ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
OMISSÃO
CULPA
CASO JULGADO FORMAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DANOS PATRIMONIAIS
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
INDEMNIZAÇÃO
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
TRIÂNGULO DE PRÉ-SINALIZAÇÃO
Sumário

I - O acidente de viação sub iudicio é exclusivamente imputável a facto ilícito e culposo do condutor do veículo ligeiro de mercadorias HF, desde logo porque, rodando de noite em tempo chuvoso a mais de 100 km/h, numa recta de boa visibilidade, com 500 metros de extensão, onde a velocidade estava, porém, limitada a 50 km/h, foi embater frontalmente com enorme violência, sem efectuar qualquer travagem, na parte lateral esquerda do pesado de mercadorias QA, que se encontrava a 250 metros do início da recta, atravessado na faixa de rodagem e ocupando toda a largura desta, no decurso de uma manobra de marcha atrás tendente a estacionar em parque existente no lado direito da estrada;
II - Por outro lado, o local não dispunha de iluminação pública, nem foi colocado triângulo de pré-sinalização de perigo, mas o QA tinha aos 4 piscas ligados, assim como os mínimos, os médios e as luzes de presença laterais, estando dotado de reflectores em ambos os lados, o que tudo o tornava perfeitamente visível a pelo menos 100 metros de distância, sendo a manobra outrossim coadjuvada e sinalizada por dois 2 ajudantes, um de cada lado do veículo;
III - Acresce que, nos termos do artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do Código da Estrada de 1994, o triângulo de pré-sinalização é obrigatório, de noite, «em quaisquer circunstâncias de imobilização do veículo ou de carga caída na faixa de rodagem ou na berma, salvo nos locais onde as condições de iluminação permitam um fácil reconhecimento a uma distância de 100m, sem prejuízo do disposto no presente Código quanto à iluminação dos veículos» - devendo ser colocado verticalmente, a não menos de 30 metros da rectaguarda do veículo ou da carga, de forma a ficar bem visível a pelo menos 100 menos de distância (n.º 3 do mesmo artigo);
IV - Trata-se, pois, de instrumento tipicamente vocacionado segundo a lei para sinalizar situações estáticas de imobilização de veículos ou de queda de carga, conspecto em que, além do mais, não sendo este o caso da manobra de marcha atrás em curso quando da colisão, os factos provados não consentem um juízo categórico de obrigatoriedade de utilização do dispositivo na situação em exame;
V - Ademais, a manobra aludida dispõe de regime próprio, compreendendo específicas prescrições e proibições (artigos 46.º e 47.º do Código da Estrada), que os factos não permitem considerar inobservado;
VI - Por fim, atendendo às circunstâncias em elevado grau arriscadas de condução automóvel criadas pelo condutor do HF, as quais nenhuma das precauções descritas conseguiu neutralizar, a omissão de colocação do triângulo não assumiu natureza causal do acidente;
VII - A proprietária do veículo QA sofreu prejuízos em consequência do acidente, resultantes, por um lado, de danos materiais no veículo, cuja reparação importou em 17 990, 42 €, e, por outro lado, da privação do uso lucrativo da viatura devido a paralisação, quantificados em 6 284, 88 €, indemnizações que a seguradora responsável foi condenada em 1.ª instância a ressarcir.
Questionando, pois, a seguradora em apelação tão-somente o quantitativo dos danos materiais, a sentença transitou no tocante à indemnização pela paralisação, pelo que, conhecendo a Relação outrossim deste dano, considerando-o não indemnizável e revogando a sentença nessa parte, incorreu na nulidade de excesso de pronúncia tipificada na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que o Supremo deve declarar e suprir, considerando em tal medida modificado o acórdão sub iudicio no sentido da respectiva decisão condenatória em 1.ª instância (artigos 668.º, n.º 3, e 731.º, n.º 1, do mesmo Código);
VIII - Não merece, todavia, reparo, procedendo ao invés de um juízo acertado em face do artigo 566.º do Código Civil, a decisão do acórdão recorrido que, atendendo ao facto de a viatura averbar na altura do acidente quase 10 anos de uso intenso, encontrando-se em estado considerado mau - por isso mesmo lhe havendo sido atribuído o valor comercial de 900 contos (4.489,18 €) e o de 200 contos (997,6 €) ao salvado -, concluiu que a reconstituição in natura através da reparação no aludido valor de 17.990,42 € era «excessivamente onerosa para o devedor», na acepção do n.º 1 do artigo 566.º, cingindo a condenação da seguradora pelos danos materiais no pesado QA à diferença entre aquelas duas verbas, correspondente a 3.491,59 €.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. "A" e esposa B (1) , residentes em Braga, instauraram no 3.º juízo cível do tribunal dessa comarca, em 17 de Setembro de 1998, contra a Companhia de Seguros C, S.A., com sede em Lisboa, a acção ordinária n.º 625/98, tendente à efectivação de responsabilidade civil emergente de colisão, a 6 de Novembro de 1997, pelas 3h00, na E.N. n.º 14, Braga/Vila Nova de Famalicão, ao Km 37,3, em Tebosa, entre o automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula HF, conduzido pelo seu proprietário, o filho dos demandantes D, que faleceu no acidente, e o pesado de mercadorias de matrícula QA, propriedade da sociedade Transportes E, Lda., conduzido sob a direcção efectiva e no interesse desta, no exercício de funções laborais, pelo seu funcionário Y, e segurado na ré.

