Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIREITO À IMAGEM
DIREITO A RESERVA SOBRE A INTIMIDADE
VIDA PRIVADA
LIBERDADE DE IMPRENSA
DIREITO À INFORMAÇÃO
FIGURA PÚBLICA
Sumário
1 - O direito à imagem e direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direitos fundamentais de personalidade, são inatos, inalienáveis, irrenunciáveis e absolutos, no sentido de que se impõem, por definição, ao respeito de todas as pessoas. 2 - O que se passa no interior da residência de cada pessoa e na área, privada, que a circunda, integra o núcleo duro da reserva da intimidade da vida privada legalmente protegida. 3 - A publicação numa revista pertencente à ré de uma reportagem fotográfica legendada divulgando, sem consentimento do autor, uma visita por ele feita na companhia da mulher à residência familiar então em fase de construção na cidade de Madrid, integra a violação simultânea dos seus direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada. 4 - A ilicitude desta conduta não é afastada, nem pelo facto de o autor ser uma pessoa de grande notoriedade, adquirida graças à sua condição de futebolista profissional mundialmente reconhecido (figura pública), nem pela circunstância de as fotografias mostrarem apenas a entrada da casa e de esta se encontrar em fase de construção. 5 - O direito da liberdade de imprensa tem como limite intransponível, entre outros, a salvaguarda do direito à reserva da intimidade da vida privada e à imagem dos cidadãos. 6 - De igual modo, também a invocação do direito de informar consagrado no art.º 37º, nº 1, da Constituição não legitima a conduta do lesante se não houver qualquer conexão entre as imagens ou factos divulgados pertencentes ao foro privado do lesado e a actividade profissional por ele desempenhada que originou a sua notoriedade pública.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Síntese dos termos da causa e do recurso
No Tribunal de Lisboa, A propôs contra B - Publicações, Ldª, uma acção ordinária, pedindo que a ré fosse condenada a abster-se da prática de actos lesivos do seu direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, a publicar a sentença que viesse a ser proferida no processo, a pagar-lhe uma indemnização de 5 mil contos por danos morais, acrescida de juros a contar da citação, e ainda a quantia diária de 20 contos a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na publicação da sentença, logo que esta transite em julgado.
Alegou, em suma, que a revista Lux, propriedade da ré, distribuída ao público no dia 15.1.01, publicou em lugar de destaque uma reportagem sobre o autor e sua mulher, exibindo a sua vida pessoal e íntima sem o seu conhecimento e consentimento, o que lhe provocou um enorme desgosto.
A ré contestou, impugnando a violação de qualquer direito do autor e defendendo a sua absolvição do pedido.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, e respondida, sem reclamações, a base instrutória, foi proferida em 27.1.04 sentença que, atendendo em parte o pedido, condenou a ré a abster-se da prática de actos lesivos do direito do autor à reserva da intimidade da vida privada e familiar, a pagar-lhe a quantia de 12.469,95 € (equivalente a 2.500 contos), acrescida de juros desde a citação, e ainda a publicar a parte decisória da sentença na revista Lux, com a sanção pecuniária compulsória no montante de 99,76 € (20 contos) por cada dia de atraso, após o trânsito em julgado.
A ré apelou, mas sem êxito, pois a Relação confirmou inteiramente a sentença.
Mantendo-se inconformada, a ré interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando a revogação do acórdão da Relação e a sua absolvição do pedido com base nas conclusões úteis que assim se resumem:
1ª - De boa fé, o director da revista Lux acreditou que a divulgação das fotografias não ofendia a reserva da vida privada do autor, nunca tendo admitido a hipótese de isso acontecer;
2ª - Quer o director da revista Lux, quer a ré, agiram com o cuidado devido;
3ª - O autor deixou de merecer a tutela do direito ao fazer depender a existência, ou não, de ofensa à reserva da vida privada do seu estatuto de desconhecido ou de estrela internacional;
4ª - O autor não provou que os meros incómodos que alega ter sofrido resultaram da notícia dos autos;
5ª - Não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil;
6ª - A ilicitude da conduta da recorrente está afastada porque exerceu legitimamente o direito de informar;
7ª - A decisão recorrida violou os art.ºs 29º da Lei de Imprensa e 70º, nº 1, 483º, nº 1, 496º e 334º do CC.
