RAPTO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Sumário

1. O crime de rapto constitui um tipo de crime conta a liberdade pessoal e de intenção específica - a privação da liberdade tem de ser determinada com a finalidade de exercer sobre a vítima alguma das acções que são especificamente referidas na lei, entre as quais uma ofensa contra a autodeterminação sexual da vítima - artigo 160°. n° 2, alínea b) do Código Penal;
2. Constitui elemento essencial do crime de rapto, que integra o tipo (elemento subjectivo do tipo), uma específica intenção, que qualifica e diferencia tipicamente a privação de liberdade em relação à privação de liberdade (fundamentalmente o mesmo bem jurídico) no crime de sequestro - artigo 158° do Código Penal.
3.Nos crimes de abuso sexual de crianças as exigências de prevenção geral têm, uma finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", solteiro, vendedor, nascido a 12/01/72¸ natural de Oeiras, filho de B e de C, residente na Rua da Torre n° ..., Vila Chã de Sá, Viseu, foi acusado pelo Ministério Público pela prática de dois (2) crimes de rapto, na forma tentada, p. e p. nos arts. 23°, nº l e 160°, n° l, alínea b) e n° 2¸ alínea a), ambos do CP; um (l) crime de rapto, consumado, p. e p. no art. 160°, n° l, alínea b), e n° 2, alínea a), do C.P e de um (1) crime de violação agravado, p. e p. nos arts. 164°, n° 1, e nº 4, ambos do C.P:
Na sequência do julgamento¸ a acusação foi julgada parcialmente provada¸ e em consequência o arguido foi absolvido da prática de um crime de rapto, na forma tentada, p. e p. nos arts. 23°, n° l e 160°, n° l, alínea b) e n° 2, alínea a), ambos do C.P. e cometido em relação à ofendida D¸ e foi condenado como autor material de um crime de rapto, na forma tentada, p. e p. nos arts. 23°, n° l e 160°, n° l, alínea b) e n° 2, alínea a) e 158º, n.°2, alínea e) do C.P. cometido na pessoa da E, na pena de dois anos de prisão; como autor material de um crime de rapto, p. e. p nos art°s 160º, n° l, alínea b), e n° 2, alínea a), e 158°, n°2, alínea e), todos do CP, cometido na pessoa da F, na pena de 4 anos de prisão; e como autor material da prática de um crime de violação agravado, p. e .p nos arts. 164° e 177°, n° 4, ambos do C.P, na pena de seis anos de prisão: em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 9 anos de prisão.
Foi também condenado no pagamento à menor E de 2500 € a título de indemnização por danos não patrimoniais.