O veículo ligeiro HF circulava no sentido Famalicão/Braga, com observância de todas as regras de trânsito, e foi embater na parte lateral esquerda do pesado, que se encontrava atravessado na estrada, ocupando a totalidade da faixa de rodagem, a estacionar em marcha atrás num armazém existente do lado direito, sem sinalizar a manobra fosse de que modo fosse.

Alegam danos patrimoniais e morais sofridos em consequência do acidente, que imputam pelo exposto exclusivamente a facto ilícito e culposo do condutor do pesado QA, pelos quais pedem a indemnização global de 20.135.267$00, acrescida dos juros legais a contar da citação.

Contestou a ré C, aduzindo por seu lado a culpa exclusiva do falecido, além da impugnação dos danos articulados.

2. Com base no mesmo sinistro, veio a sociedade de Transportes E, Lda. intentar, por seu turno, no mesmo juízo, em 31 de Dezembro de 1998, contra a Companhia de Seguros F, S.A., seguradora do ligeiro de mercadorias, a acção ordinária n.º 10/99, visando a indemnização de danos materiais ocasionados no veículo pesado QA e o ressarcimento de prejuízos emergentes da privação do uso deste devido à sua paralisação.

Pede pelas duas sortes de danos indemnizações num total de 6.336.755$00 e juros legais a contar da citação, alegando a culpa exclusiva do falecido condutor do ligeiro HF pela colisão: velocidade excessiva e falta de atenção deste, quando a manobra do pesado estava a ser efectuada numa recta de boa visibilidade, acompanhada de todas as sinalizações luminosas e coadjuvada por dois homens a pé, um de cada lado da viatura.

A "F" contestou os danos, atribuindo em todo o caso o acidente unicamente à responsabilidade do condutor do pesado.

3. Ao abrigo dos artigos 30.º e 275.º do Código de Processo Civil, foi requerida (fls. 49 e segs.) e deferida, por despacho de 21 de Maio de 1999 (fls. 62), a apensação da acção n.º 10/99 à acção n.º 625/98, passando a tramitar neste único processo.