O autor apresentou contra alegações, defendendo a confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Matéria de facto.
1. O autor é jogador profissional de futebol, de nacionalidade portuguesa, no Real Madrid Clube de Futebol.
2. A ré é proprietária da revista semanal Lux.
3. Na edição da revista nº 37, distribuída no dia 15 de Janeiro de 2001, com 101.000 exemplares, foi publicada, com chamada na capa, uma reportagem acerca do autor e da sua mulher, sob o título "A casa milionária de A".
4. A reportagem não contém a indicação do autor do respectivo texto, nem a indicação do autor das 13 fotografias que a ilustram, a não ser que foram obtidas junto da Queen International.
5. Essa reportagem obteve os seguintes títulos e subtítulos: "Exclusivo em Madrid: o jogador mais caro do mundo constrói casa no valor de mais meio milhão de contos", "A casa milionária de A", "A uma casa à sua medida" e "Duas piscinas, oito quartos, duas salas, sala, ginásio e um megajardim. A nova casa de A vai custar mais de meio milhão de contos e fica situada numa das zonas mais nobres de Madrid. O jogador e a mulher C têm acompanhado as obras. A mudança é já na Primavera".
6. A legendar as fotografias publicadas, constam os seguintes textos: "A e C vão ser vizinhos de outras personalidades espanholas. Eles são banqueiros, desportistas e celebridades do showbiz", "Aos 28 anos, A ocupa o 25º lugar do ranking dos desportistas mais ricos da Europa", "Este é mais um investimento que daqui a um tempo poderá render um bom lucro a A. Mas também poderá ser um sinal de que espera ficar por muitos anos em Madrid". "Com ganhos anuais avaliados 1 milhão e 734 mil contos, a estrela portuguesa do Real Madrid deverá gastar perto de 600 mil contos na construção desta casa".
7. No texto da reportagem constam, entre outros, os seguintes apontamentos:
"Cerca de 600 mil contos é quanto poderá custar a nova casa que A está a construir numa zona nobre de Madrid"; "Terá 8 quartos, dois salões, sauna, ginásio e duas piscinas - uma de Verão e outra de Inverno"; "Tudo numa área de 600 m2 de construção e 2000 m2 de jardim"; "A e a mulher C têm acompanhado o decorrer das obras, que deverão estar concluídas na próxima Primavera, altura em que o jogador e a sua família farão a mudança"; "Esta moradia de luxo fica situada no Parque Conde Orgaz, uma das zonas mais in e mais caras da capital espanhola "; "um investimento à medida de quem, como A, tem ganhos anuais estimados em 1 milhão e 734 mil contos"; "Aliás, aos 28 anos, o jogador é apontado como o 25º desportista mais rico da Europa"; "As casas são vigiadas com câmaras de vídeo (..)": "A nova casa de A situa-se apenas a 10 minutos de carro do complexo desportivo do Real Madrid".
8. A publicação e divulgação das fotografias do autor acompanhado da sua família, e o conteúdo do texto nunca foram por si autorizados, nem antes nem depois da distribuição da Lux.
9. A direcção ou a redacção da revista ou os representantes da ré nunca solicitaram ou obtiveram do autor qualquer autorização para o efeito.
10. A captação de imagens foi feita mostrando o interior intra-muros, mostrando a sua entrada e mostrando as pessoas que se encontravam nesse espaço.
11. A casa ficou identificável no que se refere à sua localização.
12. As fotografias foram obtidas à distância a partir de fora.
13. As imagens foram obtidas por fotógrafos.
14. As fotografias foram adquiridas a um banco de imagens.
15. O autor não se exibe diariamente em festas ou acontecimentos sociais.
16. Em certas ocasiões, autorizou que a sua mulher fosse fotografada juntamente com ele.
17. No dia do seu casamento, fotógrafos tentaram obter imagens da cerimónia e da festa.
18. Será agora mais fácil perturbar o sossego do autor e da sua família, onde se inclui a sua filha de dois anos.
19. Não poderá o autor estar na sua casa "à vontade", sem se preocupar com eventuais "mirones" que por lá apareçam.
20. A casa encontrava-se em estado de construção, com estaleiro.
21. A Lux não divulgou o nome da rua e o número da porta.
22. O autor usou a sua figura para promover o seu bar no Algarve.
23. O autor não autorizou que fossem tomadas fotografias com a sua família dentro da sua casa ou sequer perto, mas apenas em lugares públicos.
