ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Sumário

1. Deve ser descaracterizado o acidente que se traduziu no despiste e capotamento de um veículo pesado de mercadorias, com semi-reboque, ocorridos pelo facto do condutor não ter conseguido descrever a curva para a sua direita, por circular a cerca de 80 Km/h, quando no local existia sinalização que proibia circular a mais de 60 Km/h.
2. Aquele excesso de velocidade constitui uma contra-ordenação grave, nos termos da al. d) do art. 146 do Código da Estrada.
3. Atendendo ao tipo de veículo, às condições da estrada (curva) e levando em conta os 28 metros de rastros de derrapagem deixados no local, a destruição das barreiras metálicas da berma e o facto do veículo só se ter imobilizado dois metros depois daquelas, tem de concluir-se que a condução praticada pelo sinistrado era manifestamente temerária e reprovável, por atentar contra as mais elementares regras de prudência e cuidado.

Texto Integral

Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Na presente acção emergente de acidente de trabalho, a ré A, L.da foi condenada, na 1.ª instância, a pagar ao autor B, 2.822,94 euros a título de indemnização por ITA, 268,85 euros a título de pensão anual e vitalícia, com início em 1 de Junho de 2002 e juros de mora.

A ré recorreu com sucesso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, revogando a sentença, absolveu a ré do pedido, com o fundamento de que o acidente tinha ocorrido exclusivamente por negligência grosseira do sinistrado/autor.

Inconformado com a decisão, o autor, patrocinado pelo M.º P.º, interpôs o presente recurso de revista, resumindo a sua alegação às seguintes conclusões:

