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INDEMNIZAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
Sumário
1- A obrigação da reconstituição natural em sede indemnizatória só cede perante a indemnização pecuniária em caso de excessiva onerosidade daquela; 2- O conceito de perda total definido pelo artigo 41º do DL 291/2007 para efeitos de afastar a obrigação da reconstituição natural no âmbito da regularização de sinistros por via extrajudicial não é para o tribunal vinculativo; 3- É ónus do obrigado à reparação a prova da excessiva onerosidade da reconstituição natural; 4- Na reapreciação da matéria de facto o tribunal da Relação fazendo uso dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, apenas deve alterar o decidido pelo tribunal a quo quando verifique erro de julgamento.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I- Relatório
Manuel M e Emanuel M, melhor ids. a fls. 4, instauraram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “A Seguros, S.A.” igualmente melhor id. a fls. 4.
Pela procedência da ação peticionaram os AA. a condenação da R. a:
A) pagar aos Autores a quantia inerente ao valor da reparação do 37-FC-20, no montante de € 10.402,22 (dez mil, quatrocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento, ou em alternativa, que a Ré seja condenada a mandar proceder à reparação do 37-FC-20, e a pagar o valor da respetiva reparação;
B) pagar aos Autores o valor que estes terão de pagar à oficina onde o veículo está imobilizado, inerente ao parqueamento, despesas que, por futuras, se relega a sua liquidação para execução de sentença;
C) pagar aos Autores a quantia inerente aos transportes de Táxi realizados até à presente data, no montante global de € 4.047,25 (quatro mil, quarenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento;
D) pagar aos Autores as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença e relativas às despesas suportadas com deslocações a efetuar desde a presente data até àquela em que a Ré pague o valor da reparação ou que o veículo, reparado, seja restituído aos Autores;
E) pagar ao Autor Emanuel M a quantia global de € 2.226,10 (dois mil, duzentos e vinte e seis euros e dez cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento;
e ainda na sequência da ampliação do pedido admitida por decisão de fls. 153
F) pagar ao A. Emanuel M a quantia de € 452,61 a título de despesas em exames, consultas e medicação.
Para o efeito alegaram os AA. ter sofrido - na sequência de acidente de viação em que foram intervenientes e da total responsabilidade do condutor da outra viatura no acidente interveniente - danos patrimoniais e não patrimoniais que identificaram e cujo ressarcimento por esta via junto da aqui R. reclamam, na qualidade de seguradora do veículo responsável na produção do acidente.
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Devidamente citada a R., contestou onde aceitando a responsabilidade na produção do acidente do veículo por si seguro, questionou apenas a amplitude do quantum indemnizatório reclamado pelos AA..
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgando a ação parcialmente procedente decidiu:
“i) condenar a A Seguros, S.A. no pagamento a Manuel M da quantia de € 10.402,22 (dez mil quatrocentos e dois euros e vinte e dois cêntimos), a título de indemnização correspondente ao valor da reparação da viatura 37-FC-20, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
ii) condenar a A Seguros, S.A. no pagamento a Manuel M da quantia de € 15,00/dia, com vista ao ressarcimento pela privação do veículo id. nos autos, contados desde a data do sinistro (16.10.2014) até ao trânsito da sentença;
iii) condenar a A Seguros, S.A. no pagamento a Emanuel M da quantia de € 536,20 (quinhentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos por aquele na sequência do sinistro descrito nos autos;
iv) absolver a A Seguros, S.A. do demais peticionado.”.
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Do assim decidido apelou a R., oferecendo alegações e formulando as seguintes
Conclusões:
“1ª A ora Apelante não se conforma com a decisão que foi proferida na douta sentença, acerca das reparação e paralisação do veículo FC.
2ª A ora Apelante fez a prova que lhe competia relativamente aos factos alegados, e bem assim aos valores relativos à reparação, valor venal e de substituição do veículo e valor do salvado do FC.
3ª Cabia ao Apelado Manuel fazer prova do valor patrimonial do veículo FC , pois era seu ónus.
4ª Não tendo sido feita tal prova do valor patrimonial que cabia ao Apelado, não devia o douto Tribunal “ a quo “condenar a ora Apelante na reparação do veículo FC, pois estão cumpridos os requisitos do artº 41º do Dl 291/2007, de 21-8.
5ª A ora Apelante deverá pagar ao Apelante o valor relativo à perda total do veículo, deduzido o valor do salvado, conforme consta do ponto 3.14 dos factos provados.
6ª Não havendo lugar à reparação, não há lugar a paralisação e como tal deve a sentença ser revogada também neste seu segmento.
7ª Verifica-se a violação do disposto no artº 41º do DL 291/2007, de 21-8 e artºs 562º e seg do CC.”.
Apresentaram os AA. recurso subordinado, simultaneamente e na mesma peça processual contra-alegando ao recurso principal, apresentando a final as seguintes:
“CONCLUSÕES
1) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo que decidiu: (…)
2) Os Autores, ao contrário da Ré ----- que parece discordar da matéria dada como provada relativamente à reparação do veículo e paralisação do mesmo, e consequentes montantes indemnizatórios, discordância essa que aparenta recair sobre os pontos 3.9 a 3.14 dos factos provados, já que das suas alegações e conclusões nada consta em concreto ----- nada têm a apontar ao julgamento feito quanto aos factos tidos como provados e não provados (exceto al. B)).
3) A valoração da prova feita pelo Mm. Juiz a quo, para a qual se remete, está devidamente fundamentada, conjugada e é inatacável, a qual implica um correto julgamento dos factos provados e não provados (exceto al. B), socorrendo-se de uma exaustiva fundamentação crítica; não padecendo a sentença de qualquer vício ou erro.