2. Não se conformando com o decidido¸ o arguido recorre para o Supremo Tribunal¸ com os fundamentos constantes da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1) O presente recurso tem por objecto o acórdão que condenou o recorrente na pena única de nove anos de prisão e no pagamento da quantia de € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais;
2) O arguido foi condenado pela prática de um crime de violação agravada na pena de 6 anos de prisão.
3) Tal crime encontra-se previsto e punidos nos artigos 164°, n.° 1 e 177°, n.° 4 ambos do Código Penal (C.P.).
4) A moldura legal varia entre o mínimo de 4 anos e o máximo de 13 anos e 4 meses de prisão;
5) O tribunal deu como provado que o arguido ordenou à F que "lhe chupasse a pila", ameaçando-a que lhe bateria, caso o não fizesse; ao que ela obedeceu, praticando sexo oral com o arguido, o qual lançou esperma na boca da F.
6) A "E" tinha dez anos de idade.
7) A "F" não apresentou o menor vestígio de danos físicos. Para além, é evidente, de um grande constrangimento. Não lhe foram diagnosticadas lesões ou deformações que este tipo legal de crime tantas vezes implica.
8) O crime pelo qual o arguido foi condenado é um crime grave e cuja moldura penal reflecte essa mesma gravidade. Pelo facto de a vítima ser menor de 14 anos a pena é desde logo agravada. O que não resulta lógico é o raciocínio para que ao arguido não tenha sido aplicada a pena de 4 anos, o mínimo legal, mas antes a pena de 6 anos.
9) O tipo de crime de que o arguido vem condenado implica forçosamente o uso da força, ou pelo menos da ameaça e implica necessariamente a prática do acto sexual. Ora os factos apurados obrigavam a que o tribunal tivesse aplicado ao arguido uma pena junto do limite mínimo previsto.
10) E que se considerarmos que a violência se resume à ameaça por parte do arguido que lhe bateria, sendo certo que não se provou que o arguido lhe batesse, e que o acto sexual em causa foi o de coito oral, se acrescentarmos que o único antecedente criminal do arguido tem origem em infracção ao Código da Estrada, não podemos deixar de considerar justo e adequado a condenação do arguido junto ao limite mínimo, que por si só é já muito elevado atento pois a gravidade do crime em questão.
11) Quanto ao crime de rapto consumado foi o arguido condenado na pena de 4 anos de prisão.
12) Ficou provado que o arguido agarrou a F pelo braço e puxou-a com força, obrigando-a a entrar no veículo e a sentar-se no chão, junto do banco da frente, para não ser vista; batendo-lhe com força na zona da nunca, quando ela tentou pedir socorro.
13) Como já se disse e resulta dos factos, a F não apresentou quaisquer sinais de lesões.
14) O crime de rapto implica por si só o uso de violência, pelo que atenta a ausência de lesões na menor, o facto de o arguido a ter libertado a poucos metros do local, não longe da escola e perto de uma zona residencial, deveria ter levado o tribunal a aplicar uma pena junto ao limite mínimo legal - 3 anos de prisão;
