RECURSO DE REVISTA
ÂMBITO
EFEITOS
CONSTITUCIONALIDADE
CASO JULGADO
INTERESSE EM AGIR
NULIDADE DE SENTENÇA
ERRO DE JULGAMENTO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
TRADIÇÃO DA COISA
ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
DIREITO DE RETENÇÃO
DIREITO DE SEQUELA
Sumário

I - O recurso de revista só pode ter efeito suspensivo em questões sobre o estado de pessoas, norma essa (CPC 723) que não padece de inconstitucionalidade.
II - Em recurso de revista, a violação da lei processual apenas pode constituir fundamento quando e se for admissível a dedução autónoma de agravo.
III - Apenas existe razão de ser para deduzir um pedido ou a defesa se isso apresentar interesse para quem o ou a formula.
IV - Da improcedência de uma acção não tem de resultar a afirmação do contrário.
V - Nulidade de sentença e erro de julgamento não se confundem.
VI - Tanto dar o consentimento como recusá-lo ou simplesmente o não prestar são facto, sendo livre a sua demonstração.
VII - Ampliar (v.g., ampliação do âmbito do recurso) implica ir além do que a contraparte alegou.
VIII - Os poderes instrutórios do tribunal estão submetidos a dois fins - apuramento da verdade e justa composição do litígio - sem, todavia, permitir que se ultrapasse o limite cognitivo «quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer»; não existem para o tribunal se substituir às partes.
IX - Na análise da eficácia da revogação da procuração tem de se distinguir o plano interno do externo; o art. 266-1 ao exigir o conhecimento por parte de terceiros, afasta-se, em alguma medida, da regra geral do art. 224 CC, mas isso não torna exigível que uma pessoa medianamente diligente e prudente coleccione os artigos da imprensa que, directa ou directamente, lhe não despertem interesse (imediato ou em perspectiva) ou lhe não digam respeito.
X - A traditio não requer a adopção da forma escrita e, sendo casado quem à entrega procede, porque acto de administração de um bem comum do casal, não carece de consentimento do cônjuge.
XI - Goza do direito de retenção o beneficiário de contrato-promessa com traditio rei para garantia do seu crédito resultante do não cumprimento imputável ao promitente vendedor.
XII - Como direito real tem eficácia erga omnes e um dos caracteres do regime destes direitos é a sequela, a qual constitui uma consequência da eficácia absoluta dos direitos reais.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" propôs contra B e mulher C acção a fim de se declarar incumprido definitiva e culposamente pelos réus o contrato-promessa de compra e venda, de 00.10.24, mencionado no art. 1º da pet. in., decretando-se a sua resolução, e se condenar os réus na restituição do sinal em dobro (€69.831,71), acrescido de juros de mora desde a citação e na devolução do cheque de 9.500.000$00, entregue aquando da assinatura da recepção da fracção autónoma, e se lhes reconhecer o direito de retenção sobre a mesma.
Contestando, a ré excepcionou a falta de poderes do réu para a vincular (revogação das procurações que lhe outorgara) e impugnou, concluindo pela absolvição do pedido.
Contestando, o réu excepcionou a ilegitimidade quanto ao pedido de reconhecimento do direito de retenção e impugnou, concluindo pela sua absolvição ou da instância ou do pedido.
Replicando a cada uma, requereu a autora a ampliação do pedido (rectificando, mais tarde para ampliação da causa de pedir) - fls. 193 e 211.

Após tréplica, desistiu a autora do pedido de devolução do cheque, por lho ter sido, entretanto, entregue, tendo, quanto a ele, a instância sido julgada extinta por inutilidade superveniente da lide.
D requereu o incidente da sua intervenção principal espontânea, pedindo a improcedência da acção, «ao menos o que diz respeito ao pedido de reconhecimento do direito de retenção» (fls. 280), incidente a que se opôs a autora. Admitido o mesmo, agravou esta do respectivo despacho.
Improcedeu a excepção de ilegitimidade e foi admitida a ampliação da causa se pedir, no saneador, prosseguindo o processo com a organização da especificação e da base instrutória.
Novo pedido de ampliação do pedido, agora contra os réus e o interveniente, o que foi indeferido. Agravando deste despacho, veio a autora a desistir do recurso, o que foi sancionado.
A final, procedeu em parte a acção (declarado o direito da autora a resolver o contrato--promessa e condenados os réus a, solidariamente, lhe pagarem € 69.831,71 acrescidos de juros de mora desde a citação; improcedente o pedido de reconhecimento do direito de retenção), por sentença que a Relação, sob apelação de cada um dos réus e da autora, confirmou.
O interveniente agravara do despacho que à apelação fixou efeito suspensivo, recurso não admitido.
Inconformadas autora e ré, interpuseram revista, concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações -

A)- a autora, requerendo ainda a fixação de efeito suspensivo ao recurso, no que não foi atendida (rotulado de ‘conclusões’ um complexo emaranhado de extensas asserções, muitas delas pouco claras; formular um convite nos termos do art. 690 n. 4 CPC era, como os articulados, requerimentos e alegações que apresentou o demonstram, inútil e apenas serviria para provocar uma delonga processual)
- defendendo nesta acção o direito de retenção, a fixação de efeito suspensivo destrói o próprio recurso
- sendo inconstitucional discriminar uma minoria que se encontre com o direito de defender a legitimidade daquele direito;
- há oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão da Relação do Porto de 02.01.10, proc. 92/01 o qual não admitiu a intervenção, no âmbito da oposição espontânea, da recorrente na acção de execução específica que transmitiu a propriedade da fracção ao interveniente;
- não tendo o interveniente obrigações nem direitos na relação contratual entre autora e réus, não beneficia de qualquer direito próprio, paralelo ao dos réus, para defender relativamente à causa de pedir e
- o reconhecimento do direito de retenção não subtrai o bem ao património do devedor e nem sequer obsta à entrega da fracção ao interveniente, pelo que não devia ter sido admitido a intervir;
- o quesito 10, sobre o consentimento da ré, é uma questão de direito pelo que se deve considerar ‘não escrita’ a sua resposta;
- a Relação, após pretextar que a autora não respeitou o disposto no art. 522 n. 2 CPC, abusou do seu poder, decidindo antes de analisar a matéria sobre que devia recair a decisão, e utilizou meios ilegais para fundamentar a sua decisão, recusando reapreciar a gravação do depoimento de parte por si impugnado e no qual a ré confessava factos contrários à resposta dada ao quesito 10;
- na sequência da intervenção de D, devia ter sido junto o original do seu contrato-promessa e explicadas as rasuras e emendas na identificação da fracção autónoma, e não ressalvadas, pelo que houve omissão de pronúncia;
- nula a sentença por, embora constatando existirem os pressupostos necessários ao reconhecimento do direito de retenção, não o ter reconhecido, não devendo servir o erro de julgamento para ocultar a nulidade da sentença;
- o direito de retenção funciona aqui como uma garantia protectora do consumidor (o réu, construtor vendedor; o interveniente, investidor que co-financiou o projecto do réu, adquirindo duas fracções para as revender e se enriquecer, sendo uma delas a dos autos) e constituiu-se com a entrega em 00.12.13;
- o réu não cumpriu por existir um registo provisório da acção de execução específica a favor do interveniente, o qual da situação informou a autora por carta de 01.02.01;
- sendo a autora credora dos réus e de acordo com o direito de sequela, o direito de retenção segue a coisa inclusive no património dos sucessivos adquirentes;
- a Relação não pode apreciar a gravação não impugnada de depoimento que extravasa a matéria seleccionada para fundamentar, sem razão, que a autora tomou conhecimento da acção no final de Novembro de 2000 sendo que, como vários elementos podem provar, desconhecia totalmente o registo da acção;
- o STJ pode sindicar o facto afirmado pela Relação por esta se apoiar em depoimento ilegal do interveniente, se ter esquecido que o facto não admite prova testemunhal e que o D, sendo profissional, tem o ónus de provar que prestou a referida informação nos termos legais;
- o hipotético consentimento «quod non» da referida acção e o correlativo registo não impedia o reconhecimento do direito de retenção;
- o réu deve ser condenado por litigância de má fé pois, sabendo que o incumprimento do contrato já se tinha consumado por sua culpa, não pode ignorar que acusa, indevidamente e de má fé, a autora de não querer cumprir, de nunca ter querido cumprir e de se querer enriquecer à custa dele, e de abusar do direito quando quem se permite abusar do direito é ele mesmo;
- violado o disposto nos arts. - 3, 3-A, 514, 320 a), 321, 456, 646-4, 660, 690-A, 668-1 e 712; - 5 e 6-3 CRPred; - 8-3, 258, 371, 755-1 f) e 759 CC; - 6 da CEDH; - 2, 13 e 20 CRPort..