24. Algumas pessoas já foram verificar onde é a casa do autor, obrigando-o a manter as portadas das janelas e das portas permanentemente fechadas.
25. Em consequência da conduta da ré o autor sofreu desgosto.
III . Matéria de Direito
a) No corpo da alegação a ré afirma, designadamente, "que as imagens são acessíveis a qualquer transeunte que passasse na rua naquele momento"; que "antes da publicação pela Lux a imagem da casa do autor já estava acessível ao público espanhol e aos paparazzi espanhóis, até mesmo à ETA, atenta a sua publicação prévia em revista espanhola, como foi confirmado pelas testemunhas do autor"; e que "a publicação das fotografias pela revista Lux fez apenas saber ao público português como ia ser a casa do seu ídolo - e mesmo assim só o portão e o pátio da entrada - mas não a torna identificável para o público português e a Lux não é publicada em França". Nas conclusões, por seu turno, insere as seguintes proposições: "As testemunhas do autor não apontaram sequer uma pessoa ou uma situação de alguém que tivesse chegado à porta do A por causa da Lux"; "O autor permitiu a algumas publicações, e em concreto à Nova Gente, que exibissem a sua casa, quer em Portugal - onde até o quarto do autor foi fotografado - quer em Barcelona, onde várias divisões foram fotografadas, incluindo, mais uma vez, o quarto"; e "O autor recorreu à imprensa e aos benefícios que esta lhe traz para lançar os seus negócios pessoais que nada têm a ver com a sua actividade profissional de futebolista, como o Bar 7 e a Loja Guess".
Ora sabe-se, por um lado, que as conclusões servem para de maneira sintética e concentrada apresentar ao Tribunal as razões por que se pede a alteração ou anulação da decisão (art.º 690º, nº 1, do CPC); não servem, nem podem servir, para inutilmente repetir ipsis verbis o que já foi dito na exposição da minuta e, menos ainda, para ali colocar, sem qualquer rigor, pura e simples matéria de facto (alegada ou não, provada ou não), assim a destacando, de modo objectivamente enganoso, como questão a decidir pelo tribunal de recurso. Sabe-se, por outro lado, que o fundamento específico do recurso de revista é a violação da lei substantiva, que tanto pode consistir no erro de interpretação ou aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável, e que cabe ao Supremo Tribunal aplicar definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (art.º 721º, nº 2, e 729º, nº 1, do CPC). E sabe-se, por fim, que a lei dispõe expressamente que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, excepto se tiver havido ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.ºs 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do mesmo diploma). As normas jurídicas indicadas evidenciam que o Supremo é um tribunal de revista, que julga apenas de direito. Por isso é que a sua intervenção no julgamento de facto só muito excepcionalmente ocorre; e mesmo nos casos em que tal acontece ele não pode substituir-se às instâncias, corrigindo a decisão por elas ditada: tem que limitar-se a mandar baixar o processo à Relação se entender que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre aquela matéria que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art.º 729º, nº 3). Apesar de tudo isto ser do conhecimento geral, verifica-se uma crescente tendência para "instrumentalizar" o Supremo Tribunal, desviando-o da sua função primordial.