4) Entendem os Autores que todos os factos dados como provados, incluindo os pontos 3.9 a 3.14, se deverão manter como factos constantes da matéria provada, uma vez que a douta sentença é inatacável nesta parte, extremamente fundamentada, procedendo de forma extensiva à análise crítica da prova testemunhal, documental, pericial e dos factos, à aplicação do Direito, e, consequentemente fazendo uma correta análise global e conjugada de toda a prova.
(…)
10) Não obstante no corpo da motivação do recurso a Ré ter feito referência aos factos provados 3.9 a 3.14, não indicou quer nas alegações quer nas conclusões, mesmo de forma sintética, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados nem os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
11) A Ré não indica os concretos meios probatórios para sustentar as suas alegações e conclusões, mormente que fez “prova cabal e eficaz, demonstrando que a reparação do veículo FC excedia os limites para ser efetuada uma reparação viável do veículo em causa”.
(…)
13) Assim, quanto à matéria de facto, o recurso da Ré deve ser liminarmente rejeitado, pois não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento nas alegações/conclusões em matéria de impugnação da decisão de facto, não indicando as passagens em que funda o seu recurso.
DA REPARAÇÃO E DA PARALISAÇÃO:
14) Deverá ainda ser mantida a decisão do Tribunal a quo quanto aos montantes atribuídos a título de reparação do veículo e de paralisação, conforme se refere nas alegações e que aqui se dá por reproduzido; posição esta sustentada pelos Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 70/14.4 YRLSB-6, de 29-04-2014; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 1564/08-2, de 16-10-2008; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 1091/12.7TJCBR.C1, de 08-04-2014; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14-12-2010; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 3643/11.3TBSLX.L1-6, de 04-07-2013; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28-02-2013; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 2082/09.0TBBRG.G1, de 26-04-2012.
15) Não basta para concluir pela excessividade o facto de se te tratar de um valor superior ao valor de substituição ou ao valor de mercado no caso de falta de prova do valor de substituição.
16) A aplicação do critério de “perda total”, implicando o cumprimento da obrigação de indemnização em dinheiro e não através da reparação do veículo, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do DL 291/2007 de 21/08, restringe-se ao procedimento obrigatório de apresentação pela seguradora da “proposta razoável”, destinado a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade, o que a Seguradora não fez.
17) Caso não haja acordo ou sequer haja proposta razoável por parte do lesante, valem as regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil.
18) A Lei não se contenta com a simples onerosidade da reparação do veículo: exige que esta seja excessivamente onerosa para o devedor, isto é, que a restauração natural não imponha ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos legalmente a uma legítima indemnização.
19) A limitação do montante da indemnização em dinheiro ao abrigo do disposto no artigo 566º n. 1, do Código Civil (excessiva onerosidade), quando o preço da reparação da coisa danificada seja superior ao seu valor venal, supõe que exista a possibilidade de, no mercado, adquirir uma coisa idêntica à danificada (isto é, com idênticas qualidades e valor).
20) É ao lesante que incumbe, designadamente através da reparação do veículo sinistrado, restituir o lesado à situação em que se encontrava antes de ocorrido o acidente, pelo que o dano da privação do uso do veículo subsiste até que o lesado veja reconstituída a situação que existiria se não fosse o facto do lesante conducente à paralisação do automóvel.
21) O lesante, aqui Réu, nada provou, ou sequer alegou, nesta sede, ou invocou elementos probatórios que permitam concluir de forma diversa à sentença recorrida, que aliás, discorre de forma devidamente fundamentada quanto a esta obrigação.
DA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO / PARALISAÇÃO:
22) A indemnização por privação do uso do veículo ocorre, quer exista reparação do veículo, quer exista perda total do dito veículo, uma vez que o lesado é privado do veículo quer numa, quer noutra situação, pois basta a privação do uso de um veículo automóvel por si só, para tal dano ser indemnizável (…).
23) A indemnização por privação do uso do veículo / paralisação é indemnizável, nos termos constantes da sentença recorrida, que deverá ser mantida na íntegra, conforme referido nas alegações.
DOS DANOS PATRIMONIAIS / DESPESAS COM O TÁXI:
24) Peticionaram os Autores que “C) A Ré ser condenada a pagar aos Autores a quantia inerente aos transportes de Táxi realizados até à presente data, no montante global de € 4.047,25 (quatro mil, quarenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento”.
25) No que respeita à peticionada indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais entendemos que se deverá ter como provada a existência de tais despesas suportadas pelos Autores, pelo que não concordam os Autores com tal facto B) dado como não provado, e que deverá ser tido e julgado como provado.
26) Desde logo, constam da Petição Inicial diversas faturas de táxi, emitidas a favor dos Autores, devido à necessidade de deslocação dos mesmos (cfr. Doc.7 e 8 da P.I.).
27) Da simples soma dos valores de tais faturas obtém-se o valor de €4.927,20 (quatro mil, novecentos e vinte e sete euros e vinte cêntimos), que os Autores se viram forçados a pagarem para se conseguirem deslocar, em virtude de o seu veículo se encontrar imobilizado e, portanto, privados do seu uso.