E, prosseguindo os autos os termos legais (2)., veio a ser proferida sentença final, em 25 de Maio de 2004, concluindo ter a colisão sido ocasionada em exclusivo por facto ilícito e culposo do falecido, e decidindo consequentemente:
a) julgar na totalidade improcedente a acção n.º 625/98, e os pedidos nela formulados;
b) julgar parcialmente procedente a acção n.º 10/99, condenando a F a solver à Transportes E a indemnização global de 24.275,30 € (4.866.755$00), sendo 17.990,42 € (3.606.755$00) a título dos danos de reparação do pesado de mercadorias, e 6.284,88 € (1.260.000$00) pela privação do uso deste veículo durante 42 dias úteis de paralisação do mesmo, «sem qualquer actualização monetária», acrescida dos juros moratórios às taxas legais desde a citação até integral pagamento.

Apelaram sem sucesso os autores da pretérita acção n.º 625/98, A e esposa, impugnando a decisão de facto, por um lado, e sustentando, por outro, que a culpa da colisão deve em parte ser atribuída também ao condutor do veículo pesado, tendo, porém, a Relação de Guimarães negado provimento ao recurso, confirmando a sentença, no tocante a ambos os aspectos.

Também a ré F da primitiva acção n.º 10/99 apelou, alcançando um certo êxito junto da mesma Relação, que revogou em parte a sentença recorrida, quantificando os danos materiais do veículo pesado tão somente no montante de 3.491,5 € (700.000$00), ao qual cingiu a condenação, com irresponsabilização da recorrente por qualquer IVA, e bem assim pelo dano da paralisação, no valor de 6.284,88 €, que considerou não indemnizável.

4. Do acórdão neste sentido proferido, em 5 de Janeiro de 2005, recorrem de revista os vencidos autores na pregressa acção n.º 625/98, e a autora na acção n.º 10/99, formulando nas respectivas alegações as conclusões que seguidamente se reproduzem.

4.1. Eis assim as da revista de A e esposa:

1.ª «No momento do acidente estava a chover e não existia iluminação pública. Por outro lado, importa também referir que o veículo pesado de mercadorias se encontrava com os quatro piscas ligados, bem como as luzes de médios. No entanto, o veículo pesado de mercadorias encontrava-se completamente atravessado na estrada, pelo que essas luzes estariam na berma, não na faixa de rodagem por onde circulava o filho dos recorrentes;

2.ª «Acresce que no momento do acidente, não foi colocado qualquer triângulo de sinalização de perigo a assinalar a manobra e, embora tenha resultado provado que os ajudantes de motorista se encontravam um em cada lado do veículo pesado de mercadorias, a verdade é que não se encontravam visíveis, isto é, não usavam coletes reflectores ou eram portadores de lanternas, bem como se encontravam a apenas 5 metros do referido veículo;

3.ª «Ora, face a estes factos que resultaram provados, temos que seria de todo impossível ao filho dos recorrentes conseguir prever a presença do veículo pesado completamente atravessado na estrada. De facto, e tendo em conta que o veículo do filho dos recorrentes circulava com as luzes de médios ligados (pelo que poderia ver apenas à distância de 30 metros), temos que o condutor do veículo pesado de mercadorias também ele contribuiu para a eclosão do acidente, na medida em que não tomou as devidas precauções para executar a manobra que pretendia efectuar, nomeadamente de sinalização da referida manobra;

4.ª «Se é verdade que, face à matéria dada como provada, o filho do recorrentes contribuiu para a produção do acidente, também não deixa de ser verdade que o condutor do veículo pesado contribuiu para o mesmo acidente em igual medida, pois ao agir como se disse violou o disposto nos artigos 3.°, 35.° e 59.° do Código da Estrada, o que também foi a causa adequada do acidente;

5.ª «Na verdade, efectuava uma manobra verdadeiramente perigosa de estacionamento, ocupando a totalidade da faixa de rodagem, e sem estar devidamente sinalizado para o efeito. E a verdade é que não era previsível para o filho dos recorrentes que, num dia chuvoso e num local sem iluminação pública, se encontrava um veículo pesado a efectuar uma manobra de estacionamento sem qualquer sinalização a ocupar a totalidade da faixa de rodagem;

6.ª «Assim, entendem os recorrentes que o douto acórdão de fls. violou, entre outros, os artigos 3.°, 35.° e 59.° do Código da Estrada, e deveria ter atribuído uma quota parte da responsabilidade ao condutor do veículo pesado.»