B) - a ré -
- a revogação de procuração pode ser realizada livremente pelo mandante desde que a procuração revogada não tenha sido passada a favor do mandatário para celebrar negócio consigo mesmo - o que não é o caso dos autos;
- a revogação pode ser feita por qualquer meio e nomeadamente através de outorga de instrumento público de revogação como no caso dos autos;
- da revogação deve dar o mandante conhecimento a terceiros através dos meios idóneos, tendo em vista a protecção desses mesmos terceiros, o que não significa que se tenha de dar individualmente a cada um dos potenciais negociadores com o mandante, mas tão só que deve ser levada ao conhecimento da generalidade das pessoas;
- uma publicação no Jornal de Notícias da revogação das procurações passadas a favor do mandante, residente no Porto e que aí exercia a sua indústria, é meio idóneo e cumpre a lei
- pelo que as procurações passadas pela ré ao co-réu têm de se considerar revogadas.

Requereu a autora a junção de «documento superveniente» demonstrativo, a seu ver, da errada fixação de um concreto ponto da matéria de facto - conhecer a situação registral e a existência do interveniente quando lhe foi entregue a fracção autónoma.
Contraalegaram autora e interveniente, tendo aquela, por entender que este invocou ‘ilegalmente, meios de defesa, ampliando extemporaneamente, o objecto do recurso que não lhe competia invocar’ (fls. 1.613).

Colhidos os vistos.

Matéria considerada provada pelas instâncias -
a) - a autora e o réu B subscreveram documento datado de 00.10.24, do qual consta que o réu, por si e na qualidade de procurador da Ré C, promete vender à Autora, e esta promete comprar, livre de ónus e encargos, a fracção designada pela letra I, correspondente a uma habitação T-1, localizada no 1º andar esquerdo frente, da qual fazem parte um lugar de garagem e uma arrecadação, ambos localizados na cave do prédio sito na rua da Torrinha, nº 322/332, Cedofeita, concelho do Porto, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 1012/20000314-1, pelo preço global de 16.500.000$00, a pagar da seguinte forma: a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 1.000.000$00 a pagar no momento da assinatura do contrato promessa; a título de reforço de sinal, a quantia de 6.000.000$00 a pagar no momento em que fosse deferido o financiamento bancário, com data limite de 00.11.30; o remanescente - 9.500.000$00 - a pagar no momento da realização da escritura pública de compra e venda, a realizar até 01.01.15;
b) - a autora e o réu subscreveram documento datado de 00.12.13, denominado auto de recepção da habitação, do qual consta que o réu B outorga por si e na qualidade de procurador da Ré C, e que a Autora aceita que o prazo referido na al. a) para a realização da escritura seja prorrogado até que o réu esteja apto a celebrar a escritura;
c) - em acção instaurada pelo interveniente contra os réus, foi proferida sentença a 01.06.04, transitada a 02.01, pela qual foi declarada transferida para a interveniente a propriedade das fracções I e J do prédio identificado na al. a), com os respectivos lugares de garagem e arrumos, que os réus, em 95.08.11, lhe haviam prometido vender pelo preço de 23.500.000$00;
d) - na constância do matrimónio, e quando o casal vivia em comunhão de mesa e habitação, porque o réu se dedicava à indústria de construção civil, quer como sócio de várias sociedade, quer individualmente, a ré passou a seu favor duas procurações que permitiam ao seu marido vender prédios e fracções autónomas destes em representação da sua mulher;