28) Situação que se afere da sentença recorrida, quanto à análise da prova testemunhal: “Por sua vez, Manuel P, proprietária da firma de táxis cujos recibos/faturas se encontram juntos aos autos, referiu conhecer bem os autores, pai e filho, tendo confirmado ter passado a transportar o segundo no seu veículo de aluguer por, segundo o mesmo lhe referiu, ter ficado sem a viatura que usava para se deslocar ao emprego; qual era e por conta de quem desconhece; a partir de determinada altura, os seus serviços foram dispensados, alegadamente por dificuldades financeiras daquele. Não soube esta testemunha explicar a razão pela qual efetuou serviços de transporte não só em dias de semana como aos fins de semana, ou mesmo em períodos festivos (vg, Natal).---“
29) Ora não conseguem os Autores compreender como existindo os elementos probatórios documentais juntos aos autos, bem como o depoimento da testemunha Manuel P, proprietário da empresa de táxis, que confirmou a prestação de serviços aos ditos Autores, não tenha sido julgado procedente, por provado, tal pedido e factualidade, dando-a, ao invés, como não provada, contradizendo a dita sentença a sua própria fundamentação.
30) Ao decidir como decidiu a sentença recorrida violou as normas dos artigos 483.º, 496.º-1, 562º, 563º, 566º e 1305.º do Código Civil, violando o princípio geral em matéria de obrigação de indemnização que se encontra enunciado no artigo 562º do C. Civil: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.
31) Violando o artigo 563º do mesmo diploma, segundo o qual a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
32) Ficando privado de utilizar um veículo, por efeito dos estragos provocados pelo embate de outro, o respetivo dono fica impossibilitado, enquanto aquela privação durar, de retirar dele as utilidades proporcionadas ao seu proprietário (art. 1305º do CC).
33) Ora atentas as faturas juntas na Petição Inicial Doc. 7 e 8, bem como o depoimento de Manuel P, referida na sentença que aqui se dá como reproduzido, terá de ser julgado procedente tal pedido constante da Petição Inicial, e dado como provado tal facto não provado al. B), com as devidas consequências.
34) Até porque, os Autores, antes do acidente, dispunham de meio de locomoção que ficou acidentado e dele ficaram, a partir daí, privados.
35) Solicitaram veículo de substituição à companhia de Seguros que não lhes atribuiu um.
36) Os Autores não estão sujeitos à deslocação em transporte público, atento que usando o seu automóvel não se encontravam sujeito a horários estabelecidos.
37) Pelo que tal situação é indemnizável.
38) O ressarcimento e reparação dos Autores apenas se atinge através do pagamento da indemnização correspondente à totalidade dos prejuízos sofridos, e não de prejuízos parciais.
39) Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proc. 44/10.4TBMDR.P1, de 29-11-2011; Acórdãos do STJ, de 12-01-2010, Proc. nº 314/06.6TBCSC.S1 e de 15-11-2011, Proc. 6472/06.2TBSTB.E1.S1; acórdão desta Relação, de 4-11-2008, Proc. nº 0824890, relatado pelo ora 1º).
TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE Vª EXC.ª DOUTAMENTE SUPRIRÃO NÃO DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO ÀS ALEGAÇÕES DE RECURSO DA RÉ, DEVENDO A SENTENÇA RECORRIDA SER ALTERADA EM PARTE, E:
-DAR COMO PROVADO A AL. B) DOS FACTOS NÃO PROVADOS, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, MORMENTE, CONDENANDO A RÉ A PAGAR AOS AUTORES A TÍTULO DE DESPESAS COM O TÁXI, O MONTANTE PETICIONADO.
-MANTENDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA INALTERADA NO DEMAIS, ATENTO O SUPRA EXPOSTO.”.
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Não foram apresentadas contra-alegações ao recurso subordinado.
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Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (principal e subordinado).
Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem as seguintes as questões a apreciar:
A) Do recurso principal
- (Não) obrigação da R. a indemnizar os AA. no valor correspondente ao da reparação da viatura sinistrada e aos danos decorrentes da paralisação da mesma;
- Violação do disposto no artigo 41º do DL 291/2007;
B) Do recurso subordinado
- Erro na decisão de facto e consequentemente
- Obrigação da R. em indemnizar o A. pelas despesas de táxi por este peticionadas.
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III- Fundamentação
Foram dados como provados os seguintes factos:
3.1. No dia 16.10.2014, cerca das 21:30 horas, na Avenida do Cabedelo, freguesia de Darque, deste concelho de Viana do Castelo, circulava o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 37-FC-20 (doravante FC), propriedade do autor Manuel M e conduzido pelo seu filho, o coautor Emanuel M, no sentido Cabedelo – Viana do Castelo, pela metade direita da faixa de rodagem da referida via, a uma velocidade não superior a 40 km/hora.-
3.2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula 56-16-RS (doravante RS), propriedade de Augusto A e conduzido por Maria A circulava na predita Avenida no sentido Viana do castelo – Cabedelo.---
3.3. O local configura uma reta, com um entroncamento situado à esquerda para quem por ali circulava no sentido seguido pelo RS.---
3.4. Ao chegar ao predito entroncamento, pretendendo passar a circular na via que ali desemboca com a Avenida do Cabedelo, a condutora do RS não imobilizou a marcha do mesmo, tendo atravessado a respetiva marcha sobre a via por onde circulava no momento o FC, não tendo o respetivo condutora (o coautor Emanuel M) conseguido evitar a colisão.---
3.5. O embate ocorreu entre a parte frontal do FC e a parte lateral direita do RS, a meio da hemi-faixa direita da predita via de trânsito, no sentido seguido pelo primeiro veículo, qual seja Cabedelo – Viana do Castelo.---
3.6. No local do sinistro, a Avenida do Cabedelo, em piso betuminoso, configura uma reta com 7 metros de largura e com cerca de 150 metros de extensão.---
