor de 47.448,70 euros, escolhendo o segundo termo da alternativa da sua condenação referida em b) supra, e operando a compensação aí prevista com o seu crédito da alínea a).


A executada B, L.da, deduziu os presentes embargos de executado, invocando, resumidamente:

1 - A excepção de não cumprimento pela exequente das prestações em que foi condenada na referida sentença (art. 428 do C.C.) - nomeadamente, a execução da cobertura do tecto, com a alternativa do pagamento do valor equivalente, que a embargante pode compensar na sua dívida - determina a inexigibilidade da obrigação exequenda (art. 813, al. e) do C.P.C.) ;

2- Porque ao dono da obra cabe a direito de eliminação dos defeitos (art. 1221, nº, do C.C.), essa determinação legal conferia à embargante, como dona da obra, a escolha das prestações em alternativa, aludidas nas alíneas b) e c) supra (arts 543, nº2, do C.C. e 468, nº1, do C.P.C.);

3 - Tanto assim é que parte da prestação alternativa em que a embargada foi condenada ainda é ilíquida e necessita de liquidação, a ser efectuada em execução de sentença, pela embargante credora ;

4 - Só com prévia interpelação da embargante para esta escolher a prestação é que a embargada poderia proceder à acção executiva ;

5 - Subsidiariamente, a não se entender assim, a embargada efectuou irrevogavelmente, a sua escolha, pela prestação de facto da eliminação dos defeitos do pavimento da fábrica, ainda que de forma tácita, ao fazer comparecer, após o trânsito da sentença, na fábrica da embargante, um seu legal representante, acompanhado de técnicos, que procederam à vistoria, análise e medição do pavimento, com vista a realizar a sua reparação (art. 549 do C.C.), o que exclui o recurso à execução para pagamento de quantia certa;

6 - Ainda subsidiariamente, mesmo que assim não fosse entendido, a embargada nunca declarou, por escrito, à embargante que pretendia escolher a prestação de pagamento em numerário, o que teria de preceder a execução;

7 - Sendo a execução decorrente da sentença uma só, mas cabendo à embargante o ónus de liquidar em execução de sentença o valor equivalente à execução da cobertura do tecto dos escritórios da fábrica, só a embargante poderá escolher a prestação ;

8 - E, carecendo parte da obrigação da embargada de ser liquidada em execução de sentença, não poderia a embargada dar à execução esse título, sob a forma ordinária, pois se lhe oporia o disposto no art. 465, al. b) e nº2, do C.P.C.

9 - A embargada nunca chegou a iniciar as obras faltosas.


Os embargos foram contestados.

No despacho saneador, o Ex-mo Juiz, conhecendo do mérito da causa, julgou os embargos improcedentes.

Apelou a embargante, mas sem êxito, pois a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 28-10-04, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

Continuando inconformada, a embargante recorreu de revista, onde resumidamente conclui:
1- Até hoje, a recorrida não procedeu a nenhumas das prestações em que foi condenada pelo título executivo, pelo que ocorre a excepção do não cumprimento do contrato - art. 428 do C.C.

2 - A obrigação da recorrida, em que foi condenada no título, era uma obrigação alternativa, existindo, nos termos do disposto no art. 543, nº2, do C.C., determinação legal, atribuindo ao credor a escolha da prestação.

3 - Isto porque a obrigação referida constitui um direito do dono da obra à eliminação dos defeitos, nos termos do art. 1221, nº1, do C.C.

4 - Por isso, é à recorrente- embargante que compete o direito de liquidar, em execução de sentença, esse valor alternativo.

5 - Ocorre inexigibilidade da obrigação exequenda, porque, sendo única a obrigação resultante da decisão judicial e sendo constituída por obrigação alternativa, a recorrida não podia socorrer-se da acção executiva sem que interpelasse a recorrente para que procedesse, previamente, à escolha da prestação.

6 - Não é lícito à recorrida efectuar o recurso ao meio processual da acção executiva para a pagamento de quantia certa, porque a própria recorrida efectuou a escolha da prestação, ao declarar pretender executar a obra, no local.

7 - Deve ser determinada a ampliação da matéria de facto, por a recorrida ter impugnado a factualidade invocada pela embargante de que a embargada procedeu à escolha da prestação, ao declarar pretender executar a obra.

8 - A recorrida nunca poderia, sem mais, proceder à instauração da acção executiva para pagamento de quantia certa, sem demonstrar que previamente e por escrito, havia notificado a embargante dessa escolha alternativa.