Com efeito, é cada vez maior o número de recursos em que as partes se limitam a discutir matéria de facto, ora pretendendo que o Supremo, manifestamente contra legem, intervenha a esse nível, transformando-o, assim, numa tal ou qual terceira instância, ora, de forma mais ou menos enviesada, alegando perante ele mediante a invocação de matéria de facto que não consta do processo, e que, por isso, não foi tomada em consideração nas decisões impugnadas; matéria de facto que traduz, ao fim e ao cabo, a versão unilateral da parte recorrente, o seu particular - e naturalmente parcial - julgamento dos acontecimentos, "adequado", "adaptado" à solução jurídica do pleito que lhe interessa fazer vingar. Valem em ambas as situações, contudo - na última delas até por maioria de razão - as mesmas normas e princípios a que já aludimos e dos quais se conclui, em suma, que é à Relação, por princípio, não aos litigantes, que cabe a última palavra no capítulo dos factos. No caso presente constata-se que a parte mais relevante dos argumentos utilizados pela ré em ordem a combater a decisão uniforme das instâncias e conferir substância às conclusões da minuta repousa em factos extra processuais, isto é, factos que, não estando provados, não serviram nem podiam servir de base ao veredicto proferido, disso sendo exemplo ilustrativo aqueles que atrás reproduzimos, extraídos do corpo da minuta e das respectivas conclusões. Ora, para além de fragilizar em considerável medida, como é óbvio, o poder persuasivo das conclusões apresentadas, já que as deixa sem base sólida de sustentação, semelhante "estilo" de alegação pode suscitar fundadas dúvidas acerca da lisura da litigância da recorrente, tendo em conta que o princípio da cooperação na condução e intervenção no processo fixado no art.º 266º, nº 1, do CPC, funciona em várias direcções e não é uma mera figura de retórica, uma forma sem conteúdo; vincula reciprocamente as partes, os seus mandatários e o juiz, e constitui, quanto a nós, um alicerce essencial do processo civil, na medida em que proporciona uma discussão da causa com elevação e assente no respeito mútuo.
Esta é a nota que queríamos destacar em primeiro lugar porque ela condiciona largamente, como bem se compreende e resulta do exposto, o desfecho do recurso.
b) Perante os factos relatados (secção II) as instâncias consideraram que tanto o texto da reportagem como a sua ilustração fotográfica tipificam por parte da revista Lux uma situação de nítida violação do direito geral de personalidade do desportista A (art.º 70º do CC), decidindo que com a sua conduta a ré violou dois direitos de personalidade do autor: o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à imagem (artºs 79º, nº 1, e 80º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma). No caso do direito à reserva, a violação consistiu na exposição ao público da casa que o autor construía em Madrid; no caso do direito à imagem, na divulgação de fotografias dele e da sua mulher, sem o seu consentimento, numa visita à casa em construção.
Este tribunal entende que o veredicto das instâncias está perfeitamente correcto, merecendo plena confirmação a decisão propriamente dita e os respectivos fundamentos. Aliás, as conclusões da revista, na parte útil, coincidem ponto por ponto com as da apelação, e foram objecto de adequada análise e justa decisão no acórdão recorrido. Assim, sem prejuízo do que a seguir se acrescentará, remete-se para a decisão impugnada, nos termos dos art.ºs 726º e 713º, nº 5, do CPC.
Os dois direitos em causa são direitos fundamentais de personalidade, protegidos civilmente, mas também, e desde logo, reconhecidos como tal na Constituição, que os autonomizou no capítulo da Parte I consagrado aos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais. O serem direitos fundamentais de personalidade não significa outra coisa senão que toda e qualquer pessoa - pobre ou rica, famosa ou desconhecida, sábia ou ignorante - pelo simples facto de o ser, é sua titular. São direitos inatos , absolutos, inalienáveis e
irrenunciáveis, "dada a sua essencialidade relativamente à pessoa, da qual constituem o núcleo mais profundo" (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 215).
Impõem-se, por definição, ao respeito de todas as pessoas, sendo, nesse sentido, direitos absolutos.