3.7. À data, o tempo encontrava-se de seco.---
3.8. Na data referida, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros resultante da circulação do veículo RS encontrava-se transferida para a ré, através apólice n.º 9001830830.---
3.9. Em resultado do embate, o FC sofreu danos cujo custo de reparação foi orçamentado em € 10.402,22 (IVA incluído à taxa legal).---
3.10. O FC, veículo da marca Smart, modelo Fortwo Coupé, de dois lugares, havia sido adquirido pelo autor Manuel M, no estado de novo, em Janeiro de 2008, pelo valor de € 11.000,00.---
3.11. No âmbito das diligências tendentes à regularização amigável do sinistro, a ré fixou o valor venal do veículo FC em € 7.450,00.---
3.12. O FC encontra-se imobilizado e por reparar desde 16.10.2014 até ao presente.---
3.13. O FC era utilizado pelos autores nas suas necessidades de deslocação quotidianas.---
3.14. Por via postal datada de 02.12.2014, a ré remeteu ao autor Manuel M comunicação, pela qual o informou ser o valor apurado para a reparação do FC de € 10.402,22, razão pela qual, sendo superior ao valor venal do mesmo (de € 7.450,00), o informou ter apurado o valor de € 4.895,00 correspondente ao pagamento de eventual indemnização, tendo por referência o valor referido venal (€ 7.450,00), ao qual era subtraído o valor do salvado (€ 2.550,00).---
3.15. A ré jamais diligenciou pela entrega aos autores de viatura de substituição.---
3.16. Como consequência direta e necessária do acidente em causa, o coautor Emanuel M sofreu dores e incómodos, na sequência de traumatismos nos membros inferiores e no tórax, tendo sido entretanto assistido na Unidade de Saúde do Alto Minho, EPE, em Viana do Castelo, onde, no respetivo Serviço de Urgência, lhe foram prestados os primeiros socorros, efetuados exames e prescrita medicação, de natureza inflamatória, tendo tido alta no próprio dia.---
3.17. Regressado a casa, o coautor Emanuel M continuou a sentir dores e a ingerir medicação anti-inflamatória, durante um período não inferior a 30 dias.---
3.18. Em consequência do sinistro que o vitimou, o coautor Emanuel M efetuou as despesas, ainda não reembolsadas, designadamente € 36,20 medicação e taxas moderadoras.---
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O tribunal a quo deu ainda como não provada, entre outra a seguinte factualidade
“B) FACTUALIDADE NÃO PROVADA
Produzida a prova, resultou não provada a seguinte factualidade:---
a) O valor do FC, à data do acidente, não era inferior a € 9.000,00 (nove mil euros).---
b) Por força da imobilização do FC, os autores viram-se obrigados a recorrer a serviço de transporte de aluguer (táxi), tendo despendido já o montante global de € 4.047,25 (quatro mil, quarenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), ao que acresce o que virão a despender até que a Ré pague o valor da reparação ou que o veículo, reparado, seja devolvido aos Autores.---
c) Por força da imobilização do FC, os autores terão de suportar quantia respeitante ao respetivo parqueamento.--- “.
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Conhecendo.
Em função do supra enunciado, conhecer-se-á em primeiro lugar do recurso principal (na medida em que o resultado deste não influi no sucesso do subordinado nem o inverso).
Das conclusões acima já extratadas e que delimitam o objeto do recurso principal importa em primeiro lugar dar nota de que a recorrente não requereu, ao contrário do que parecem ter entendido os recorridos (vide conclusões 1 a 13 da alegações/contra-alegações dos recorridos AA.) a reapreciação da matéria de facto em relação à qual não emite qualquer juízo de censura.
Antes e apenas, invocando a factualidade apurada e não apurada bem como as regras do ónus probatório, limitou-se a recorrente seguradora a defender uma diversa subsunção dos factos ao direito.
Nesta medida inexiste qualquer fundamento de rejeição do recurso apresentado pela recorrente seguradora, na certeza de que o mesmo é restrito à aplicação do direito.
Assente esta questão, importa em função da factualidade provada e não provada e fazendo ainda apelo às regras do ónus de prova invocadas pela recorrente, aferir se a esta assiste razão.
Pugna a recorrente pela parcial revogação da decisão em recurso, na parte em que a condenou a indemnizar o A. Manuel pelo valor correspondente ao da reparação do FC e pela paralisação do mesmo.
Defende que em função dos factos provados o FC ficou numa situação de perda total, na medida em que o valor da reparação – este no montante de € 10.402,22 [IVA incluído] tal como consta em 3.9 dos factos provados – excede largamente o valor (venal) do veículo à data do acidente.
Sobre o valor venal do veículo à data do acidente temos que a R. alegou ter avaliado este no montante de € 7.450,00 cujo valor reiterou em sede de contestação (vide 5º da contestação), tendo os AA. contraposto que o veículo teria à data do acidente valor não inferior a € 9.000,00 (entende-se valor patrimonial - vide 38º da p.i.).
Motivo porque o A. Manuel não aceitou a proposta da R. anterior à instauração da ação de o indemnizar pelo valor de € 4.895,00 atento o valor do veículo sinistrado (i.e. salvados) também por esta avaliado em € 2.555,00 (vide 29º da p.i.).
Sendo tema da prova precisamente o valor do FC à data do acidente para além do valor da respetiva reparação (tema da prova I) temos que quanto ao seu valor os AA. não lograram provar o por si alegado valor de € 9.000,00 à data do acidente [vide al. a) dos factos não provados elencados sob a al. B) da factualidade não provada].
Por outro lado apurou-se que o FC havia sido adquirido em janeiro de 2008 no estado de novo por € 11.000,00.
Bem como se apurou que a R., no âmbito das diligências tendentes à regularização amigável do sinistro fixou o valor venal do FC em € 7.450,00 [vide n.ºs 3.10 e 3.11 dos factos provados].
O que é coisa diversa de se dizer que se provou ser esse o seu valor venal ou patrimonial à data.