«1. O acidente dos autos ocorreu no tempo e local da prestação do trabalho, estando o A. ao serviço da Ré, na subordinação jurídica desta.
2. Embora admitido ao serviço da Ré, sem contrato de trabalho escrito e sem seguro de acidentes de trabalho, o A. exercia, aquando da ocorrência, as funções de motorista de pesados para as quais tem habilitações.
3. As lesões sofridas pelo A., sinistrado, e a incapacidade apurada nos autos foram causalmente originadas pelo acidente.
4. O A. conduzia sóbrio, sem indícios de qualquer taxa de álcool no sangue, como ficou apurado aquando do levantamento do auto de notícia.
5. A douta sentença da 1.ª instância qualificou o acidente como acidente de trabalho, considerando, na óptica integrada do sistema jurídico, a contra-ordenação causal cometida pelo A. como "leve", atenta a diferença de 20 Km/h entre as velocidades máximas (quer da condução da viatura pelo A., estimada em cerca de 80 Km/h e a máxima da prescrição absoluta de proibição para além de 60 Km/h, fixada no sinal colocado à berma da via no início da curva da ocorrência.
6. O douto Acórdão desta Relação, com os mesmos dados, porém, desvalorizou a determinação daquele sinal de proibição no início da curva, considerou que o A. deveria ter moderado especialmente a velocidade, atentas as características da viatura e da via, qualificando de "grave" a conduta do A., susceptível de descaracterizar o acidente como acidente de trabalho, como veio a decidir.
7. O douto Acórdão recorrido, porém, omitiu, não referindo, em concreto, para aquele local da ocorrência e características do veículo conduzido pelo A., qual o entendimento, afinal, do valor máximo da velocidade considerada especialmente moderada a respeitar.
8. O critério seguido pela douta sentença da 1.ª deve prevalecer por mais duas ordens de razões:
9. Primeira: sem pôr em causa a validade do princípio genérico, invocado no douto Acórdão desta Relação, aplicável para a condução em qualquer curva, quando existe um sinal na berma da via, expressamente indicando, para aquele local, a velocidade máxima consentida, tem de reconhecer-se que foi estudado, tecnicamente, para as viaturas, ligeiras e pesadas, que por ali podem circular e deve prevalecer, na ausência de outra especificação diferenciada a veículos, como determinação especial a ser respeitada.
10. Segunda razão: a velocidade atribuída ao condutor, na matéria de facto apurada, foi referenciada entre um valor mínimo e um valor máximo, superior a 60 Km/h e a cerca de 80 Km/h.
11. Ora, tanto a douta sentença da 1.ª instância, como o douto Acórdão recorrido, apenas atenderam ao valor máximo, como se tratasse de uma velocidade instantânea apurada.
12. Pugnamos, na subsunção dos factos ao direito, dada a indeterminação da velocidade de condução do A., entre um valor mínimo e máximo, que se atenda ao valor mais favorável ao trabalhador.
13. E aqui chegados, pugnamos pela aplicação do critério seguido pela douta sentença da 1.ª instância, do diferencial de 20 Km/h, na qualificação da contravenção "leve", mas aplicado ao patamar mínimo da velocidade provada na condução do A..
14. O que aponta para uma velocidade a respeitar na ordem dos cerca de 40 Km/h, velocidade essa a considerar especialmente moderada, abaixo do limite máximo da velocidade máxima indicada no sinal de proibição existente no local.
15. Nesta perspectiva de análise, atenta a unidade do sistema jurídico, considerando o diferencial de 20 Km/h contido na previsão da alínea b) do artigo 146.º do C.E., aplicado ao patamar mínimo da velocidade apurada na condução do A., sempre seria de qualificar de infracção "leve," a moderação da velocidade obtida na subsunção ao princípio invocado por esta Relação, para descaracterizar o acidente como acidente de trabalho.
16. Mas há mais a atender, pois, na apreciação dinâmica e de conjunto dos vestígios factuais apurados, constata-se que o A., à passagem do sinal referido, deu início a uma redução efectiva, brusca e prolongada, da velocidade inicial, como revelam os rastos marcados na via, numa extensão de 28 metros, como vem ilustrado no croquis da GNR.
17. Desconhece-se qual foi a causa que obrigou o A. a accionar os travões, de modo brusco e prolongado, em derrapagem, com despiste e capotamento lateral, ocorrido à berma da via, a cerca de 2 metros desta.
18. Não houve testemunhas presenciais do acidente como dá conta o auto de notícia e resulta da prova produzida nos autos.
19. O que se sabe é, apenas, deduzido dos concretos vestígios apurados, e apenas desses vestígios, que se hipotetiza como terá ocorrido o acidente.
20. O certo é, como é notório e do domínio geral de quem conduz, que para obter uma redução de velocidade da ordem dos 20 Km/h bastaria optar por um de dois procedimentos: ou travar com o motor, por redução das mudanças de velocidade, ou accionando os travões.
21. Diferente nos efeitos é a manobra de recurso que utiliza o accionar dos travões de forma brusca e prolongada, com mudança de direcção.
22. A força da inércia desencadeada pela travagem impele o veículo no sentido de marcha anterior, que, ao curvar, provoca despiste e capotamento.
23. O facto da viatura ter capotado, tombando lateralmente e ficado junto à berma da via, a cerca de 2 metros desta, indicia que a viatura não era impelida por uma velocidade excessiva, de que resultaria rotação do veículo sobre ele próprio e uma projecção e imobilização a uma muito maior distância da berma.
24. Desconhece-se, pois, a causa ou o motivo porque o A. optou por accionar os travões deixando marcas contínuas e prolongadas por 28 metros, em vez de optar pela redução da velocidade pela travagem pelo motor, a fim de obter uma redução de velocidade da ordem dos 20 Km/h, com normalidade e facilidade.
25. Nas vias de acesso às portagens, como no caso dos autos, há condutores que inesperadamente, diminuem a velocidade para um nível de velocidade exageradamente lento, à procura do dinheiro para pagamento, a grande distância da portagem, daí originando manobras de recurso, urgentes, nas viaturas que os precedem em tais vias de acesso.
26. Dada a ausência de vestígios de tais ocorrências e a improbabilidade de existirem, quando tais situações ocorrem, apenas se alude a tal circunstancialismo possível por se desconhecer a plenitude do concreto circunstancialismo da ocorrência do acidente, face ao desconhecimento da causa da manobra.
27. Temos de admitir, à cautela, na ausência de mais dados, que o A. cometeu um erro técnico de condução, ao não travar com o motor.
28. Erro técnico esse que de forma alguma pode ser configurado, apesar do aparatoso do capotamemto lateral do veículo, e na ausência do conhecimento de todo o circunstancialismo concreto ocorrido, como erro grosseiro, ou negligência grosseira, susceptível de descaracterizar o acidente como acidente de trabalho.
29. Verifica-se, pois, dados os factos apurados, que a conta-ordenação causal do acidente é qualificável de "leve", prevista na alínea b) do artigo 146.º do C.E..
30. E não de contra-ordenação qualificável de "grave", prevista na alínea d) do artigo 146.º do C.E..
31. Pelo que não deve ser descaracterizado o acidente dos autos como acidente de trabalho, por não se verificar demonstrado o estatuído na alínea b) do n.° 1 do artigo 7.º da Lei n.° 100/97, de 13 de Setembro.»