e) - em 95.10.18, no 8º Cartório Notarial do Porto, por instrumento público, a Ré declarou revogar a procuração por ela passada em 91.05.09, nesse cartório, a favor do réu;
f) - em 98.04.17, no 2º Cartório Notarial de Matosinhos, por instrumento público, a Ré declarou revogar a procuração outorgada a favor do réu em 81.04.02, e toda e qualquer procuração por si passada a favor daquele;
g) - o teor do instrumento referido na al. f) foi dado a conhecer ao réu por carta registada, datada de 98.04.21;
h) - foi publicada no Jornal de Notícias de 98.04.20 a declaração do seguinte teor: "C ... declara e faz saber que todas as procurações por si passadas a favor de B e entre elas as outorgadas em 2-4-81 e 9-5-91, no 8º Cartório Notarial do Porto, se encontram expressamente revogadas, não podendo ser pois usadas para qualquer um dos fins a que se destinavam";
i) - por carta datada de 01.02.01, o interveniente comunicou à autora que, no âmbito de um procedimento cautelar, havia sido proferida decisão no sentido da inibição dos réus de vender a fracção identificada na al. a) a pessoa diferente do interveniente;
j) - o interveniente enviou à autora a carta datada de 02.03.04, do seguinte teor: "pretendo vender-lhe a referida fracção pelo preço de 16.500.000$00 (correspondentes a 82.301,65 euros) - exactamente o mesmo que consta do denominado contrato promessa que terá sido celebrado entre V. Exª e o anterior proprietário, B, no dia 24 de Outubro de 2000. Daquele preço, V..Exª pagar-me-á apenas a quantia de 9.500.000$00 (correspondente a 47.385,80 euros), que é a que se encontra ainda em dívida. Esta parte do preço será paga, ainda de acordo com esse mencionado contrato--promessa, no acto da escritura de compra e venda;...; Fico a aguardar que me transmita, com urgência, a disponibilidade temporal para a outorga da escritura";
k) - a solução referida na al. j) não foi aceite pela autora;
l)- o documento referido na al. a) não contém as assinaturas dos seus outorgantes reconhecidas presencialmente, nem contém nenhuma declaração notarial de existência de licença de construção;
m) - o réu era casado em regime de comunhão de adquiridos com a ré;
n) - a fracção identificada na al. a) era um bem que tinha sido adquirido na vigência do casamento dos réus;
o) - em 00.11.22, foi registada na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto a acção judicial referida na al. c);
p) - em 02.03.18, foi registada a decisão judicial referida na al. c);
q) - em 00.10.19, a autora entregou a quantia de 1.000.000$00 para pagamento do sinal;
r) - em 00.11.22, a título de reforço de sinal e continuação de pagamento, a autora entregou a quantia de 6.000.000$00;
s) - em 00.12.13, o réu entregou à autora a fracção identificada na al. a);
t) - em consequência de uma separação de facto entre a autora e seu marido, decidiu aquela instalar-se em Portugal;
u) - para isso, e por comum acordo, o marido da autora aceitou financiar-lhe um apartamento em Portugal;
v) - em face do referido na al. i), a autora, em inícios de Abril de 2001, voltou para França, aí reorganizando a sua vida;
x) - o réu detinha em seu poder, em 00.10.24, a procuração outorgada a seu favor pela ré, em 81.04.02;
y) - a ré não deu o seu consentimento para a entrega da fracção identificada na al. a) à autora.