9 - Pertence à embargante o direito de liquidar em execução de sentença o valor equivalente à execução da cobertura do tecto dos escritórios da fábrica e só a embargante pode escolher a prestação, uma vez que não se encontra liquidada essa obrigação alternativa.

10 - Como parte da obrigação da recorrida e na qual esta foi condenada no título executivo carece de ser liquidada em execução de sentença , não pode a embargada dar à execução esse título sob a forma ordinária, por não ser permitido pelo art. 465, nº1, al. b) e nº2, do C.P.C.

11 - Ao contrário do decidido pela Relação, a sentença é nula, por não se ter pronunciado sobre as causas de pedir subsidiárias.

12 - O acórdão recorrido deve ser revogado ou, subsidiariamente, deve determinar-se a ampliação da matéria de facto.

A embargada contra-alegou em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Remete-se para os factos que foram considerados provados no Acórdão recorrido - art. 713, nº6 e 726 do C.P.C.

As questões suscitadas pela recorrente já foram analisadas e adequadamente decididas, quer no saneador-sentença da 1ª instância, quer no Acórdão recorrido.
Relativamente à pretensa omissão de pronúncia, dir-se-á que a sentença recorrida também se pronunciou sobre as causas de pedir subsidiárias, como já ficou suficientemente evidenciado no Acórdão impugnado.
Toda a fundamentação da sentença e do Acórdão em crise é reveladora da apreciação da matéria das causas de pedir principal e subsidiárias.
Assim, bastaria concluir que o Acórdão recorrido é de confirmar pela fundamentação, quer de facto, quer de direito que dele consta, a que se adere e para que se remete, ao abrigo dos arts 713, nº 5 e 726 do C.P.C.

Todavia, quanto a alguns pontos em crise, poderá ainda acrescentar-se e precisar-se o seguinte:

1.
A excepção de não cumprimento do contrato, prevista no art. 428, nº1, do C.C., pode definir-se como:
- "uma verdadeira forma de defesa por excepção, que consiste na invocação de um direito ao cumprimento simultâneo, direito esse que permite ao demandado paralisar o direito à prestação, alegado pelo outro contraente, mas que se não for invocado pelo primeiro, deixa a este o caminho aberto para obter a sua prestação ( ainda que não tenha cumprido ou oferecido o cumprimento simultâneo) ;
- uma excepção material ( ou de direito material ), que se funda em razões de direito substantivo ( o princípio do cumprimento simultâneo das obrigações sinalagmáticas) e não de direito adjectivo ou processual;
- uma excepção dilatória, uma vez que corresponde a uma forma de defesa meramente temporária, somente subordinada à execução simultânea da contra-obrigação " ( José João Abrantes, A Excepção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português , pág. 154).

Enquanto excepção de direito material que é, a excepção de não cumprimento do contrato deduzida pela embargante não se reconduz a qualquer inexigibilidade da obrigação exequenda, como esta alega, mas antes se enquadra na previsão do art. 813, al. g) do C.P.C., conjugado com o art. 933, nº2, do mesmo diploma.
O que significa que a excepção do não cumprimento do contrato já devia ter sido deduzida no processo declarativo, para lá ser apreciada e poder ser eventualmente considerada, pois não respeita a factualidade que só tenha ocorrido após o encerramento da discussão no processo de declaração.
Não se trata, presentemente, de cumprir um contrato bilateral, mas antes de executar uma sentença judicial, transitada em julgado, que já declarou e definiu o direito, impondo obrigações para ambas as partes.
A imperatividade do cumprimento dessas obrigações resulta, directamente, da própria decisão judicial e não depende de qualquer condição, designadamente do cumprimento da outra parte.
Não existe qualquer reciprocidade ou interdependência na condenação das partes nos pedidos supra referidos.
A exequente e a executada não foram condenadas no cumprimento simultâneo das respectivas prestações.
Não tendo a embargada executado a cobertura do tecto dos escritórios da fábrica, cumpria à embargante requerer a execução da sentença.

gante não ter executado a sentença, na parte referente às prestações da embargada, que esta deverá ficar condicionada no exercício do seu direito de crédito.
Por isso, a recorrente carece de razão quando sustenta que, no tocante ao cumprimento da prestação que lhe compete, a recorrida tem de executar a cobertura do tecto dos escritórios da fábrica, ou, em alternativa, pagar à ora recorrente o valor equivalente, a liquidar em execução de sentença, de tal modo que só em momento posterior é que poderá executar a sentença, na parte respeitante à condenação da recorrente.