A ré não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos dados como provados na 1.ª instância e que a Relação não alterou são os seguintes:
1. No dia 23 de Novembro de 2001, cerca das 11h20, o autor, B, conduzia o pesado de mercadorias RC, no acesso à portagem de Castro Verde da AE 2.
2. No exercício das suas funções de motorista, sob a direcção, autoridade e fiscalização da ré, A, Lda.
3. Quando, ao descrever uma curva à direita, perdeu o controlo da viatura, despistou-se e capotou.
4. Em consequência do acidente, o Autor sofreu diversas lesões, que lhe determinaram uma ITA desde a data do acidente (23.11.2001) até 31.05.2002.
5. O autor auferia o salário mensal de 110.000$00 (€ 548,68)xl4M).
6. A ré não tinha a responsabilidade infortunística laboral, relativamente ao autor, transferida para seguradora.
7. A ré não pagou ao Autor qualquer quantia a título indemnizatório.
8. Na tentativa de conciliação, a Ré aceitou que o acidente ocorreu no tempo de trabalho, o nexo de causalidade entre aquele e as lesões, a retribuição aludida, mas discordou do resultado do exame médico e declinou qualquer responsabilidade, por entender que o acidente foi provocado, exclusivamente, por culpa grave do autor.
9. No acidente não houve qualquer outro interveniente.
10. A G.N.R. levantou ao Autor o auto cuja cópia consta do doc. n.° 8 junto com a contestação, pela coima de 60 €, nos termos que constam desse documento.
11. No momento do acidente o Autor conduzia o veículo pesado de mercadorias RC a uma velocidade superior a 60 Km/Hora e a cerca de 80 Km/Hora.
12. Tal veículo era constituído pelo tractor de matrícula RC e semi-reboque de matrícula L.
13. No local do acidente existe sinalização de prescrição absoluta de proibição de condução para além dos 60 Km/hora
14. O Autor não conseguiu descrever a curva conforme referido em 3) em virtude da velocidade a que circulava.
15. Tal curva tinha uma faixa de rodagem com uma largura de 4 metros e 20 centímetros.
16. Aquando do acidente o tempo estava bom.
17. O RC, ao longo do ano de 2001, foi assistido periodicamente em oficina da especialidade, tendo a Ré suportado com a sua manutenção encargos no montante global de 2.600.675$00, contravalor de EUR 12. 972,02.
18.º O sistema de travões do RC tinha sido afinado e calçado em 08.10.2001.
19.º O veículo havia sido inspeccionado, sendo que a inspecção foi efectuada em 29.06.01.
20.º No local ficaram registos de derrapagem do veículo num percurso de 28 metros.
21. Depois do despiste e capotamento, o veículo destruiu as guardas metálicas existentes na berma, imobilizando-se dois metros para além destas.
22. O A. tinha entrado ao serviço da Ré no dia 12 de Novembro de 2001, conduzindo aquele veículo há pouco tempo.
23. No processo em apenso foi proferida decisão nos termos da qual se determinou que em consequência do acidente o Autor ficou afectado de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 5%, a partir de 31 de Maio de 2002, sendo esta a data da cura clínica.

A factualidade referida não foi objecto de impugnação e não há razões para alterar ou mandar ampliar, pois não ocorre nenhuma das situações referidas no n.º 2 do art. 722 e no n.º 3 do art. 729 do CPC.

3. O direito
Como resulta das conclusões formuladas pelo recorrente, o objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o acidente ocorreu por negligência grosseira do sinistrado, ora recorrente. Não se discute se o acidente ocorreu por culpa dele nem se discute se ocorreu apenas por culpa dele. Essas questões foram definitivamente decididas na 1.ª instância, em sentido afirmativo. Discute-se, apenas, se a sua culpa foi grosseira.

Na 1.ª instância decidiu-se que não, mas a Relação decidiu que sim. Vejamos de que lado está a razão.

Nos termos do art. 7.º , n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97, de 13/9, que aprovou o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, não dá direito a reparação o acidente "[que] provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado."
Por sua vez, nos termos do n.º 2 do art. 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4, que veio regulamentar aquela Lei, "[entende-se] por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão."

Como é sabido, a negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado ou, por outras palavras, na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível. Todavia, como resulta do disposto nos normativos legais parcialmente transcritos, para que o acidente seja descaracterizado não basta uma qualquer omissão do dever geral de cuidado. Utilizando uma terminologia clássica, não basta que o trabalhador/sinistrado tenha actuado com culpa levíssima ou com culpa leve, isto é, não basta que tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado (culpa levíssima) e também não é suficiente que tenha desrespeitado os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria cumprido (culpa leve).