A impor a conclusão que não está provado o valor venal ou patrimonial do FC à data do acidente.
Ao pedido nos autos formulado subjaz a responsabilidade civil emergente de acidente de viação.
A culpa na produção do acidente foi desde o início aceite pela R. seguradora em relação ao seu segurado, motivo porque aceitou a obrigação de indemnizar os AA. na medida dos seus danos.
É o quantum indemnizatório a causa do litígio, que em sede de recurso continua a motivar as partes, conforme se extrai das suas conclusões de recurso.
Importa assim no confronto com a factualidade provada aferir se o valor da reparação do FC bem como a respetiva paralisação são danos indemnizáveis para os AA..
" Para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém", [cfr. A. Varela in "Das Obrigações em Geral" vol. 1º, 5ª ed., p. 557].
Existindo o dano, aquele que estiver obrigado a repará-lo, deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º do C.C.). A lei manda "reconstituir, não a situação anterior à lesão, mas a situação (hipotética) que existiria, se não fora o facto determinante da responsabilidade." Ant. Varela in ob. cit. p. 862.
Nos termos do disposto no art.º 566º n.º 1 do C.C. " A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
2- Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos." (sublinhado nosso).
Do citado artigo 566º n.º 1 extrai-se como limite da reconstituição natural a partir do qual esta se torna em meio impróprio ou inadequado – in casu está em causa a reparação do FC por forma a colocar o lesado na situação que existiria se não fosse o evento danoso - a excessiva onerosidade para o devedor, entendida esta como a “manifesta desproporção entre o interesse do lesado que importa recompor e o custo que a reparação natural envolve para o responsável”.
Nestes casos de insuficiência da reconstituição in natura, devendo então a indemnização ser fixada em dinheiro, calculada em função da situação concreta do lesado, tendo como medida a diferença “entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento” (vide mesmo autor in ob. cit. p. 877/878), em conformidade com o que dispõe o artigo 566º n.º 2 do CC que manda atender à diferença entre situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.
Assim se o bem fica apenas estragado, tem o lesado direito à sua reparação – reconstituição in natura.
Porém se esta reparação for excessivamente onerosa ou o bem sofrer perda total, terá o lesado direito a uma indemnização.
Discutido na jurisprudência bem como na doutrina se para efeitos indemnizatórios e no caso de impossibilidade da reconstituição natural se deve atender ao valor venal (ou seja comercial) do bem danificado (in casu o FC) ou antes ao seu valor de substituição (ou patrimonial), tem de forma reiterada vindo a ser entendido como critério orientador adotado o valor de substituição, igualmente identificado como valor patrimonial, porquanto só assim e numa interpretação mais conforme ao disposto no artigo 566º n.º 2 do CC os interesses do lesado são devidamente salvaguardados [cfr. neste sentido Ac. STJ de 21/02/2006 in CJ – ACSTJ T I, p. 83/84, Relator Ferreira Girão; Ac. STJ 04/12/2007, Relator Pires da Rosa, Ac. TRG de 21/05/2015, Relatora Ana Cristina Duarte e Ac. TRP de 19/02/2015, Relator Pedro Martins todos in http://www.dgsi.pt/ neste último se fazendo uma resenha jurisprudencial (onde entre outros é citado o Ac. do STJ de 2006 acima referido) e doutrinária sobre este assunto].
Em conformidade com este entendimento veio (aliás) no pela R. invocado artigo 41º DL 291/2007 [o qual aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis] a ser consagrado que:
“2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.” – assimilando aqui o legislador o conceito de “valor venal” a “valor de substituição”.
Este artigo 41º insere-se no capítulo relativo à “Regularização de Sinistros” o qual “fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.” (vide artigo 31º do citado DL).
De notar que o procedimento regulado no citado DL visou em sede extrajudicial fornecer critérios objetivos orientadores da proposta a apresentar pela seguradora aos lesados em sede indemnizatória em termos razoáveis, com vista a um possível acordo extrajudicial.
Porém e não sendo possível às partes chegar a um entendimento sobre o quantum indemnizatório, não são, como é comummente aceite, tais regras vinculativas para o tribunal que passará a julgar de acordo com a lei e nomeadamente em respeito às disposições do CC e aos princípios atinentes à responsabilidade civil [vide neste sentido entre outros Ac. STJ de 09/09/2010, Relator João Bernardo e Ac. STJ 06/10/2016, Relator António Piçarra ambos in http:// www.dgsi.pt/jstj ].
Por tal desde já se declara carecer de fundamento a pela recorrente apontada violação do disposto no artigo 41º do DL 291/2007 na medida em que os critérios orientadores ali fixados não são para o tribunal vinculativos.
Assente portanto que em sede indemnizatória e no caso de a reconstituição natural ser excessivamente onerosa (ou impossível), deverá a medida da indemnização ser aferida pelo valor de substituição, importa ainda dilucidar os termos em que a “excessiva onerosidade” deverá ser balizada.
O já citado artigo 41º fornece como critério orientador do conceito de perda total – caso em que igualmente estabelece que a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo – entre outras situações, aquela em que:
“c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos. “.
Através de um critério objetivo matemático que como já vimos não vincula o tribunal, pretendeu o legislador definir os limites a partir dos quais é afastada a obrigação da reconstituição natural por excessiva onerosidade em sede de regularização de sinistros por via extrajudicial.
Embora se aceite que os limites previstos nesta al. c) poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise desta questão, importa ter presente que a excessiva onerosidade e por referência ao previsto no artigo 566º do CC deverá ser aferida, conforme tem vindo a ser jurisprudencialmente defendido, no caso concreto entre o interesse do lesado à total reparação do veículo (quando possível) e o custo que tal representa para o responsável. Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se devendo entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural / in casu a reparação total da viatura.