Ora, o autor é um desportista famoso em Portugal e em todo o Mundo, que atingiu uma enorme notoriedade como futebolista de excepção ainda antes de passar a representar o Real Madrid. A projecção que o espectáculo do futebol tem nos quatro cantos do globo; os interesses materiais que lhe andam associados; e o entusiasmo, as paixões exacerbadas que suscita em amplas camadas e a população, tudo isto faz com que as suas principais vedetas se tornem conhecidas em toda a parte e, de um momento para o outro, alvo da curiosidade, por vezes mórbida, de um número imenso de pessoas, multiplicado pela difusão planetária que os meios de comunicação social proporcionam, em especial a televisão. Na sua profissão, o autor integra o núcleo dos melhores, dos mais talentosos, dos fora de série. Por essa razão é obrigado a "pagar", quer queira, quer não, o preço da fama que granjeou e que não tem cessado de aumentar desde que, saindo de Portugal, foi há alguns anos atrás jogar para Barcelona, no clube que mantém uma acesa rivalidade com o Real Madrid e no qual se tornou um ídolo para os adeptos.
Tudo isto são factos notórios, do conhecimento da generalidade das pessoas em Portugal, e que o tribunal, portanto, não pode deixar de ter presentes, dada a sua pertinência ao correcto enquadramento jurídico da situação ajuizada (art.º 514º, nº 1, do CPC). Também é notório que a inclusão e participação do autor na selecção nacional que tem representado o nosso país nas grandes competições de futebol a nível internacional aumentou exponencialmente a sua fama, ao ponto de poder dizer-se que já não é só a juventude, nem a juventude que se interessa pelo desporto, que identifica instantaneamente a pessoa de A como capitão da equipa e seu verdadeiro símbolo: é "toda" a gente, é o povo português na sua generalidade. As coisas são assim, assim se passam, e o tribunal não pode alhear-se delas, sob pena de proferir uma decisão desfasada da realidade, ou que da realidade só vê uma faceta. Simplesmente, "pagar" o preço da fama, ser uma figura pública, não significa ter que renunciar antecipadamente aos direitos de personalidade, abdicando deles na totalidade e sujeitando-se à invasão e devassa da privacidade em toda e qualquer circunstância. A lei diz - art.º 80º, nº 2, do CC - que a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas. São estes os dois elementos, um objectivo e outro subjectivo, em função dos quais se delimita a protecção do titular do direito. Ora, na situação ajuizada nada, absolutamente nada podia justificar a conduta da ré, excepto o consentimento do autor, que não foi dado.
A partir daqui, o assunto deveria ter ficado encerrado. Ao agir como agiu, publicando a reportagem fotográfica legendada que publicou, a recorrente praticou um facto ilícito, violando frontalmente os direitos de personalidade do autor. A ilicitude não é de modo algum excluída pela circunstância de o autor ser um desportista mundialmente conhecido, uma pessoa famosa.
Em primeiro lugar, e desde logo, porque as imagens publicadas não apresentam nenhuma relação directa ou indirecta com a sua profissão, com a sua vida pública, com a sua condição de jogador de futebol. Em segundo lugar porque, antes disso, ele é uma pessoa, que, como qualquer outra, seja qual for a sua condição, tem o direito de resguardar a privacidade e de preservar a imagem, impedindo a sua exposição e divulgação sem prévio consentimento. E tem-no sobretudo quando se trata, como é o caso, de subtrair à curiosidade alheia a sua própria casa, o local onde reside habitualmente com a família, que é, por definição, o último reduto da privacidade de cada um, o lugar onde cada pessoa, em princípio, está como quer e só com quem quer. O facto, provado, de a residência se encontrar ainda em construção quando as imagens foram captadas e de estas não terem incidido no seu interior mais reservado nada tira nem nada põe quanto à qualificação jurídica da conduta da ré.
Não deixou por isso de haver intromissão na esfera de privacidade do lesado, embora num grau porventura menos intenso e menos profundo do que teria sucedido se as imagens registadas tivessem sido de quartos, de salas ou de zonas de serviço da residência. E precisamente porque os direitos violados são, no sentido acima exposto, direitos absolutos, a antijuridicidade reporta-se ao facto do agente em si mesmo considerado, à sua actuação em concreto, e não propriamente ao efeito danoso a ela associado.