É preciso que tenha agido com culpa grave, ou seja, é preciso que tenha deixado de observar os deveres de cuidado que só uma pessoa particularmente negligente deixaria de respeitar; é indispensável, como se diz no art. 7.º, n.º 1, al. b), da LAT, que a falta de cuidado revista a forma de negligência grosseira (grave ou lata) que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que, segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt2 (1) .

Deste modo, para que o acidente possa ser descaracterizado com base na culpa do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta (por acção ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência e que a sua falta de cuidado não resultou da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão. É preciso, em suma, que o comportamento do sinistrado se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificado.

Aliás, este era o entendimento perfilhado na doutrina e na jurisprudência acerca do conceito de falta grave e indesculpável da vítima contido na Base VI, n.º 1, al. b), da anterior lei dos acidentes de trabalho, a Lei n.º 2127, de 3/8/65 (2) e que a Lei n.º 100/97 se limitou a adoptar.

Revertendo, agora, ao caso em apreço, vejamos se o acidente ficou a dever-se, ou não, a negligência grosseira do recorrente e, para isso, comecemos por recordar o circunstancialismo em que o mesmo ocorreu.

A tal respeito, está provado que o acidente ocorreu pelo facto do sinistrado não ter conseguido descrever uma curva para a direita, devido à velocidade a que circulava, que era de cerca de 80 Km/hora, quando no local existia sinalização proibindo circular a mais de 60 Km/hora. Por via disso, o sinistrado perdeu o controlo do veículo que se despistou e capotou, indo imobilizar-se dois metros depois das guardas metálicas que destruiu.

Com interesse para a avaliar o grau de negligência do sinistrado, também está provado que o tempo estava bom; que a faixa de rodagem tinha 4,20m de largura; que no local ficaram registos de derrapagem do veículo numa extensão de 28 metros; que a viatura em questão era um veículo pesado de mercadorias, constituído pelo tractor e por semi-reboque; que o mesmo tinha sido objecto de manutenção ao longo do ano de 2001; que tinha sido inspeccionado em 29.6.2001 e que o sistema de travões tinha sido afinado em 8.10.2001.

Com base na referida factualidade, na 1.ª instância entendeu-se que o acidente tinha resultado exclusivamente do excesso de velocidade a que o sinistrado circulava e reconheceu--se que ele devia ter agido de outra forma, face às condições da via (uma curva) e ao tipo de veículo, mas acabou por decidir-se que a sua conduta não era negligentemente grosseira, com o fundamento de que o excesso de velocidade em causa era considerado pelo Código da Estrada como contra-ordenação leve.

Na Relação entendeu-se que a infracção cometida pelo sinistrado era uma contra--ordenação grave e entendeu-se que a sua conduta configura negligência grosseira, com a seguinte fundamentação:

«Desta factualidade parece ressaltar que a contra-ordenação imputável ao apelado, porque conduzia sem ultrapassar 20km/h sobre o limite de velocidade estabelecido, não é classificável como "grave", ao abrigo do disposto na parte final da al. b) do art. 146.° do Código da Estrada.
Na verdade, o Autor ao conduzir o veículo pesado de mercadorias, a uma velocidade que não se provou ser superior a 80Km/h, entre sinais de prescrição de proibição de condução para além dos 60Km/h, em violação do disposto na al. b), 1.º do n.º 1 do art.º 27.º do Código da Estrada, teria cometido, em princípio, apenas uma infracção que, segundo o mesmo Código se teria de classificar de "leve", tendo em atenção as disposições conjugadas do disposto na al. b) do art.º 146.º e n.º 1 do art.º 137.º, ambos do mesmo diploma legal.
Mas daí não se segue, sem mais, que, por outros motivos, não possamos concluir que o Autor tenha praticado uma infracção grave e tenha agido com "negligência grosseira", aquando da produção do acidente.
Desde logo, não podemos esquecer as características do veículo em causa - pesado de mercadorias (tractor com semi-reboque) - como vem provado da conjugação dos n.ºs 1 e 12 da matéria de facto assente. É o tipo de veículo que em linguagem vulgar se designa de "veículo TIR" ou "veículo articulado", com características de veículo longo e, por isso, de grandes dimensões.
E tratando-se de um veículo deste tipo, impunha-se ao Autor um especial dever de cuidado, na sua condução, atenta a sua perigosidade, muito especialmente no que toca à velocidade a imprimir, nomeadamente por se tratar de um veículo longo e de grandes dimensões.
É do conhecimento da generalidade das pessoas o especial cuidado exigido na condução deste tipo de veículos, dado que a perigosidade da sua condução é muito superior aos normais "automóveis pesados de mercadorias".
E tendo em consideração que o veículo conduzido pelo Autor era um "automóvel pesado de mercadorias", com semi-reboque, o limite máximo de velocidade instantânea permitido para este tipo de veículos é dentro das localidades de 50Km/hora e nas restantes vias públicas de 80/Km/hora.
Tal significa que o Autor, aquando da ocorrência do acidente, quando descrevia uma curva para a direita, no acesso à portagem de Castro Verde da AE2, a uma velocidade de cerca de 80 Km/hora (n.ºs 1, 3, 11 e 12, da matéria de facto provada), conduzia a uma velocidade muito próxima do máximo que lhe era permitido, sendo certo que existia no local sinalização de prescrição absoluta de proibição de condução para além dos 60 Km/hora (n.º 13 da matéria de facto assente) e sem atender às características do veículo de especial perigosidade (tractor com semi reboque, longo e de grandes dimensões) e às características da via (descrevia uma curva para a direita, no acesso a uma portagem).
Circulava, assim, o sinistrado a uma velocidade que terá de considerar-se "excessiva", por, no local, lhe ser exigível uma velocidade especialmente moderada e em infracção ao disposto no art.º 24.º, n.º 1 (depois do despiste e capotamento, o veículo destruiu as guardas metálicas existentes na berma, imobilizando-se dois metros para além destas - n.º 21 da matéria de facto assente), 25.º, n.º 1, al. f) (descrevia uma curva para a direita), ambos do Código da Estrada e, assim, à prática de uma infracção que teremos de considerar de "grave" (e não de "leve", como se considerou na sentença recorrida), atento o disposto na al. d) do art.º 146.º do mesmo Código.
O A., ao conduzir o veículo pesado de mercadorias, a uma velocidade de cerca de 80Km/h, numa curva, entre sinais de prescrição de proibição de condução para além dos 60Km/h, violou o disposto nos art.ºs 24.°/1, 25.°/1 al. f) e 146.° als. b) e d) do Código da Estrada.
Como bem refere a recorrente nas suas conclusões do recurso "tal conduta nos termos do disposto nos art.ºs 137.° e 146.° do C. da Estrada é considerada contra--ordenação grave, punida nos termos do art.º 139.°, n.º 1, do mesmo diploma, com coima e sanção acessória de inibição de conduzir."
Em consequência do que se deixou exposto não podemos deixar de considerar a actuação do Autor, na produção do acidente, como um comportamento temerário em alto grau e absolutamente indesculpável, de modo a concluirmos que teria agido com "negligência grosseira", nos termos que atrás deixámos doutrinalmente definidos e a que aludem a al. b) do n.º 1 do art.º 7.º da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro e art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril.
Por outro lado, vindo provado que o Autor não conseguiu descrever a curva à direita, perdeu o controle da viatura, se despistou e capotou em virtude da velocidade a que circulava (cfr. resposta ao quesito 3.º em conjugação com a al. C) dos factos assentes), teremos também de concluir que o acidente proveio exclusivamente da culpa do sinistrado e, consequentemente, considerar-se o mesmo como descaracterizado por força do disposto no art.º 7.º da Lei n.º 100/97, com referência ao art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, não dando, consequentemente, direito a reparação.» (fim da transcrição)

O recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido, com o fundamento de que o excesso de velocidade com que circulava constitui apenas uma contra-ordenação leve.

Será que tem razão? Entendemos que não. Vejamos porquê.

Como se diz no douto acórdão recorrido, à primeira vista, o excesso de velocidade a que o recorrente circulava parece configurar apenas uma contra-ordenação leve, uma vez que nos termos da al. b) do art. 146.º do C. E. o excesso de velocidade praticado por condutor de veículos pesados só constitui contra-ordenação grave quando for superior a 20 Km/h sobre os limites legalmente impostos, o que no caso não acontecia, dado que o recorrente circulava a cerca de 80 Km/h e o limite fixado no local era de 60 Km/h.

Todavia, o excesso de velocidade não existe apenas quando são ultrapassados os limites legais impostos, sejam os limites gerais fixados no art. 27.º, sejam os limites estabelecidos pela sinalização estradal.