Contra-alega a Companhia de Seguros C, pronunciando-se pela negação da revista, e a condenação em multa dos recorrentes como litigantes de má fé.

4.2. As conclusões da revista da sociedade Transportes E são, por sua vez, do seguinte teor:

1.ª «O Tribunal da Relação de Guimarães denegou o direito da recorrente à indemnização de 6.284,88 € relativa à indemnização pela perda do uso do veículo QA, durante 42 dias úteis em que não pôde dispor dele;

2.ª «O douto acórdão recorrido ao assim decidir violou o caso julgado, pois não houve recurso sobre esta parte da decisão de 1a instância, motivo por que tinha transitado em julgado;

3.ª «Quanto à reparação do veículo QA, que o douto acórdão recorrido não considerou, revogando a sentença de l.ª instância,

4.ª «afigura-se-nos, todavia, salvo melhor e mais esclarecida opinião em contrário, que não foi a decisão mais justa, mais equitativa e mais equilibrada, como tentaremos demonstrar;

5.ª «Um perito da demandada, assim convencionado chamar-se, avaliou o valor do veículo QA em 900.000$00 antes do acidente e a reparação em 832.289$00 para, desse modo, concluir por uma perda total que significava, invariavelmente, um maior prejuízo para o lesado;

6.ª «Esta avaliação foi assinada por um sócio da requerente Transportes E, Lda., donde o douto acórdão recorrido retirou, por assim dizer, um caso julgado sobre esse facto;

7.ª «A recorrente Transportes E, Lda., quando passou da teoria do perito à prática, à realidade e à vida, verificou que tudo era totalmente diferente: o valor do seu veículo não tinha nada, rigorosamente, nada a ver com o valor que o perito lhe atribuiu e a reparação também não;

8.ª «Para a aquisição de um veículo semelhante ao seu, em segunda mão, a recorrente tinha de despender cerca de 4.000.000$00;

9.ª «E para reparar o veículo sinistrado gastou apenas 3.606.755$00;

10.ª «O perito disse dois disparates que foram rubricados por um dos gerentes da recorrente: 1. quanto ao valor do veículo, 900.000$00 versus 4.000.000$00; 2. quanto à reparação, 832.288$00 versus 3.606.755$00;

11.ª «Quanto ao primeiro aspecto - o do valor - não temos um termo comparativo nos autos;

12.ª «Mas quanto ao segundo - o da reparação -, temos: o perito era tão competente que avaliou uma reparação que custou 3.606.755$00 em 832.289$00, quando é certo que lhe dava jeito avaliá-la por um custo quanto maior melhor para o conduzir mais facilmente a uma perda total do veículo QA;

13.ª «O veículo da recorrente não tinha para ela qualquer valor estimativo. Tinha apenas valor comercial, o valor da sua utilização. E como a recorrente não anda nesta vida para gastar dinheiro à toa, mandou-o reparar por ser a solução mais económica;

14.ª «Decidir esta questão pela simples assinatura que um dos gerentes apôs no relatório do perito é privilegiar a verdade formal sobre a verdade material, bem evidente, e não o melhor modo de realizar a justiça do caso concreto;

15.ª «O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 483.°, 562.° e 566.° do Código Civil e artigo 673.° do Código de Processo Civil.»

Contra-alegando esta outra revista, pronuncia-se a F pela sua denegação, em confirmação do aresto sob recurso.

5. E o objecto das revistas, considerando as conclusões que vêm de se extractar, bem como a fundamentação do acórdão recorrido, compreende as questões que se enunciam:

a) No que toca à revista de A e esposa, a questão da culpa concorrente do condutor do pesado QA na produção do acidente;

b) Quanto à revista da Transportes, a questão das indemnizações, pela privação do uso do pesado devido a paralisação durante 42 dias úteis;
c) E ainda pelos danos materiais no mesmo veículo.
II
1. A Relação, rejeitando como se disse as impugnações à decisão de facto ensaiadas pelos apelantes A e esposa, considerou assente a factualidade dada como provada na 1.ª instância, para a qual, devendo aqui também manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.