2.
Por outro lado, é de reafirmar que a escolha da prestação alternativa de pagamento da quantia de 8.000.000$00, constante da alínea b) da parte decisória do título executivo, pertence à embargada, como devedora, e não à embargante - arts 543, nº2, do C.C. e 803, nº1, do C.P.C.
Essa escolha não carece de ser feita por escrito, como condição prévia à instauração da acção executiva, por vigorar aqui o princípio da liberdade da forma - art. 219 do C.C.
De qualquer modo, a embargada declarou à embargante a sua escolha, por escrito ( prestação de pagamento em numerário), no requerimento inicial da execução.
Ao contrário do que sustenta a embargante, o invocado art. 1221 do C.C. não constitui uma excepção ao regime geral previsto no art. 543, nº2, do mesmo Código, onde se estabelece que "na falta de determinação em contrário, a escolha pertence ao devedor ".
Com efeito, o citado art. 1221 nem sequer atribui ao dono da obra qualquer faculdade de escolha.
Tal preceito regulamenta a eliminação dos defeitos, nos contratos de empreitada, dispondo:
- "se os defeitos puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação ; se não puderem ser eliminados, o dono pode exigir nova construção ".
O preceito diz apenas isto, cuja interpretação não oferece dúvidas.
"A contrario" retira-se do aludido art. 1221 que, se a supressão dos defeitos for possível, não poderá o dono da obra exigir ao empreiteiro uma nova construção.
Mas não é admissível qualquer outra interpretação, designadamente a pretendida pela embargante, no sentido de retirar à embargada a legitimidade para escolher a prestação que deseja cumprir.
Assim, no que se refere a esta obrigação que constitui crédito líquido, a embargada procedeu em conformidade com a respectiva compensação, nos termos do art. 847 do C.C.
A iliquidez de uma das obrigações não impede o credor da outra de usar da compensação - art. 847, nº3, do C.C.
De resto, é entendimento pacífico que " no caso de obrigação só parcialmente líquida, pode esta executar-se imediatamente. No que concerne à parte ilíquida, pode o exequente requerer a sua liquidação na sua pendência " (Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução , pág. 94).
É a solução que também decorre do art. 810, nºs 1, 2 e 3 do C.P.C.
Ora, as obrigações que carecem de ser liquidadas em execução de sentença são aquelas em que a embargada foi condenada, sendo líquida a obrigação cuja execução está aqui em questão, pelo que nada obsta à forma processual seguida.

3.
No que respeita à obrigação ilíquida, consubstanciada na alínea c) da parte decisória do título executivo ( execução da cobertura do tecto dos escritórios da fábrica ou pagamento do valor equivalente, a liquidar em execução de sentença), não era possível à embargada realizar qualquer compensação, por carecer de legitimidade para tanto.
Por um lado, exige-se como requisito, para a compensação, que as obrigações tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade - art. 847, nº1, al. b), do C.C.
Ora, é manifesto que uma prestação de quantia certa e uma prestação de facto não revestem a mesma espécie e qualidade.
Por outro lado, não pode olvidar-se a disciplina do art. 806 nº1, do C.P.C., onde se preceitua:

" Quando a obrigação for ilíquida e a liquidação não depender de simples cálculo aritmético, o exequente especificará no requerimento inicial da execução os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluirá por um pedido líquido ".
O que significa que a lei é peremptória em atribuir somente ao credor da obrigação ilíquida (no caso, a embargante) a faculdade de a tornar líquida, através do instituto da liquidação, a deduzir no competente requerimento executivo inicial.
Depois dessa liquidação estão reunidas todas as condições para se operar a escolha da prestação alternativa da alínea c).

4.
A recorrente também alega a necessidade de ampliação da matéria de facto, com a factualidade controvertida, por si invocada nos arts 36 a 50 da petição dos embargos, donde resulta que a embargada procedeu à escolha irrevogável da obrigação, como sendo de prestação de facto, consistente na eliminação dos defeitos do pavimento da fábrica, o que a impediria de intentar acção executiva para pagamento de quantia certa.
Mas sem razão.
É que os factos invocados não podem ser interpretados como revelação inequívoca de uma declaração, expressa ou tácita, nos termos do art. 217, nº1, do C.C., de escolha da questionada prestação, através da opção da efectiva eliminação dos defeitos do pavimento da fábrica, como bem se observa no Acórdão recorrido.
Sendo tal factualidade manifestamente inconcludente, não se justifica a pretendida ampliação da matéria de facto, face à sua irrelevância para a decisão da causa, por o processo conter já todos os elementos em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito - art. 729, nº3, do C.C.

Termos em que, na improcedência das conclusões das alegações, negam a revista e confirmam o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 31 de Maio de 2005
Azevedo Ramos,
Silva Salazar,
Ponce Leão.