Decidindo: -

1.- É de apreciar que um processo onde tanta complicação desnecessária introduzida foi, potenciadora de morosidade, tenha alcançado o STJ ao fim de apenas 3 anos e 2 meses.
Exactamente com o mesmo propósito de celeridade processual e evitar maior delonga, reduziu-se ao mínimo o despacho liminar por daí nada resultar de prejuízo para qualquer parte como, pelo decorrer do acórdão, poderá ser constatado.

2.- Revista da autora e seu efeito.
Em 04.12.03 (fls. 1318), a autora interpôs recurso de agravo por o acórdão ter negado provimento ao que deduziu para a Relação com vista à não admissibilidade do incidente de intervenção espontânea, invocando a oposição com outro proferido pela mesma Relação.
Em 04.12.16 (fls. 1334), apresentou a autora novo requerimento nele pedindo se desse sem efeito o anterior e interpondo recurso de revista com fundamento em violação de lei substantiva e de lei de processo.
O despacho (fls. 1416) que admitiu os recursos de revista (da autora e da ré) não se pronunciou sobre a preclusão nem tal questão foi suscitada pelas partes e apenas conheceu do pedido da autora para se fixar o efeito suspensivo ao seu recurso, indeferindo-o.
Alegando, pretende a autora que ao seu recurso se fixe o efeito suspensivo defendendo a inconstitucionalidade do art. 723 CPC quando em causa esteja a condenação do recorrente na entrega de prédio por ele habitado.
O problema perdeu a acuidade que tinha mas nem por isso se deixa de tomar posição.
Contrariamente ao afirmado pela recorrente não houve falha de previsão do legislador. Basta pensar que a condenação idêntica pode derivar da procedência de diverso tipo de acções; a título de exemplo, reivindicação, execução específica, despejo, etc. Não poderia ignorar que quer o incumprimento de um contrato-promessa acompanhado de traditio quer a procedência daquelas e outras acções pode ter como consequência a entrega ou a restituição do prédio habitado pelo litigante vencido.
Tem havido várias alterações à lei processual e embora conhecendo o antes afirmado, não foi alterada aquela disposição e precisamente porque nela se quis dizer o que se quis - nem se disse de mais nem de menos -, excluindo daquele efeito apenas o tipo de acção que por si mesma o justificava.
Invoca a recorrente o princípio da igualdade não em relação a esse tipo de acção (nem razoavelmente o poderia fazer) mas, segundo alega, por discriminar uma minoria de cidadãos impedindo--os de defender o direito de retenção. É suficiente, não carecendo de maior desenvolvimento, o apontado antes a respeito da arguição da falta de previsão pelo legislador. Tratamento igual para situações iguais e não a criação de tratamento desigual favorecendo uma situação em detrimento de outras que idênticas na mesma consequência são.
Invoca ainda o acesso ao direito e aos tribunais e a garantia de efectivação do direito. A fixação do efeito devolutivo não inviabiliza nem um nem outra nem a recorrente cura em o demonstrar.
Finalmente vem invocar que fixando-o se cria um processo desigual e injusto. Mais uma vez se limita a enunciar a proposição sem a concretizar.

3.- Objecto da revista da autora e fundamento em violação da lei processual.
Este fundamento apenas é possível quando e se for admissível a dedução autónoma de agravo (CPC 722,2).
Daí que a recorrente, ciente de que, por si só não autorizaria recorrer de agravo (CPC 754-2, 1ª parte), invoque a oposição com um acórdão da mesma Relação. Porém, não o faz juntar nem se deu ao cuidado, mínimo, de indicar onde poderia ser consultado pelo que se desconhece o seu teor.
Não se o conhecendo é impossível ao STJ conhecer da sua conformidade à ressalva do nº 2 do art. 754 CPC (apenas se tem conhecimento, através da sentença certificada, que o incidente que a aqui autora deduziu não foi o de intervenção espontânea mas sim o de oposição espontânea - cfr. fls. 47; também a própria indicou tratar-se de oposição, não de intervenção principal -, o que, desde logo, afasta o fundamento de oposição de julgados pressuposto naquele nº 2).
Inadmissível esse fundamento integrar o objecto (cognoscível) do recurso de revista da autora.
Pese embora isto e independentemente do (des)acerto do acórdão sobre a questão em causa, não se compreende a incongruência patenteada pela recorrente.
Um dos pedidos que formulou foi o do reconhecimento do direito de retenção sobre a fracção autónoma prometida vender.
D, para quem o direito de propriedade se transferira, como sabia (a execução específica e seu desfecho eram do seu conhecimento), requereu a sua intervenção no processo.
A autora opôs-se e, porque vencida, agravou, sem êxito, para a Relação. Esta a questão que pretendia renovar perante o STJ.
Ao formular, na petição inicial, aquele pedido, quer, se proceder, que ele tenha eficácia de caso julgado oponível a quem esteja na posse do mesmo. Ora, face ao disposto nos arts. 671 n. 1 e 673 CPC e na medida em que sabia (e nem que só o passasse a conhecer quando ele requereu o incidente) que era um terceiro que estava na sua posse, só teria vantagem em lhe tornar oponível uma sentença que lhe reconhecesse o direito de retenção.
Certo que isso não constituía factor para inviabilizar a dedução de fundamento legal ao requerido, mas não deixa de patentear uma certa incongruência, deixando de aproveitar da presença desse terceiro na acção e perdendo a oportunidade, se admitido viesse a ser, de lhe opor uma decisão favorável (melhor dito, se favorável) sem necessidade de uma nova e posterior demanda judicial por si instaurada ou de, se instaurada pelo interveniente, nela se defender (daí o se estar neste momento a discorrer sem se perspectivar a questão em termos da eficácia erga omnes dos direitos reais).
E se, porventura, deduziu a oposição julgando que a oponibilidade estaria assegurada pelo (eventual) insucesso da acção que D contra si e outros deduzira (cópia da petição inicial a fls. 118 e ss. e 293 e ss.), falecia-lhe razão.
Não era só a eventualidade de uma decisão desfavorável ao demandante; era também o daí não poder resultar a afirmação do direito de retenção da aqui autora nem da sua oponibilidade ao ali demandante.