É, pois, a partir dessa factualidade, à luz do direito aplicável, que importa apreciar as questões compreendidas nos recursos, há momentos equacionadas.

2. Põe-se, por conseguinte, em primeiro lugar, a questão da responsabilidade do motorista do pesado QA.

2.1. No entanto, as decisões concordes das instâncias foram sem hesitação no sentido de imputar ao malogrado condutor do ligeiro HF toda a culpa na eclosão do sinistro, com a consequente responsabilização da ré seguradora F, e a ilisão desde logo da presunção emergente do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, que sobre o outro motorista impendia.

Este foi inclusive ilibado positivamente na sentença, com o aplauso da Relação, da violação de qualquer «regra estradal», o que melhor se compreenderá considerando o conjunto de factos provados que a decisão da 1.ª instância a propósito recortou, na transcrição seguinte:
«O acidente ocorre numa recta de boa visibilidade [de 500 metros de extensão], com piso betuminoso, em bom estado de conservação e aderência, com uma largura de cerca de 7,10 metros e bermas com a largura de 1,50 metros, estando um tempo chuvoso e o piso da estrada molhado.
O local não dispunha de iluminação pública e a velocidade encontra--se limitada, para os veículos que, como o HF, circulavam no sentido Vila Nova de Famalicão, ao máximo de 50 km/h.
A cerca de 250 metros do início da recta, considerando o sentido de marcha do HF, encontra-se o veículo pesado de mercadorias QA, com cerca de 7 metros de comprimento, a efectuar uma manobra de marcha atrás no sentido de estacionar o veículo no parque existente do lado direito da estrada considerando o sentido Famalicão-Braga, ocupando a totalidade da faixa de rodagem [não havendo trânsito no sentido Braga-Famalicão].
O QA tinha os piscas ligados, assim como os médios e mínimos ligados e as luzes de presença laterais de ambos os lados, estando dotado de reflectores laterais de ambos os lados.
Apesar de a caixa do QA ser de cor clara, este era [perfeitamente] visível a, pelo menos, 100 metros de distância - [e isto de noite, como também se provou] -, sendo que o condutor do QA mandou dois ajudantes que vinham consigo sinalizar a manobra, um de cada lado do veículo, ou seja, um do lado de Famalicão e outro do lado de Braga.
Nestas circunstâncias de tempo e lugar, quando o condutor do QA está a engrenar a marcha atrás, avistou as luzes de um ligeiro, a mais de 200 metros de distância, ou seja, avistou o HF.
O ajudante colocado do lado respectivo fez sinais para o HF parar, o qual nem sequer abrandou a velocidade e, circulando a uma velocidade superior a 100 km/h, foi embater sobre o lado esquerdo do QA [sem ter feito qualquer travagem, precisa a matéria de facto dada como provada], sensivelmente a meio da carroçaria, deslocando-o, apesar de ser um pesado que se encontrava carregado e com um peso bruto de 13.000 kg, cerca de 1,60 metros, no sentido Famalicão-Braga.

Para melhor se avaliar a velocidade que animava o HF - que a Relação, aliás, não deixou de considerar poder situar-se entre os 105 e os 178 km/h apontados no relatório pericial de fls.153/155 -, em conexão com a violência do choque, aludiremos ainda aos seguintes factos assentes.

O HF ficou totalmente desfeito, nada valendo o que dele restou.

Foram necessários um carro desencarcerador e uma máquina arrastadora para desenfaixar o HF do QA e retirar dos ferros retorcidos o corpo do seu condutor, que falecera instantaneamente.

As longarinas do chassis do pesado ficaram curvas. E o veio de transmissão, situado entre elas, vergou.