15) Quanto ao crime de rapto na forma tentada ocorrido a 18 de Maio de 2004, cerca das 16.00 horas, a matéria de facto apurada não permite retirar a conclusão a que chegou o colectivo que condenou o arguido. Na verdade os factos apurados não permitem apurar, com um grau de certeza suficiente, que o arguido pretendia raptar a menor E.
16) Os factos apurados, e vertidos no texto do acórdão, apenas permitem concluir que com a sua actuação o arguido, não fossem os gritos da menor E, teria privado a menor da sua liberdade;
17) Tais factos consubstanciam não um crime de rapto, antes um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158°, n.° 1 do C.P.;
18) O crime de sequestro é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão, art. 23°, n.° 1 do C.P..
19) Assim sendo não poderia o arguido ser condenado pela prática de qualquer crime no que respeita aos factos datados de dia 18 de Maio de 2004, em que foi interveniente a menor E.
20) Por mera cautela de patrocínio sempre se diz que ainda que fosse de considerar o crime de rapto na forma tentada, e atenta a factualidade apurada, desde logo a violência retratada no puxão violento do cabelo, originando uma pelada, mas não existindo quaisquer outros vestígios de lesões, ou de dias de incapacidade para a menor, a pena aplicada deveria ser fixada junto do limite mínimo legal, em concreto não mais do que 1 ano de prisão.
21) Nestes termos ponderados os factos apurados, a culpa do agente, a gravidade dos factos, a gravidade das suas consequências, as sequelas deixadas nas menores, a ausência de antecedentes criminais do arguido, deveria ao arguido ter sido condenado apenas pelos factos registados no dia 14 de Maio, pelas 17.30 e que teve com interveniente a menor F, nas seguintes penas: crime de violação agravado 4 anos de prisão; crime de rapto 3 anos de prisão. Em cúmulo jurídico deveria o arguido ter sido condenado na pena única de 5 anos de prisão.
22) O douto acórdão violou o disposto nos artigos 23.°, n.° 1 e 160°, n.° 1, alínea b) do C.P. no caso da condenação pelo crime de rapto na forma tentada, bem como o artigo 71° do C.P. ao não ter fixado as restantes penas junto ao limite mínimo legal das mesmas.
23) No que respeita ao pedido de indemnização cível resulta do texto do acórdão recorrido que muitos dos factos dados como provados resulta do depoimento do pai da menor E. O pai da menor por ser o seu representante legal encontra-se impedido de ser testemunha - cfr. art.° 617ª do CPC, pelo que não podem ser considerados tais factos.
24) Temos assim que de relevo para a decisão temos que a menor E sofreu dores e lesões no couro cabelo em virtude do puxão violento que sofreu por parte do arguido, que andou triste e que acordava com pesadelos.
25) A quantia de € 2.500,00 afigura-se assim exagerada atenta a factualidade apurada, as consequências sofridas e a capacidade económica do arguido. Num país onde o salário mínimo é de pouco mais de € 350,00, a figura-se correcta uma indemnização na quantia de € 500,00 (quinhentos euros).
Termina pedindo a absolvição pelo crime de rapto na forma tentada¸ e a redução das penas em que foi condenado para o mínimo legal¸ coma pena do cúmulo fixada em 5 anos de prisão e a redução do montante de indemnização a título de danos não patrimoniais para 500 €.