4.- Nulidade da sentença. Erro de julgamento.
Trata-se de figura distintas o que convém ter presente na análise da situação, desde logo quanto ao tipo de norma que se tem por violada, quanto ao regime da sua impugnação e à espécie de recurso que pode fundamentar.
Se a situação é de nulidade a norma violada é lei processual, argui-se-a e da respectiva decisão cabe, se constituir fundamento único do recurso, agravo.
No erro de julgamento é a lei substantiva que se acusa de ter sido violada e a espécie de recurso será a de apelação, se para a Relação, ou de revista, se para o Supremo Tribunal de Justiça.
Erróneo, pois, dizer-se que sob a argumentação de erro de julgamento se deu cobertura a uma nulidade de sentença.
A Relação conheceu da conclusão em que a autora acusava a sentença de incursa em nulidade de oposição entre os seus fundamentos e a decisão, afastou-a como e enquanto nulidade e, sobre a matéria, agora, juridicamente colocada onde o deveria ter sido, se pronunciou.

5.- Junção do «documento superveniente» e resposta ao quesito 10º.
Trata-se de uma sentença de 05.02.21, proferida pelo Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, no proc. 148/04.2THPRT, já transitada em julgado, processo este movido pela ora autora a E - Sociedade de Mediação Imobiliária, Lª. (fls. 1577-1593, repetido a fls. 1595-1612).
Nem esta sociedade nem o seu gerente (a quem se imputa o facto que a recorrente diz legitimar a junção do documento) são parte no presente processo.
O valor da prova produzida e fixada nesse outro processo não pode ser transportado para este, pelo que não tem a virtualidade de (eventualmente) destruir a neste fixada. Irreleva para este processo.
Porque inaplicável quer o disposto no art. 722 n. 2 (não integra qualquer das situações aí previstas) quer no art. 522 n. 1 CPC, não se admite a sua junção, e irá ser ordenado o seu desentranhamento.
Teor do quesito 10º -
«a ré C não deu o seu consentimento para a entrega da fracção identificada no item 1º à autora?».
Dar o consentimento, consentir, é uma manifestação de vontade e como tal, facto.
Não dar o consentimento é uma manifestação de vontade (não o dar), mas pode ainda ser tomado no sentido de, por a pessoa não se ter pronunciado, se concluir que ela não o prestou. Facto também.
A demonstração deste facto é livre.
O Supremo Tribunal de Justiça não pode censurar o não uso pela Relação dos poderes que lhe são cometidos pelo art. 712 CPC (ainda quando se trate de gravação não ouvida ou efectuada de modo deficiente e que não tenha permitido uma correcta audição, o problema a colocar é de nulidade e, se arguida, será nessa sede que se terá de a conhecer e decidir).
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça é por natureza, vocação e estrutura, um tribunal de revista e não uma 3ª instância, pelo que as pretensões da recorrente autora não podem, nesse ponto, ser atendidas.

6.- Ampliação do âmbito do recurso a requerimento do interveniente recorrido.
O requerimento em que a autora acusa o interveniente de ilegalmente ampliar o âmbito do recurso é ininteligível quanto a tal e mais configura uma nova alegação de recurso que outra coisa.
Mesmo assim, parece poder descortinar-se que onde vê a ampliação é na afirmação de o consentimento para a entrega do prédio não decorrer da procuração, contrariamente ao que pretende a autora (fls. 1545).
Apelando, pretendeu a autora a alteração da resposta positiva ao quesito 10º (a al.y)) - ‘a ré C não deu o seu consentimento para a entrega da fracção identificada no item 1º à autora’ - para «não provado», além de defender que se trata de uma questão de direito.
De novo defende que saber se deu ou não consentimento passa única e exclusivamente pela discussão da revogação da procuração e da sua oponibilidade à autora, para, a seguir, afirmar que o consentimento da ré nem sequer era necessário (fls. 1619).
Se aqui houvesse a acusada ampliação, seria lícita nos termos do art. 684-A CPC.
A ampliação implica algo que vai além do que a contraparte alegou e o interveniente é um dos recorridos na revista interposta pela autora e a matéria em causa interessa ao mesmo.
Carece de fundamento alegar que o interveniente se está a substituir à ré em pretensão que só a ela diz respeito e que ela não invocou.
Independentemente disto, para recusar a pretensão da autora, o fundamental é que, na realidade, aquela afirmação não constitui ampliação alguma do âmbito do recurso pelo interveniente.