Com efeito, importa recordar que a regra número um do Código da Estrada, no que diz respeito à velocidade, é a que consta do n.º 1 do art. 24.º, nos termos do qual "[o] condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente."

Deste modo, pode haver excesso de velocidade, mesmo quando o condutor imprima ao veículo uma velocidade que fique aquém dos limites máximos fixados, pois, como é bom de ver, os limites máximos são apenas isso: limites máximos. Não podem naturalmente ser ultrapassados, mas isso não significa que o condutor possa circular a qualquer velocidade desde que os mesmos sejam respeitados. Segundo a referida regra geral, o condutor terá de regular a sua marcha segundo as características e estado da via e do veículo e as demais circunstâncias e condicionalismos referidos no n.º 1 do art. 24.º, de forma a garantir cabalmente, a cada momento, a segurança rodoviária.

E sendo assim, dá para compreender que o excesso de velocidade do recorrente, não sendo embora subsumível na al. b) do art. 146.º (por não exceder em mais de 20 Km/h o limite máximo estabelecido no local - 60 Km/h -), possa sê-lo na al. d) do mesmo artigo, pois cada uma delas tem um âmbito de aplicação diferente. A alínea b) aplica-se aos casos em que sejam excedidos os limites máximos de velocidade genericamente estabelecidos na lei (nomeadamente as fixadas no art. 27.º do C.E.) ou na sinalização estradal). Por sua vez, a alínea d) aplica-se aos casos em que o excesso de velocidade resulta da violação das regras de prudência prescritas no Código da Estrada (nomeadamente a contida no n.º 1 do art.º 24.º) (3).

Ora, no caso em apreço é por demais evidente que o recorrente não cumpriu minimamente o disposto no n.º 1 do art. 24.º e que a velocidade a que circulava era manifestamente excessiva, atento o tipo do veículo e as características da via por onde circulava. Os 28 metros de derrapagem deixados no local, a destruição das barreiras metálicas e a imobilização do veículo só dois metros depois das mesmas atestam bem quão excessiva era a velocidade imprimida ao veículo, fazendo cair, por isso, a conduta do sinistrado na alínea d) do art. 146.º (contra-ordenação grave), como muito bem se decidiu no acórdão recorrido.

Acresce que tal conduta, sendo uma contra-ordenação grave em sede do direito estradal, também se apresenta em sede do direito infortunístico laboral como uma conduta altamente temerária e, consequentemente, grosseiramente negligente.

Com efeito, circular numa curva, praticamente no limite máximo da velocidade a que o veículo podia circular nas rectas (que era de 80 Km/h nas vias reservadas a automóveis e motociclos (as chamadas vias rápidas) e nas restantes vias públicas e de 90 Km/hora nas auto-estradas - art. 27.º, n.º 1, do C. E. - ), quando o limite estabelecido no local para a generalidade dos veículos era de 60 Km/hora constitui uma verdadeira temeridade altamente reprovável, por atentar contra as mais elementares regras de prudência estradal. A violência do embate atesta, de forma eloquente, isso mesmo.

Por outro lado, tal temeridade nada tem a ver com a habitualidade ao perigo do trabalho executado, com a confiança na experiência profissional nem com os usos e costumes da profissão, pois, como é sabido, na condução automóvel, a habituação ao perigo melhora as competências, reforça as capacidades e a concentração, facilita a previsão do risco e torna os condutores naturalmente mais prudentes.

Bem andou, pois, o Tribunal da Relação de Lisboa ao descaracterizar o acidente em apreço com fundamento na negligência grosseira do sinistrado.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.

Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Sousa Peixoto,
Sousa Grandão,
Pinto Hespanhol.
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(1) - Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2.ª edição, pag. 304.
(2) - Vide, Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho, Notas e Comentários à Lei n.º 2127, Almedina, pag. 51 e 52; Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 1980, Petrony, pag. 42; Melo Franco, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, BMJ (Suplemento - ano 1979), pag. 72 e Ac. do STJ de 7.10.98, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, tomo III, 1998, pag. 256.

(3) - As alíneas b) e d) do art. 146.º têm o seguinte teor:
São graves as seguintes contra-ordenações:
(...)
b) O excesso de velocidade superior a 30 km/h sobre os limites legalmente impostos, quando praticado pelo condutor de motociclo ou de automóvel ligeiro, ou superior a 20 km/h, quando praticado por condutor de outro veículo a motor.
(...)
d) O trânsito com velocidade excessiva para as características do veículo ou da via, para as condições atmosféricas ou de circulação, ou nos casos em que a velocidade deva ser especialmente moderada."