O magistrado do Ministério Publico junto do tribunal a quo respondeu à motivação¸ entendendo que a decisão deve ser mantida.

3. Neste Supremo Tribunal¸ a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal¸ e considerou que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos¸ teve lugar a audiência¸ com a produção de alegações¸ cumprindo apreciar e decidir.

4. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1) - No dia 14 de Maio de 2004, cerca das 16,00 horas, na localidade de Couto de Baixo. D, de 10 nos de idade, caminhava sozinha em direcção a sua casa;
2) - A determinada altura, um indivíduo, que conduzia o veiculo automóvel de marca BMW, de cor azul escuro, com a matricula OV. parou junto da menor. abriu a porta da frente do lado direito, mostrou-lhe uma folha de papel e perguntou-lhe se sabia onde era aquela Rua, apontando para a folha que exibia;
3) - A "D" respondeu-lhe que não sabia. De imediato, o referido indivíduo agarrou no braço da menor e disse-lhe para entrar no carro: tendo ela dito que não, começando a gritar;
4) - Face aos gritos da D, o indivíduo largou-lhe o braço. A Luísa fugiu em direcção a sua casa e o indivíduo arrancou repentinamente com o veículo, ausentando-se do local;
5) - No dia 14 de Maio de 2004. cerca das 17.30 horas, a F Batista Ferreira , de 10 anos de idade, fazia o trajecto da escola para casa, na localidade de Carriça - Vil de Souto - Viseu;
6 - A certa altura, o arguido, que conduzia o veiculo automóvel de marca BMW de cor azul escura com a matrícula OV, parou ao lado da F, abriu a porta da frente do lado direito do carro e perguntou-lhe se sabia onde era uma oficina;
7) - Simultaneamente, o arguido agarrou a F pelo braço e puxou-a com força, obrigando-a a entrar no veículo e a sentar-se no chão. junto do banco da frente, para não ser vista; batendo-lhe com força na zona da nuca. quando ela tentou pedir socorro:
8) - De seguida, o arguido conduziu o veiculo até junto da ETAR de Torredeita, que dista cerca de 4 Km do local, e que se situa no meio da mata: local onde parou o veículo;
9) - Aí, o arguido obrigou a F a despir as calças de ganga que trazia vestidas, até ao joelho, e começou a mexer-lhe no corpo, meteu as mãos por debaixo das cuecas da F e apalpou-lhe a vagina: tendo-lhe descido também as cuecas;
10) - De seguida, o arguido, que já tinha desapertado e descido as suas calças até aos pés, ordenou à F que "lhe chupasse a pila" ‘ameaçando-a que lhe bateria, caso o não fizesse; ao que ela obedeceu, praticando sexo oral com o arguido, o qual lançou esperma na boca da F:
11) - Posteriormente, e depois de ambos se terem vestido, o arguido largou a F a cerca de 50 metros do local;
12) - No dia 18 de Maio de 2004, cerca das 16,00 horas, a E dos Santos Barquinha, de 11 anos de idade, regressava da escola para casa, caminhando pela estrada na localidade de Figueiró - S. Cipriano - Viseu;
13) - A determinada altura, o arguido, que conduzia o veículo automóvel já identificado e referido em 6), parou ao lado da E abriu a porta da frente do lado direito do carro, e mostrou-lhe uns papeis que tinha na mão:
14) - Simultaneamente, o arguido agarrou a E pelo cabelo e puxou-a violentamente para o interior da viatura, dizendo-lhe "ou entras ou mato-te’’; arrancando-lhe algum cabelo;
15) - A E começou a gritar e o arguido largou-a e disse-lhe para se ir embora : ausentando-se ele imediatamente do local:
16) - Ao actuar como se descreve, o arguido agiu sempre com o propósito de raptar a F e a E, para, dessa forma, praticar crime contra a liberdade e autodeterminação sexual das suas vítimas; logrando seus intentos relativamente à F, e só não o conseguindo com a E por a mesma ter começado a gritar:
17) - O arguido agiu sempre de forma violenta e através de ameaças, puxando as vítimas F e E com força, pelo braço ou pelos cabelos, para o interior do veículo que conduzia:
18 - Ao despir a F, apalpar-lhe o corpo e obrigá-la a "chupar-lhe a pila", o arguido agiu com o propósito de manter coito oral com a F contra a vontade desta, o que conseguiu fazendo uso da sua força física e de ameaças:
19) - À data dos factos, a F e a E, tinham 10 anos de idade, facto que era facilmente constatado por qualquer pessoa normal/média, e também pelo arguido, não só pelo aspecto "infantil’’ mas também pela estatura física das vítimas;
20) - O arguido agiu sempre com o propósito de satisfazer os seus apetites - desejos sexuais , bem sabendo que, dessa forma, prejudicava um livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade das crianças na esfera sexual. e que ofendia a liberdade de autodeterminação sexual da F e da E;
21) - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei;
22) - O arguido na altura dos factos tinha os antecedentes criminais que constam de fls. 290:;
23) - O arguido na altura dos factos trabalhava numa empresa de produtos de limpeza, propriedade da irmã;
24) - O arguido residia sozinho:
25) - Era de condição sócio- económica média.
Do pedido cível provou-se;
26) - Quando estava a ser agarrada pelo arguido a E sentiu dores na cabeça;;
27) - Como consequência directa e necessária da actuação do arguido sofreu lesões ao nível do couro cabeludo ;
28) - A "E" em consequência dos factos ficou triste e desgostosa:
29) - Começou a ter medo de dormir sozinha, dormindo algumas vezes com a mãe;
30) - Acordava de noite com pesadelos;
31) - A "E" antes dos factos era uma menina alegre, bem disposta e brincalhona;
32) - Depois dos factos ficou menos alegre, mais reservada e nervosa;
33) - Tem receio em sair de casa sozinha e só vai para a escola acompanhada;
34) - Não obstante ter passado de ano o seu aproveitamento escolar diminuiu;
35) - Anda a ser acompanhada por uma médica psiquiatra;
36) - Sente medo quando um carro se aproxima dela.
Não se provou:

- Que tenha sido o arguido a praticar os factos referidos nos em 2. 3 e 4:
- Não se provou que os factos referidos em 18 tivessem ocorrido às 14H (provou-se sim que ocorreram por volta as 16h).
Do pedido cível, para além dos factos dados como provados, não se provaram mais quaisquer factos, nomeadamente:
- Que a "E" tenha rejeitado a escola (apenas se provou o que constado facto 33);
- Que durma sempre com a mãe (apenas se provou que dorme algumas vezes);
- Que tenha sofrido lesões nas pernas e braços;
- Que tenha tido 60 dias de doença.

5. As conclusões da motivação delimitam ao objecto do recurso três questões:
i)- A qualificação jurídica dos factos provados relativamente à menor E;
ii)- A medida das penas parcelares e da pena única;
iii)- O montante da indemnização por danos não patrimoniais arbitrada à menor E.

6. O recorrente vem condenado pela prática de um crime de rapto, na forma tentada, na pessoa da menos E, p. e p. nos artigos 160º, nºs 1 e 2, alínea b), e 22º do Código Penal.
O crime de rapto constitui um tipo de crime conta a liberdade pessoal e de intenção específica - a privação da liberdade tem de ser determinada com a finalidade de exercer sobre a vítima alguma das acções que são especificamente referidas na lei, entre as quais uma ofensa contra a autodeterminação sexual da vítima - artigo 160º, nº 2, alínea b) do Código Penal.
Constitui, assim, elemento essencial do crime de rapto, que integra o tipo (elemento subjectivo do tipo - cfr., v. g., Claus Roxin, "Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos de la Estructura de la Teoria del Delito", ed, Civitas, 1997, pág. 311-312), uma específica intenção, que qualifica, rectius, diferencia tipicamente a privação de liberdade em relação à privação de liberdade (fundamentalmente o mesmo bem jurídico) no crime de sequestro - artigo 158º do Código Penal, embora o rapto pareça exigir um plus típico que consiste na transferência da vítima de um lugar para outro (cfr. Taipa de Carvalho, "Comentário Conimbricense ao Código Penal", I, pág. 402-403 e 428).
A tentativa, por seu lado, como está na definição do artigo 22ºdo Código Penal, existe sempre que o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer (n º 1), sendo actos de execução, entre outros (nº2, alíneas b) e c)), «os que forem idóneos a produzir o resultado típico», ou «os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos» que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime ou os que forem idóneos a produzir o resultado típico.
Retenham-se os factos provados quanto à actuação do recorrente relativamente à menor E.
- parou o carro que conduzia ao lado da E e abriu a porta da frente do lado direito - ponto 13 da matéria de facto;
- agarrou a E pelo cabelo e puxou-a violentamente para o interior da viatura, dizendo-lhe «ou entras ou mato-te» - ponto 14;
- a E começou a gritar e o arguido largou-a e disse-lhe para se ir embora - ponto 15;
- o recorrente agiu com o propósito de raptar a E para, desta forma, praticar crime contra a autodeterminação sexual da menor, só não conseguindo por a E ter começado a gritar - ponto 16.
Perante estes factos, estão preenchidos os elementos do crime de rapto na forma tentada: prática de actos que já são idóneos a começar a produzir o resultado típico, e que se seguiriam actos que segundo a normalidade das coisas produziriam o resultado (a privação da liberdade da vítima), com a intenção, especificamente provada, exigida como elemento determinante, só não se desenvolvendo os actos sequentes e susceptíveis de conduzir à consumação (privação da liberdade e transferência de um lugar para outro) por circunstâncias exteriores ao agente - o facto de a vítima ter começado a gritar, que determinou o recorrente a largá-la.
O recorrente, tal como vem decidido, praticou o crime de rapto (e não apenas o de sequestro), na forma tentada, relativamente à menor E.