7.- Poderes instrutórios do tribunal.
Estes não existem para o tribunal se substituir às partes e estão submetidos a dois fins - apuramento da verdade e justa composição do litígio - sem, todavia, permitir que se ultrapasse o limite cognitivo «quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer» (CPC 265, n. 3).
Neste processo não estava em discussão o contrato-promessa outorgado entre os réus e o interveniente. Dado à execução específica, definir qual o seu objecto mediato punha-se aí como questão essencial, era nessa acção que tinha de ser decidida. Ou nessa acção intervinha a autora, se legitimidade lhe assistisse, ou, ela acciona em termos de ficar demonstrado e ser decidido que a fracção autónoma não foi a em causa mas diferente.
A presente acção não serve um tal objectivo nem é ou pode funcionar como recurso de revisão. Havia que respeitar o caso julgado formado.

8.- Incumprimento do contrato-promessa e crédito da autora sobre os réus. Revogação das procurações, contrato-promessa e traditio.
Em 00.10.24, o réu, outorgando por si e na qualidade de procurador da ré, sua mulher, declarou, por escrito, prometer vender à autora a fracção autónoma em causa e esta declarou prometê-la comprar.
Na constância do matrimónio dos réus e quando o casal vivia em comunhão de mesa e habitação, a ré, porque o réu se dedicava à indústria de construção civil e era sócio de várias sociedades, quer individualmente quer com a ré, emitiu a favor do seu marido duas procurações a lhe permitirem vender prédios e fracções autónomas em representação da ré.
Em 95.10.18, a ré revogou a procuração por ela passada, em 91.05.09, a favor do réu.
Em 98.04.17, a ré revogou a procuração por ela passada, em 81.04.02, a favor do réu e toda e qualquer outra por si passada a seu favor, revogação de que ao réu deu conhecimento.
No Jornal de Notícias de 98.04.20 fez publicar notícia da revogação das procurações e que não podiam ser utilizadas para qualquer um dos fins a que se destinavam.
Em 00.12.13, por escrito, o réu, em seu nome e na qualidade de procurador da ré, fez entrega da fracção autónoma em causa à autora e esta aceitou-a.
Provou-se que a ré não deu o seu consentimento na entrega da mesma.
A procuração é livremente revogável (CC 265,2) e a sua revogação deve ser levada ao conhecimento de terceiros por meios idóneos (CC 266,1).
Não se alegou - e não se demonstrou, portanto - que a autora conhecesse a revogação ou que esta tenha chegado ao seu poder ou que só por sua culpa não tenha recebido a declaração - o que seria importante para a ré fazer e ver vingada a sua tese da inoponibilidade, no plano externo, do negócio celebrado com a autora.
A esta foi apresentada a procuração e, por força dela, o réu agindo como procurador da ré. A ré sem culpa sua (nada alegado em contrário) desconhece a revogação.
Há que distinguir dois planos - o interno (procurador e representado) e o externo.
A questão aqui colocada, única que a esta acção interessa, situa-se no plano externo, o que contende com a protecção de terceiros.
Muito embora, como referem A. Varela-P. de Lima, in CCAnot- I/247, o art. 266-1 ao exigir o conhecimento por parte de terceiros, se afaste, em alguma medida, da regra geral do art. 224 CC, o certo é que não torna exigível que uma pessoa medianamente diligente e prudente coleccione os artigos da imprensa que, directa ou directamente, lhe não despertem interesse (imediato ou em perspectiva) ou lhe não digam respeito.
Nem a situação do art. 263-2 CPC é idêntica à dos autos nem a ré, que invoca o facto de lhe não terem sido restituídas as procurações, se socorreu dos meios processuais que lhe permitiriam verdadeiramente assegurar a restituição e, com isso, poder ser colocada pelo seu marido em situação que a vinculasse contrariamente ao por si pretendido.
Para o acto da entrega, a traditio, para o qual não havia sequer a necessidade de ser adoptada a forma escrita, vale não só o acabado de referir a respeito da vinculação da ré como ainda o se dever atender à natureza do acto. Na realidade, é um acto de administração de um bem comum do casal e, para a prática deste, gozava de legitimidade (CC- 1678,3).
Não sofre dúvida, nem isso vem questionado (afastado que está a não vinculação da ré), que o contrato-promessa foi incumprido culposamente pelos promitentes vendedores.
Pedida a restituição do sinal em dobro. Não se discute quer o carácter das entradas em dinheiro quer o seu montante.
Nos termos do art. 442 n. 2 CC, assiste à autora direito a um tal pedido. Pelo pagamento são responsáveis ambos os promitentes vendedores.