2.2. Pois bem. Ponderando, no quadro exposto, os artigos 5.º, n.º 2, 20.º, n.os 1 e 2, 35.º, n.º 1, e 46.º, n.º 1, do Código da Estrada de 1994, concluíram portanto as instâncias que o motorista do pesado, pelas precauções e sinalização adoptadas, no conjunto de circunstâncias do local, nenhuma dessas normas transgredira na manobra de marcha atrás em curso.

O mesmo não sucedeu, porém, com o falecido condutor do HF, rodando a uma velocidade que mais que duplicava o limite máximo permitido no local, em violação dos artigos 7.º, n.º 1, 24.º, n.º 1, e 28.º do citado corpo de leis.

Se a esse limite tivesse adaptado a velocidade da viatura, prestando à condução a atenção exigível, certamente que no conspecto descrito, estando o QA devidamente sinalizado, e apresentando-se visível naquela noite à distância de 100 metros, como se provou, decerto teria podido evitar o fatal embate.

Concorda-se inteiramente com a fundamentação delineada.

2.3. Argumentam, todavia, os recorrentes que o condutor não colocou o triângulo de pré-sinalização de perigo.

Os dados disponíveis não permitem, contudo, a emissão de um juízo categórico de obrigatoriedade de utilização do dispositivo no caso em exame.

Nos termos do artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do Código da Estrada, o uso do sinal de pré-sinalização de perigo é obrigatório, de noite, «em quaisquer circunstâncias de imobilização do veículo ou de carga caída na faixa de rodagem ou na berma, salvo nos locais onde as condições de iluminação permitam um fácil reconhecimento a uma distância de 100m, sem prejuízo do disposto no presente Código quanto à iluminação dos veículos».

Deve «ser colocado verticalmente em relação ao pavimento e ao eixo da faixa de rodagem, a uma distância nunca inferior a 30m da rectaguarda do veículo ou da carga a sinalizar e por forma a ficar bem visível a uma distância de, pelo menos, 100m» (n.º 3 do mesmo artigo).

Trata-se, por conseguinte, prescindindo de outros pormenores de análise, de um instrumento tipicamente vocacionado segundo a lei para sinalizar situações estáticas de imobilização de veículos ou de queda de carga, o que não seria propriamente o caso da manobra de marcha atrás em curso quando da colisão, para estacionamento do pesado de mercadorias num armazém existente no lado direito da faixa de rodagem.

Manobra que dispõe, em contraponto, de regime próprio, compreendendo específicas prescrições e proibições (artigos 46.º e 47.º do Código da Estrada), que os factos não permitem considerar inobservado.

Crê-se, em todo o caso, atendendo às circunstâncias em elevado grau arriscadas de condução automóvel criadas pelo malogrado tripulante do HF, as quais, nem todos os apetrechos de iluminação do veículo QA, tornando-o visível a 100 metros, nem as precauções da intervenção dos ajudas, conseguiram neutralizar, que a omissão de colocação do triângulo não assumiu natureza causal do acidente.

Daí que deva improceder a revista de A e esposa.

3. Passe-se seguidamente à questão da indemnização pela privação do uso do pesado QA devido à paralisação do mesmo, avariado, durante 42 dias úteis.

3.1. Provou-se, efectivamente, que o veículo pesado sofreu danos materiais cuja reparação importou em 3.606.755$00 (17.990,42 €) - a que dentro em pouco regressaremos.

Que a proprietária Transportes, ora recorrente, se dedica ao transporte de aluguer de mercadorias, principalmente em longo curso, utilizando-o no exercício dessa actividade, de segunda a sexta-feira, com um apuro líquido diário de 30.000$00 (149,64 €).

E, ainda, que a mesma empresa esteve privada do uso da viatura, por causa do acidente, durante 60 dias a contar do mesmo até à reparação, ou seja, infere o tribunal de Braga, 42 dias úteis, com um prejuízo total 6.284,88 € a ressarcir à aqui recorrente.