6. O recorrente questiona a medida das penas parcelares, que entende deverem ser fixadas junta aos limites mínimos das respectivas molduras.
Dispõe o artigo 40° do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - n° 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - n° 2.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabe ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz (cfr., Anabela Miranda Rodrigues, "O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade", in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Colóquio Internacional de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, págs. 179 e segs.).
A norma do artigo 40° condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo (cfr. idem, ibidem).
O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40° determina, por isso, que os critérios do artigo 71° e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.
O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 227 e segs.).
A medida da prevenção, que não podem em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71° do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade.
A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade.
Os crimes sexuais, sobretudo os abusos sexuais sobre crianças, contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir (cfr. DENIS SALAS, Le délinquant sexuel, in "La Justice et le mal", ed. Odile Jacob, 1997, p. 53 e segs.).
O abuso sexual sobre crianças significa, nas representações sociais, "o mal absoluto", com o sentimento de presença do in humano no humano pelo uso patológico da liberdade de acção.
A intervenção do legislador acompanhou as reacções sociais dos tempos mais recentes, integrando no sistema as respostas às exigências de reafirmação valorativa das expectativas comunitárias e à recomposição da ofensa ao mais profundo da sociedade.
Por isso, algumas reformulações na tipicidade nas alterações de 2001 (Lei nº 99/2002, de 25 de Agosto).
Nos crimes de abuso sexual de crianças as exigências de prevenção geral têm, por isso, uma finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 8/5/03, proc. 1090/03; de 5/6/03, proc. 1656/03; de 8/7/03, proc. 2155/03; de 9/7/03, proc. 2147/03; de 29/11/03, proc. 2729/03 e de 5/11/03, proc. 201/03).
Na determinação da medida das penas, dentro da moldura que as finalidades de prevenção geral impõem, como factor essencial de manutenção da confiança na protecção dos valores comunitários afectados, relevam o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução e a gravidade das consequências, a intensidade do dolo e os sentimentos manifestados no cometimento do crime - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.
No caso, a ilicitude dos factos revela-se em elevado grau de intensidade, sendo o modo de execução particularmente desvalioso: o recorrente não apenas afectou de forma intensa um valor essencial relativamente a uma menor de dez anos de idade, com consequências necessárias no equilíbrio e desenvolvimento da personalidade em sector delicado e por vezes critico na formação e amadurecimento de valores essenciais, como usou, previamente, de um meio violento na privação da liberdade da vítima, como meio-fim para a realização da sua intenção.
A gravidade dos factos revela, também neles, um sentimento de acentuada desconformidade do recorrente com valores essenciais, e uma personalidade critica a impor acrescidas exigências de reinserção e recomposição valorativa.
Por outro lado, o dolo é directo e intenso, revelado na escolha deliberada e pensada dos meios e na realização plúrima de actos típicos como instrumento e como fim.
Não estão provadas, de outra parte, circunstâncias pessoais que possam beneficiar o recorrente.
O crime de rapto p. e p. no artigo 160º, nº 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal é punido com uma pena de 3 a 15 anos de prisão.
Tendo presentes os factores de determinação da medida da pena, a relevância instrumental do facto e a intensidade e duração da privação da liberdade da menor F, tudo factores devidamente considerados na decisão recorrida, está inteiramente ajustada a pena fixada.
No que respeita ao crime p. e p. no artigo 172º, nº 2 do Código Penal, punido com a pena de 3 a 10 anos de prisão, a idade da vítima, a natureza do acto que o recorrente levou a menor F a praticar, considerado segundo o sentido das projecções valorativas das diversas hipóteses que integram o tipo e na comparação relativa das diversas formas típicas, apontam para a fixação de uma pena que, satisfazendo ainda a prevenção, deve ser conformada ainda no terço inferior da respectiva moldura. Fixa-se, por isso, a pena de quatro anos de prisão.
Relativamente ao crime de rapto, na forma tentada, na pessoa da menor E, a moldura da pena (artigos 23º, nº 2 e 73º, nº 1,alíneas a) e b) do Código Penal) é de 7 meses e seis dias a 10 anos de prisão.
Considerado o estádio inicial da execução na tentativa, e as menores consequências determinadas, a pena fixada na decisão recorrida afigura-se moldada segundo o rigor de compreensão dos factores de ponderação, sendo, por isso, de manter.

7. O recorrente discute e discorda também da medida da pena única.
Nos termos do artigo 77°, n° l, do Código Penal, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
A pena única do concurso, formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.
Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente.
No caso sub specie, os factos revelam proximidade temporal e manifesta identidade na intenção que exteriorizam, e dificuldades de conformação da personalidade do recorrente com valores essenciais e comunitariamente sentidos com forte intensidade de rejeição de condutas que afectem tais valores.
O conjunto dos factos e a personalidade que neles se manifesta constituem, assim, factores determinantes na fixação da medida da pena do concurso. não é caso de pluriocasionalidade sem tendência, mas, diversamente, de reiteração intensa na desconsideração dos valores afectados.
Nestes termos, considerando em conjunto os factos e a personalidade, considera-se adequada a pena única de sete anos de prisão.

