Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
EXPROPRIAÇÃO PARCIAL
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Sumário
1. É servidão de aqueduto a que se consubstancia na condução de água para um prédio dominante, onde é utilizada, através do subsolo de um prédio serviente, por meio de cano, rego ou mina. 2. A servidão por destinação do pai de família, a que se reporta o artigo 1549º do Código Civil, é constituída a título originário por via da transformação de uma situação de facto revelada por sinais visíveis e permanentes numa situação jurídica, decorrente da separação de domínios. 3. A expropriação extingue o direito de propriedade e outros direitos reais que incidam sobre o prédio expropriado, mas esse efeito é insusceptível de significar a declaração de exclusão da constituição do direito de servidão a que se reporta a parte final do artigo 1549º do Código Civil. 4. O artigo 1549º do Código Civil estabelece quanto a conflitos relativos a direitos privados e não quanto a constituição de servidões sobre prédios ou suas parcelas integrados no domínio público. 5. A expropriação por utilidade pública para construção de via rodoviária e a separação por via dela de uma parcela do prédio com mina de água abastecedora da casa do proprietário situada na parcela não expropriada, é insusceptível de implicar a constituição da servidão de aqueduto por destinação do pai de família em proveito daquela parcela sobre a parcela expropriada integrada no domínio público.
Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A" intentou, no dia 13 de Outubro de 2003, contra o Município de Vila Nova de Gaia, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração do seu direito à água das nascentes situadas em prédio alheio a favor do seu actual prédio, do seu direito de servidão legal de aqueduto adquirido por destinação do pai de família conforme a dimensão e a construção dele sobre o prédio ou a parcela expropriada e, através dele, para condução da água até ao seu prédio, do seu direito de propriedade sobre a obra granítica do aqueduto na parte que atravessa o subsolo da parcela de terreno expropriado, e a sua condenação a repor e a refazer nas condições em que se encontrava a parte daquele aqueduto granítico que destruiu e a abster-se de quaisquer outras acções que afectem, alterem ou impeçam o seu direito à água e a sua condução por aqueduto até ao seu prédio.
Fundamentou a sua pretensão no direito de propriedade sobre identificado prédio, na expropriação de uma parcela dele, na proveniência da água que serve a sua casa de três nascentes localizadas no terreno expropriado, na garantia do réu na expropriação do seu direito a mina, nascente e aqueduto para o abastecimento de água, na exclusão do aqueduto da expropriação em curso, na sua destruição nos trabalhos de construção da rodovia e na proibição de demolição ou modificação sem a sua autorização.
O réu, em contestação, negou haver reconhecido à autora o direito de servidão de aqueduto, e afirmou serem este e as águas partes componentes do imóvel, ter a expropriação abrangido todos os direitos reais sobre a parcela expropriada por não excluídos na declaração de utilidade pública, ter o imóvel sido transferido livre de ónus ou encargos, e que qualquer servidão só poderia surgir com a sua aquisição da propriedade.
E, em reconvenção, para o caso de reconhecimento da existência da servidão de aqueduto, pediu a declaração da modificação do modo d do seu exercício, em termos de o aqueduto comportar apenas sessenta centímetros de altura no atravessamento da parcela expropriada e a água passar por um tubo.
Na fase da condensação, por sentença proferida no dia 16 de Novembro de 2004, foi o réu absolvido do pedido, da qual a autora apelou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 12 de Maio de 2005, negou provimento ao recurso.
Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- não releva para o caso que a expropriação implique a extinção de todos os direitos, ónus e encargos e limitações dos bens imóveis expropriados;
- antes da divisão do prédio em duas fracções em consequência da expropriação não havia direito de servidão entre elas, pelo que não podia aquela expropriação extinguí-lo;
- o prédio pertencia ao mesmo dono, há relação estável de serventia de uma fracção dele expropriada e a fracção dele não expropriada, a servidão é aparente porque revelada por sinais visíveis e permanentes, houve separação jurídica de fracções e inexiste em qualquer documento declaração contrária à destinação;
- presume o artigo 1549º do Código Civil iuris et de iure que se outra coisa se não houver declarado no documento, se considera constituída a servidão e provada a sua existência face aos sinais aparentes e permanentes;
- a constituição do direito de servidão não briga com o interesse público por mor do qual foi declarada a expropriação por utilidade pública, conforme até resulta da circunstância de o recorrido haver pedido em reconvenção a sua mudança;
- por via da expropriação e da separação jurídica da parcela expropriada do seu prédio, adquiriu originariamente, por destinação do pai de família, o direito de servidão de aqueduto sobre aquela parcela;
- o acórdão recorrido violou os artigos 1547º, 1549º e 1568º do Código Civil, e a acção deve ser julgada procedente.
Respondeu o recorrido, em síntese de alegação:
- a recorrente limitou as alegações ao reconhecimento da servidão por destinação do pai de família, e a sua conclusão de que a concernente manutenção não prejudica o interesse público não tem expressão no corpo das alegações;
- a servidão por destinação do pai de família só pode constituir-se a favor da parcela sobrante quanto a declaração da utilidade pública expressamente o refira, o que não é caso;
- a expropriação determina a transmissão do prédio livre de ónus e encargos, e só se podem manter sobre os prédios expropriados os ónus ou encargos expressamente mencionados da declaração de utilidade pública;
- a razão de ser do instituto da expropriação opõe-se à solução da existência da servidão constituída na altura dela, porque o interesse público impõe a cessação das limitações existentes sobre o prédio expropriado, por forma a permitir a sua afectação à finalidade pública a que foi destinado;
- a manutenção de uma servidão num terreno onde passa uma via de circulação, ou seja, a manutenção da servidão de aqueduto por baixo de uma via pública, é susceptível de causar prejuízos sérios ao interesse público;
- como são extintas por virtude da expropriação as servidões existentes, por maioria de razão é proibida a constituição de novas servidões.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Está inscrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, na titularidade da autora, a aquisição por compra do prédio descrito sob o nº 03747 da freguesia de Mafamude, Vila Nova de Gaia, inicialmente como uma pequena casa térrea para caseiro, terra lavradia e a mato, com pinheiros, água de poço e de mina e, ulteriormente, como terreno de lavradio com a área de 2403 m2 e terreno de mato e pinhal com a área de 7800 m2.
2. Por despacho do Secretário de Estado da Administração Local, publicado na 2ª série do Diário da República, nº 147, no dia 28 de Junho de 2002, foi declarada a utilidade pública da expropriação com carácter urgente e com o fim de construir a via VL9, da parcela designada sob o nº 3, com a área de 6000 m2, pertencente ao referido prédio.
3. A vistoria ad perpetuam rei memoriam foi realizada no dia 3 de Setembro de 2002 pelo perito nomeado pelo presidente do Tribunal da Relação do Porto - B, engenheiro - assistido por representantes da autora e do réu, que elaborou o relatório com o seguinte teor: ..."Descrição - trata-se de uma parcela rústica a destacar de um prédio de maiores dimensões, de cultivo, sito na freguesia de Mafamude e Oliveira do Douro, concelho de Vila Nova de Gaia. A área a expropriar, de forma irregular, tem o total de 6000 m2, sendo considerados 5100 m2 como área útil para a obra, e 900 m2 como área sobrante. Benfeitorias - na parcela em causa a expropriar existem as seguintes benfeitorias: mina em pedra que atravessa o terreno, que deve ser garantida, pois abastece a casa; e um mirante em pedra face à estrada.
4. A autora apresentou no acto mencionado sob 3, além do mais, o seguinte quesito: deverá ser mantida a mina de água existente no terreno objecto da expropriação, mina essa que abastece a residência da propriedade há mais de trezentos anos? E a resposta foi sim.