Por isso que a sentença tenha condenado a F a solver-lhe o quantitativo global de 24.275, 30 € (17.990, 42 + 6.284,88 €), a título das duas ordens de danos.

3.2. Apelou a seguradora, questionando apenas o quantitativo da reparação dos danos materiais do veículo.

Todavia, a Relação de Guimarães conheceu outrossim do dano de paralisação, considerando-o ademais não indemnizável e revogando a sentença nessa parte.

Insurge-se a recorrente, observando que acerca deste ponto não houve recurso, havendo, por conseguinte, a sentença transitado quanto à indemnização pelo dano em causa.

Assiste-lhe a nosso ver toda a razão.

Analisadas as conclusões da alegação de apelação da seguradora, nenhuma alusão expressa ou implícita nelas se encontra, se bem lemos, quanto à indemnização do dano de privação do uso do pesado QA devido à paralisação.

A impugnação da recorrente reconduz-se, pois, juridicamente à nulidade de excesso de pronúncia tipificada na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, que se declara ao abrigo do n.º 3 do mesmo artigo e do artigo 731.º, n.º 1, considerando-se o acórdão da Relação modificado quanto a essa parte no sentido da respectiva decisão condenatória proferida na sentença a respeito do dano em apreço.

4. Resta a questão da indemnização dos danos materiais do mesmo veículo.

Sabemos que a sentença fez equivaler o ressarcimento deste dano ao quantitativo da reparação do pesado QA, no montante de 17.990,42 € (3.606.755$00).

Mas a Relação foi confrontada pela recorrente F com a prova de que a viatura tinha na altura do acidente quase 10 anos de uso intenso, sendo o seu estado considerado mau, por tal lhe tendo sido atribuído o valor comercial de 900.000$00, e o de 200.000$00 ao salvado, passe a expressão, valores que a recorrente Transportes, de resto, ratificara.

Concluiu assim que a reconstituição in natura, que tivera lugar mercê da reparação, era «excessivamente onerosa para o devedor», na acepção do n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, uma vez que, «objectivamente ajuizada», imporia a este «um encargo desmedido e desajustado, excedendo manifestamente os limites postos legalmente a uma legítima indemnização».

E, na realidade, «o que efectivamente o lesado perdeu foi um veículo que apenas podia ser vendido por 900.000$00», cifrando-se o seu prejuízo, «descontado o valor do salvado (200.000$00)», em 700.000$00, correspondentes a 3.491,59 €, quantitativo a que a Relação cingiu a condenação da apelante F.

A justiça dos homens pode por natureza ser feita de fragilidades.

Cremos, porém, tudo ponderado, que a decisão da Relação de Guimarães procede de um juízo acertado acerca dos factos relevantes quanto à indemnização aludida, em correcta aplicação dos ditames do artigo 566.º do Código Civil.

Por isso suscita inteira concordância quanto ao aspecto em causa, conducente à improcedência, sem desprimor, da revista da Transportes nessa parte.
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

a) Em negar a revista de A e esposa, com custas pelos recorrentes (artigo 446.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário concedido (supra, nota 1);
b) Em conceder parcialmente a revista da recorrente Transportes E, Lda., declarando a nulidade da decisão do acórdão recorrido concernente à privação do uso do veículo QA, que se considera modificada quanto a essa parte no sentido da respectiva decisão condenatória proferida na sentença, confirmando o aresto quanto ao mais, com custas pelas partes em igual proporção (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 9 de Junho de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) (Que litigam com apoio judiciário oportunamente concedido (fls. 44).
(2) Anote-se que na fase da instrução a C e a Transportes requereram perícia tendente a determinar a velocidade a que circulava o ligeiro de mercadorias, tendo a propósito sido emitido despacho de que agravou a F, vindo o recurso, porém, a improceder na Relação, sem que a questão tenha sido reeditada perante este Supremo Tribunal.