8. O recorrente, sem contudo fundamentar substancialmente os termos da discordância, entende que a indemnização atribuída por danos não patrimoniais á menor E está fixada em montante exagerado.
A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil - artigo 129º do Código Penal.
Nos termos do artigo 493º, nº 1, do Código Civil, que estabelece o princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos, «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
E o artigo 496º do mesmo diploma, que é a disposição referida nas conclusões da motivação de recurso, dispõe no nº 1 que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito». Como determina o nº 2, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, «o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso».
Pela indicação da disposição legal que considera violada, o recorrente limita, pois, a discordância ao montante fixado a título de danos não patrimoniais.
Na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais, a lei manda proceder «equitativamente».
A equidade é, hoje, objecto de várias referências dispersas nos textos legais, com significados que, não sendo em todos necessariamente de idêntica dimensão, partilham, todavia, de um critério de valor nuclear que lhes tem de ser comum.
Perante as múltiplas menções dos textos, a doutrina tem procurado agrupar a noção de equidade a duas «acepções fundamentais»: uma noção «fraca», que, partindo da lei, permitiria corrigir injustiças ocasionadas pela natureza rígida das normas abstractas quando da aplicação concreta; e uma noção «forte», que prescinde do direito estrito, procurando para cada problema soluções baseadas na justiça do caso concreto (vfr., v. g., António Menezes Cordeiro, "A Decisão Segundo a Equidade", in, O Direito, Ano 122º, 1990, II (Abril-Junho), pág. 261 segs.).
As várias referências na lei, quando manda proceder a julgamento segundo a equidade, acolhem aquele primeiro sentido da noção.
A noção de equidade tem, pois, essencialmente que ver com a «vertente individualizadora da justiça» (cfr., idem); a equidade traduz um juízo de valor que significa um justo equilíbrio nas relações, por exemplo, entre o lesante e o lesado [cfr. Karl Larenz, "Metodologia da Ciência do Direito", (trad. port., 2ª edição), pág. 350]. O juiz, na decisão segundo a equidade, terá de considerar essencialmente as particularidades que o caso concreto lhe apresenta, configurando-se a consideração dos elementos e realidades a ter em conta sobretudo como questão metodológica.
As referências dispersas na lei à equidade como critério ou elemento de decisão de questões específicas, apresenta uma matriz que tende para a definição de direitos e obrigações que supõem a consideração de pressupostos individualizadores, com algumas dificuldades na definição de critérios para quantificações abstractas, especialmente em matéria de determinação de indemnização; em tais casos, a superação apenas pode ocorrer in concreto, perante as circunstâncias particulares de cada situação, sem a preexistência de pautas, parâmetros ou modelos materiais de determinação.

A decisão segundo a equidade significa, pois, intervenção do justo critério do juiz na ponderação ex aequo et bono das circunstâncias particulares do caso, partindo das conjunções referenciais da ordem jurídica, e da função do critério e das finalidades a realizar; o julgamento de equidade não depende, por isso, da simples vontade, de inteira subjectividade ou de um simples modelo de discricionariedade.
O artigo 496º, nº 3, do Código Civil constitui uma das várias disposições da lei civil que remete o juiz para uma decisão equitativa, apontando-lhe, no entanto, os parâmetros de circunstâncias que deve ter em conta para decidir «equitativamente» sobre a fixação da indemnização por danos não patrimoniais: na quantificação devem ser consideradas todas as circunstâncias do caso, nomeadamente a culpabilidade do responsável, e a situação económica deste e do lesado (cfr., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 5/6/96, proc. 35/96; de 4/7/96, proc. 88200; e de 10/12/96, Proc. 385/96; proc. 3284/03, de 3/12/03).
Os critérios de equidade remetem, assim, para uma operação complexa, que se não atem inteiramente a considerações de direito estrito, mas a referenciais que se acolhem a uma concreta ponderação de razoabilidade, ao prudente arbítrio, ao senso comum dos homens e à justa medida das coisas (cfr. acórdão deste Supremo, de 1/10/96, proc. 90/96).
Porém, na determinação «equitativamente» quantificada, os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado (cfr. acórdão deste Supremo de 29/4/98, proc. 55/98).
De todo o modo, sendo a fixação equitativa o resultado de uma mediação inescapável do prudente critério do juiz entre a objectividade dos fins e o sentido da justa medida, o resultado do julgamento não deverá ser censurado quando não for clara e manifestamente inaceitável (cfr. acórdão deste Supremo de 5/3/02, proc. 73/02).
É o que sucede no caso.
A decisão recorrida ponderou devidamente todos os factores relevantes, e o recorrente não invocou motivos, factores ou argumentos que abalem o sentido prudencial da decisão recorrida.

9. Nestes termos, no provimento parcial do recurso, condena-se o recorrente pelo crime p. e p. no artigo 172º, nº 2 do Código Penal, na pessoa da menor F, na pena de quatro anos de prisão, mantendo-se, a decisão recorrida nas restantes penas parcelares e na indemnização arbitrada.
Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, fixa-se a pena única de sete anos de prisão.

Lisboa, de 13 de Julho de 2005
Henriques Gaspar,
Políbio Flor,
Soreto de Barros,
Armindo Monteiro.