Assim e na ponderação do interesse do lesado deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo [vide neste sentido Ac. TRP de 25/02/2013 Relator Carlos Querido, bem como o Ac. TRG de 21/05/2015 já supra citado in http://www.dgsi.pt e Ac. STJ de 05/07/2007, Relator Santos Bernardino in http://www.dgsi.pt/jstj ].
Da parte do devedor sendo de ponderar nomeadamente a repercussão que a reparação natural representará para o seu património.
Tal como sumariado no Ac. do STJ de 05/07/2007 acima citado:
“4. Na ponderação da excessiva onerosidade para o devedor não podem, assim, deixar de ser considerados fatores subjetivos, respeitantes não só à pessoa deste, e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também às condições do lesado, e ao seu justificado interesse específico na reparação do objeto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro.
5. Um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso.”.
Tendo presentes estes considerandos sobre a aferição da “excessiva onerosidade” que afasta a obrigação da reconstituição natural importa reverter ao caso concreto.
Dos factos provados resulta – para além do valor de aquisição do FC em janeiro de 2008 e do valor de reparação do mesmo - apenas que o FC era utilizado pelos autores nas suas necessidades de deslocação quotidianas [factos 3.9, 3.10 e 3.13 dos factos provados].
Não resultou, porém, provado qual o valor venal (comercial) do FC à data do acidente, nem qual o seu valor patrimonial / de substituição.
Este elemento era e é essencial para aferir da impossibilidade da reconstituição natural por excessiva onerosidade.
Não se tendo provado este valor e fazendo apelo às regras do ónus probatório – resolvendo-se a dúvida sobre a realidade de um facto contra a parte a quem o facto aproveita (vide artigo 414º do CPC) – temos de concluir que a R. está obrigada a suportar o custo da reparação do FC.
Na verdade à R. incumbia a prova da excessiva onerosidade da reparação, como facto impeditivo do direito do autor à reconstituição natural.
E esta apenas se pode aferir desde logo no confronto entre o valor do veículo à data do acidente/valor de substituição e o valor da reparação.
Apesar de terem sido os autores quem alegou o valor do FC à data do acidente e de este se não ter provado, não afasta esta alegação o ónus probatório que sobre a R. impendia sobre a excessiva onerosidade da reparação e que uma vez não observado terá de suportar a respetiva consequência [cfr. quanto a esta questão do ónus probatório e no sentido por nós pugnado os já citados Acs. STJ de 05/07/2007; Ac. TRP de 25/02/2013 e Ac. TRG de 21/05/2015].
Note-se que em causa não está a prova de que o valor de substituição do veículo é superior ao valor do mercado, caso em que então já seria aos AA. que incumbiria fazer a prova de tal realidade – o que se diz face à argumentação expendida pela recorrente nas suas alegações invocando para o efeito Ac. RC de 14/12/2010 que assim e por tal não tem aplicação à situação sub judice.
Improcede assim a pretensão da recorrente no que respeita à alteração da sua condenação ao pagamento da reparação do FC que como tal se mantém.
No pressuposto do deferimento deste segmento recursório, pugnou ainda a recorrente pela sua não condenação à indemnização arbitrada a título de paralisação do FC.
Alegou para o efeito que não sendo a reparação do FC viável, não é devida a paralisação arbitrada (vide conclusão 6ª).
Tendo sido decidido manter a condenação da aqui R. a pagar ao A. Manuel o valor da reparação do FC e estando provado que o FC se encontra paralisado desde a data do acidente até ao presente, sem que a R. tenha diligenciado pela entrega aos autores de uma viatura de substituição, apesar de o FC ser utilizado pelos autores nas suas deslocações quotidianas [vide 3.12, 3.13 e 3.15 dos factos provados], estão verificados todos os pressupostos necessários à indemnização dos AA. pela privação de uso do veículo, nos termos decididos pelo tribunal a quo e que assim não merece censura.
Termos em que se julga totalmente improcedente o recurso principal apresentado pela recorrente seguradora.
*
***
Do recurso subordinado
Nas conclusões 24 a 31 do seu recurso, pugnaram os AA. pela alteração da decisão de facto – mormente a al. b) dos factos não provados que pretendem seja dada como provada.
E consequentemente mais defenderam os recorrentes a alteração da decisão recorrida, por forma a condenar a R. seguradora na indemnização das despesas com táxi [ a que se reporta a referida al. b)] por si suportadas.
Para a apreciação da 1ª questão relativa à matéria de facto, importa ter presente o disposto no artigo 662º n.º 1 do CPC o qual assim dispõe: “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Conforme se extrai deste normativo deve a Relação alterar a decisão da matéria de facto sempre que “no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos (…) complementados ou não pelas regras de experiência.”
Assim se assumindo a Relação como “verdadeiro Tribunal de instância, e por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova encontre motivos para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem” [cfr. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código do Processo Civil, 2ª ed. 2014, p. 232/233].
Como tal e tendo presente que o princípio da livre apreciação das provas continua a ser a base, nomeadamente quando em causa estão documentos sem valor probatório pleno; relatórios periciais; depoimentos das testemunhas e declarações de parte [vide art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) do C.P.C.], cabe ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.
Levando ainda em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no artigo 607º n.º 4 do CPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi artigo 663º do CPC (norma que define as regras de elaboração do Acórdão e que para o disposto nos artigos 607º a 612º do CPC remete, na parte aplicável).
Impondo-se ainda a este tribunal, quando proceder à alteração da decisão de facto impugnada em sede de recurso e na medida em que tal seja necessário para evitar contradições na decisão de facto, alterar a resposta dada a outros pontos da matéria de facto não impugnada [vide neste sentido Ac. STJ de 14/05/2014, Relator Melo Lima in www.dgsi.pt/jstj ].