De resto, numa hipótese como a presente, de violação de direitos da personalidade, o resultado, em termos práticos, - resultado danoso - confunde-se com a conduta lesiva. Retomando uma ideia já anteriormente expressa, é de concluir que a divulgação da imagem do autor sem o seu consentimento não se legitima pelo facto de ele ser uma figura pública, uma pessoa que goza de grande notoriedade, em Portugal e no resto do mundo; e isto porque, justamente, as fotografias captadas surgem num lugar que é privado (a residência do lesado, ainda que em construção), mostram-no num contexto também estritamente privado (ao lado da sua mulher), e dão a conhecer aos leitores da publicação um facto ainda do foro privado, ou seja, um facto que nem é do interesse geral, pois só ao autor e à sua família diz respeito, nem decorreu publicamente. Importa ainda sublinhar o seguinte:
é certo que, conforme referem a maioria dos autores que se têm debruçado sobre este tema, o interesse público da função informativa que cabe à comunicação social pode justificar a introdução de restrições pontuais aos direitos aqui analisados. Mas de todo o modo exige-se sempre, segundo a melhor doutrina, que haja conexão entre o que se divulga e a actividade que a pessoa visada desenvolve, geradora da sua notoriedade. Isto, por um lado. Por outro lado, todos estarão de acordo em que há um "núcleo duro" de reserva da vida privada que se encontra legalmente protegido, mesmo no caso das figuras públicas, que são aquelas cuja área de privacidade está por natureza mais restringida, mais limitada. E no coração desse núcleo há-de estar, logicamente, o que se passa no interior da residência de cada qual, e na área, privada, que a circunda (logradouro, jardim, parque, etc). No caso ajuizado, sucede até que nem mesmo um critério de avaliação muito largo e menos exigente poderia levar à conclusão de que a ré quis informar o público leitor ou noticiar o que quer que fosse, assim exercendo o direito de liberdade de informação, também constitucionalmente protegido (art.º 37º, nº 1, da Constituição). Basta atentar nos títulos e subtítulos da reportagem e nos textos que legendam as fotografias para se ver que o intuito que presidiu à publicação não foi, nem o de informar, nem o de, como um mínimo de rigor e objectividade, dar a conhecer aos leitores factos da vida do autor revestidos de interesse público.
É evidente que não foi disso que se tratou. O objectivo foi outro, muito claramente.
A ré quis vender o maior número possível de exemplares da revista Lux, aumentando os seus lucros. Para tanto serviu-se de imagens do círculo da esfera privada do autor enquadradas por legendas de teor mais ou menos sensacionalista cujo efeito, normalmente, é o de excitar a curiosidade do público, induzindo-o a comprar (pelo menos daquele sector do público, que o há, predisposto à partida a interessar-se por conhecer pormenores da vida das pessoas ditas "famosas").
Contudo, se o fim é inteiramente legítimo, já os meios utilizados não o foram, na medida em que implicaram ofensa de direitos fundamentais de personalidade. De resto, o art.º 3º da Lei de Imprensa é peremptório ao estabelecer como limites intransponíveis à liberdade de imprensa a Constituição e a lei, e ao dizer que este direito deve ser exercido "de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir
os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática".
Enfim, mostra-se totalmente inconsistente a alegação da ré de que agiu com o cuidado devido. Como assim se, dada a finalidade que preside à publicação da revista Lux, não podia razoavelmente ignorar que nenhuma imagem do autor captada naquelas condições poderia ser divulgada sem o seu consentimento? Resta dizer que também o montante da indemnização arbitrado pelas instâncias se apresenta como justo e equitativo, tendo em conta o disposto nos art.ºs 494º e 496º, nº 1, do CC. Considerando que o dano moral se traduz numa lesão produzida num interesse insusceptível de avaliação pecuniária, afigura-se que o desgosto sofrido pelo autor e as repercussões presentes e futuras na sua vida privada directamente associadas à conduta da ré (cfr. os factos 18, 19, 24 e 25) constituem no seu conjunto muito mais do que meros incómodos sem relevância jurídica: são, na verdadeira acepção da palavra, lesões - e lesões suficientemente graves para merecerem a protecção do direito - de aspectos essenciais dos direitos de personalidade atingidos.
Improcedem, portanto, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.
IV. Decisão Nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 14 de Junho de 2005
Nuno Cameira,
Sousa Leite,
Salreta Pereira.