9.- Direito de retenção da autora.
Em 00.10.24 foi celebrado o contrato-promessa de compra e venda com a autora.
Na sequência deste, o réu, por si e na qualidade de procurador da ré, entregou à autora, em 00.12.13, a fracção autónoma prometida vender (traditio) que aí estabeleceu a sua residência.
Na execução específica do contrato-promessa outorgado em 95.08.11, instaurada por D contra os aqui réus foi proferida, em 01.06.04, sentença (transitou em julgado em 02.01.28), a declarar transferido para aquele o direito de propriedade sobre a citada fracção autónoma.
Goza do direito de retenção o beneficiário de contrato-promessa com traditio rei para garantia do seu crédito resultante do não cumprimento imputável ao promitente vendedor (por in casu o ser, não há que indicar todos - quem promete transmitir ou constituir um direito real).
O promitente comprador goza do direito de retenção para garantia do crédito resultante do incumprimento, direito esse que vai actuar como meio coercivo ao cumprimento.
Além de ser garantia, é causa de licitude do não cumprimento.
Perspectivado na sua função de garantia é um direito real de garantia.
Porque direito real tem eficácia erga omnes, há a obrigação universal de abstenção; é suficiente, porque direito que se exerce directa e imediatamente sobre a coisa, para se realizar que todos os que não são seus titulares se abstenham de perturbar o seu exercício. Como refere Mota Pinto, in Dir. Reais, p 44, esta eficácia traduz-se «na atribuição ao seu titular do poder de os exercer em face de todos os outros e, por outro, na imposição a estes de restrições, ou, melhor, da necessidade de respeitarem o direito que em face deles se apresenta».
Um dos caracteres do regime destes direitos é a sequela (não há direitos reais sem sequela nem esta existe em quaisquer outros direitos) - este, como poder que incide sobre as coisas de forma imediata, subsiste sobre a coisa, segue-a através de todas as contingências e subsiste sobre a coisa independentemente das mudanças que possam ocorrer na titularidade dos demais direitos que sobre ela também concorram.
Como ensina Mota Pinto, op. cit., p. 46, o direito de sequela «constitui, ele também, uma consequência da eficácia absoluta dos direitos reais», «o direito de sequela segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação em que a coisa se encontre. Daí que o titular do direito real possa sempre exercer os poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objecto entre no domínio material ou na esfera jurídica de outrem» (p. 47). «Nas hipóteses em que, ..., (se verifique) apenas a existência de uma situação jurídica susceptível de perturbar o direito real, ..., não deixa, porém, também aí, de se manifestar a sequela. Assim, por exemplo, tanto ao usufrutuário como ao titular de um direito real de garantia (...) assiste o direito de sequela» (p. 49).
A autora tem sobre os réus um crédito resultante do incumprimento - que, in casu, é o dobro do sinal - imputável aos promitentes-vendedores (os réus) e ocupa a fracção autónoma prometida vender por lhe ter sido por estes entregue.
Goza do direito de retenção (CC 755,1 f) e 442-2).
Concorre com o seu direito real de garantia o direito de propriedade do interveniente. Enquanto não for satisfeito o crédito que o direito de retenção garante, este direito subsiste pelo que, face à sua eficácia, requer a abstenção da prática de actos que perturbem o seu exercício, inclusive do titular do direito de propriedade.

10.- Não há sinais de má fé, pese embora ser temerária a litigância dos réus.

Termos em que, concedendo-se a revista da autora e negando-se a da ré, se revoga o acórdão recorrido e se julga procedente a acção, salvo quanto ao pedido de restituição do cheque, e mais se ordena o desentranhamento do documento de fls. 1.577-1.593 e 1.595-1.612.

Custas - da revista da autora, pelos réus e interveniente; da revista da ré - por esta; do incidente de junção e desentranhamento de documentos - pela autora.

Lisboa, 5 de Julho de 2005
Lopes Pinto,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.