Importa ainda ter presente que é ónus dos recorrentes apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pedem a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.
Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Analisadas as conclusões dos recorrentes constata-se que cumpriram o ónus de alegação e conclusão acima descritos.
Em causa está a al. b) dos factos não provados, que os AA. pretendem seja dada como provado.
Sob tal al. foi dado como não provado que:
“b) Por força da imobilização do FC, os autores viram-se obrigados a recorrer a serviço de transporte de aluguer (táxi), tendo despendido já o montante global de € 4.047,25 (quatro mil, quarenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos), ao que acresce o que virão a despender até que a Ré pague o valor da reparação ou que o veículo, reparado, seja devolvido aos Autores.”.
Invocaram os AA. como fundamento para a pretendida alteração o teor dos docs. 7 e 8 juntos com a p.i. (faturas de táxi emitidas a favor dos AA.) conjugado com o depoimento testemunhal de Manuel P proprietário da firma de táxi emissora dos referidos documentos.
Analisados os docs. em questão incluem estes faturas emitidas por “António, Lda.” / Táxi que se identificam do seguinte modo:
i- faturas n.ºs 327 de 17/10/2014; 328 de 18/10/2014; 329 de 19/10/2014; 330 de 20/10/2014; 331 de 21/10/2014 todas estas com numeração seguida, todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 17 v.);
ii- faturas simplificadas n.ºs 622 de 22/10/2014; 623 de 23/10/2014; 624 de 24/10/2014 todas estas com numeração seguida entre si, todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 18);
iii- faturas n.ºs 332 de 25/10/2014; 333 de 26/10/2014; 334 de 27/10/2014; 335 de 28/10/2014; 336 de 29/10/2014; 337 de 30/10/2014; 338 de 31/10/2014 (no seguimento em numeração das faturas indicadas em i (fls. 18 v./19);
iv- faturas n.ºs 339 de 01/11/2014 a 347 de 09/11/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial às referidas em iii – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 19/20).;
v- faturas simplificadas n.ºs 638 a 643 de 10/11/2014 a 15/11/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 20 v./21);
vi- faturas n.ºs 348 de 16/11/2014 e 349 de 17/11/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial às referidas em iv – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 21 v.);
vii- faturas simplificadas n.ºs 645 de 18/11/2014; 646 de 19/11/2014; 648 de 20/11/2014 a 658 de 30/11/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 21 v. a 24);
viii- faturas simplificadas n.ºs 659 de 01/12/2014 a 661 de 03/12/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 25);
ix- fatura n.º 350 de 04/12/2014; fatura nº 351 de 08/12/2014 e fatura nº 352 de 09/12/2014, todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 25 e 25 v.);
x- faturas simplificadas n.ºs 663 de 05/12/2014 a 665 de 07/12/2014 igualmente com numeração seguida entre si e sequencial – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 25);
xi- faturas simplificadas n.ºs 667 de 10/12/2014; 668 de 11/12/2014, 671 de 13/12/2014 e 672 de 14/12/2014 todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 25 v./26);
xii- fatura simplificada n.º 669 de 12/12/2014 no valor de € 20,00 com o percurso indicado de V. Castelo / Esposende e fatura simplificada n.º 670 do mesmo dia 12/12/2014 no valor de € 20,00 com o percurso indicado de Esposende a Póvoa de Varzim (fls. 26);
xiii- faturas simplificadas n.ºs 674 de 15/12/2014 a 694 de 04/01/2015, com numeração seguida entre si e sequencial – uma por dia - todas de igual valor de € 40,00 e com igual percurso descrito entre V. Castelo e Esposende e vice-versa em nome do autor Emanuel (fls. 27 v. a 30);
xiv – a fls. 21 foi ainda junta uma outra fatura simplificada emitida por “Táxi Vianense, Lda.” datada de 06/11 em nome do A. Emanuel no valor de € 7,25 ainda que se diga parcialmente truncada.
Assumindo os documentos oferecidos pelos AA. a natureza de documentos particulares (vide 363º n.º 2 a contrario do CC) importa ter presente que sendo estes documentos de terceiro, valem apenas como elemento de prova a ser valorada livremente pelo tribunal nos termos dos artigos 366º do CC e 607º n.º 5 do CPC.
Não gozando como tal da força probatória conferida pelo artigo 376º do CC.
Ora todos estes documentos foram em sede de contestação impugnados pela R. (vide 12º da contestação), sobre os mesmos tendo então esta manifestado a estranheza de serem as faturas sequenciais (em termos de numeração) e feitas pelo mesmo “táxi”, incluindo dias de natal e ano novo para deslocações a trabalho.
Em sede de petição alegaram na verdade os AA. necessitar o autor Emanuel do FC para diariamente se deslocar da sua residência (indicada em Viana do Castelo) para o seu local de trabalho sito em Viana do Castelo (vide 27º da p.i.).
No confronto entre o alegado e o teor das faturas juntas não se pode deixar de concordar com a estranheza manifestada quanto ao facto de as faturas serem na verdade e na sua maioria sequenciais, sem interrupção de fins de semana ou mesmo dia de Natal ou fim de ano e com destino a Esposende – localidade em relação à qual os AA. nada alegaram na p.i. que justificasse tal destino.
Realça-se que e como é natural o proprietário de uma viatura é evidentemente livre de utilizar o mesmo em todas as deslocações e destinos que bem lhe aprouver. Porém o que aqui está em causa é o alegado pelos autores. E estes alegaram que o A. Emanuel utilizava o FC para as deslocações de trabalho, fundando assim o seu prejuízo na não disponibilidade do mesmo para fazer tal uso. Apresentando contudo e para prova do alegado as já mencionadas faturas que assim não se mostram em consonância com o alegado.
Não obstante, ouvida a prova testemunhal verifica-se que as testemunhas Manuel P e Diana C deram nota de o A. Emanuel se deslocar a Esposende no âmbito da sua atividade profissional.
Quanto a Manuel Pena que se identificou como o representante da sociedade “António, Lda.” emitente das faturas acima referidas (as de “António, Lda.”) disse, quando questionado pelo Exmo. mandatário dos AA., ter relação de amizade com estes mesmos AA..
Sobre o modo de vida dos AA., mencionou que o A. Manuel explora um restaurante e o A. Emanuel tem uma empresa comercial sem especificar bem o ramo de negócio.
Mais disse que ambos os AA. vivem no mesmo apartamento no Cabedelo (V. Castelo), conhecendo o carro em que circulava o A. Emanuel antes do acidente - um Smart 2 lugares no qual chegou a andar, e o pai daquele e também autor um BMW.
Exibidas as faturas juntas aos autos, confirmou ter sido o próprio quem emitiu as referidas faturas em conformidade com os serviços prestados que descriminou nas mesmas.
Questionado sobre a razão porque ia o A. para Esposende, disse a testemunha que este lhe referiu ter lá clientes com quem contactava.
E sobre a numeração seguida das faturas justificou corresponder ao serviço que fazia, havendo dias que só fazia o serviço do A..
Na verdade e a fazer fé nas faturas juntas, a testemunha só prestaria mesmo na quase totalidade os serviços faturados ao A. dada a representativa sequência numérica das faturas apresentadas nos autos.
Aliás isto mesmo veio a testemunha a afirmar em sede de contra instância, referindo que muitas vezes só fazia o serviço do A..
Sobre o trabalho do A. Emanuel, não obstante a afirmada consecutiva e quase exclusiva prestação de serviços ao mesmo no âmbito da sua atividade, disse esta testemunha apenas ter a ideia de que o mesmo era comercial e que (em consonância com as faturas emitidas) prestou os serviços em causa mesmo no dia de natal e ano novo.
Mais disse ainda a testemunha que a determinada altura estes serviços cessaram porque o A. Emanuel alegou dificuldades de dinheiro para continuar com as despesas de táxi que disse reclamava da seguradora e por isso pedia as faturas.
Sobre a matéria de facto em causa pronunciou-se ainda a testemunha Diana C, a qual disse conhecer o A. Emanuel há cerca de 16 anos.
Confirmou esta igualmente que o A. Emanuel Marli vive com pai no Cabedelo e que tem atividade profissional em Esposende, na área de telemóveis, sendo o trabalho deste contactar com clientes.
Mais e questionada sobre as consequências do acidente disse que o A. Emanuel se queixava com dores mesmo depois de vir do Hospital para onde foi levado de ambulância. Pelo que esteve em casa de repouso, sem sair, talvez uma semana. Tendo também estado sem trabalhar algum tempo, até porque não tinha carro.
Conjugados estes depoimentos com as faturas juntas – e sendo a primeira fatura logo do dia a seguir ao acidente, 17/10/2014 (vide fatura 327 a fls. 17 verso) e as subsequentes dos dias seguintes até 04/01/2015 sem qualquer interrupção – logo se evidenciam as incongruências entre os depoimentos e as faturas emitidas.
A ter o A. permanecido em casa, sem sair pelo menos uma semana nunca poderiam ao mesmo ter sido prestados os serviços logo a partir do dia 17/10, dia imediato ao do acidente.
Mais, se o A. se deslocava a Esposende em trabalho, para contactar clientes conforme dito pelas testemunhas – apesar de a deslocação para Esposende não ter sido alegado pelos AA. – não se compreende como o fez mesmo aos fins de semana, dia de Natal e fim de ano ou mesmo feriados nacionais.
Neste contexto de contradições e sendo certo que igualmente a prestação de serviços em exclusivo para o A. por parte da empresa de táxis não pode deixar de merecer alguma estranheza no contexto acima referido, conclui-se nenhum juízo de censura merecer o decidido pelo tribunal a quo ao dar como não provada a factualidade constante da al. b) dos factos não provados.
A implicar a improcedência do recurso apresentado pelos recorrentes no que à reapreciação da matéria de facto concerne.
Improcedente a pretendida alteração da decisão de facto, naturalmente improcede a pretendida condenação da R. ao pagamento das despesas alegadas e não provadas que na pretendida alteração da matéria de facto encontrava o seu fundamento.
Termos em que se conclui pela total improcedência do recurso subordinado apresentado pelos AA..
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
1- A obrigação da reconstituição natural em sede indemnizatória só cede perante a indemnização pecuniária em caso de excessiva onerosidade daquela;
2- O conceito de perda total definido pelo artigo 41º do DL 291/2007 para efeitos de afastar a obrigação da reconstituição natural no âmbito da regularização de sinistros por via extrajudicial não é para o tribunal vinculativo;
3- É ónus do obrigado à reparação a prova da excessiva onerosidade da reconstituição natural;
4- Na reapreciação da matéria de facto o tribunal da Relação fazendo uso dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, apenas deve alterar o decidido pelo tribunal a quo quando verifique erro de julgamento.
III. Decisão.
Em face do exposto, julga-se quer o recurso principal quer o subordinado totalmente improcedentes, consequentemente se confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação principal pela recorrente seguradora e da apelação subordinada pelos AA. recorrentes.
***
Guimarães, 24 de novembro de 2016
(Maria de Fátima Almeida Andrade)
(Alexandra Maria Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)