5. Por peritos nomeados pelo presidente do Tribunal da Relação do Porto, a parcela foi avaliada e elaborado o relatório da arbitragem com o seguinte teor: Descrição da Parcela - como benfeitorias assinala-se a existência de mina em pedra que atravessa o terreno e deve ser garantida, pois abastece a casa. Das benfeitorias: de acordo com o critério adoptado na valorização do terreno, as benfeitorias existentes não deveriam ser acrescidas ao valor resultante da consideração do seu valor construtivo. No entanto, o valor que se atribui às benfeitorias, admitindo que a mina é preservada é de...
6. Os quesitos apresentados pela autora e as respectivas respostas são do seguinte teor: sobre o terreno expropriado existe aqueduto de água proveniente de outro prédio? A resposta foi sim e que existe uma mina de água cuja proveniência se desconhece.
De onde provém a água e onde se situa a mina relativa ao mesmo aqueduto? Esta mina e a captação e condução de água mantém-se? A resposta foi: os árbitros desconhecem de onde provém a água e do mesmo modo onde se inicia a mina; e desconhecem também o projecto da via, pelo que não se podem pronunciar acerca da manutenção ou não da mina.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não o direito de impor ao recorrido a servidão de aqueduto em causa sobre a parcela de terreno que foi objecto de expropriação a favor da parte restante não expropriada do prédio originário.
A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pertinente quadro legal da expropriação por utilidade pública;
- objecto mediato da expropriação por utilidade pública em causa;
- conceito legal de servidão em geral;
- constituição de servidões por destinação do pai de família;
- constitui-se ou não a servidão de aqueduto em causa?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.
Comecemos pela análise do quadro legal da expropriação por utilidade pública no confronto com o caso vertente.
No caso espécie, considerando que a declaração da utilidade pública da expropriação foi publicada no jornal oficial no dia 28 de Junho de 2002, é-lhe aplicável, além do mais, o Código das Expropriações de 1999.
Estabelece a Constituição que a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nº 2).
E a lei ordinária geral estabelece que ninguém pode ser privado, no todo em parte, do seu direito de propriedade salvo, nos casos fixados na lei e que, havendo expropriação por utilidade pública, é sempre devida indemnização adequada ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais afectados (artigos 1308º e 1310º do Código Civil).
Por seu turno, estabelece o Código das Expropriações, além do mais, por um lado, que os bens imóveis e os direitos que lhe sejam inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização nos termos deste Código (artigo 1º).
E, por outro, que a expropriação deve limitar-se ao necessário para a realização do seu fim e, quando seja necessário expropriar apenas parte de um prédio, pode o proprietário requerer a expropriação total se a parte restante não assegurar, proporcionalmente, os mesmos cómodos oferecidos por todo o prédio ou se os cómodos por ela assegurados não tiverem interesse económico para o expropriado, objectivamente determinado (artigo 3º, nºs 1 e 2).
Acresce que o mencionado Código prescreve, por um lado, que a publicação da declaração de utilidade pública deve identificar sucintamente os bens sujeitos a expropriação, com referência à descrição e inscrição matricial, mencionar os direitos, ónus e encargos que sobre eles incidam e os nomes dos respectivos titulares e indicar o fim da expropriação (artigo 17º, nº 3).
E, por outro, que o auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam deve descrever pormenorizadamente o objecto da expropriação, designadamente as construções existentes, as características destas, a época da sua edificação, o seu estado de conservação, com menção expressa de todos os elementos susceptíveis de influírem na avaliação dos bens vistoriados para efeitos de fixação da justa indemnização (artigo 21º, nº 4).
A aquisição dos bens expropriados pela entidade expropriante é originária ou seja, extingue os direitos os direitos reais e pessoais inerentes aos bens expropriados, ficando os titulares afectados com um direito de crédito indemnizatório (artigos 692º, nº 3, 753º, 759º, nº 3, 823º, 1480º, nº 2, 1490º e 1542º do Código Civil e 9º do Código das Expropriações).
Em consequência de a expropriação implicar a aquisição originária pela entidade expropriante dos direitos reais sobre os bens expropriados, em razão da extinção dos anteriores direitos reais sobre eles, ela assume posição objectivamente independente da dos expropriados.
Perante este quadro legal, a doutrina caracteriza o efeito da expropriação por utilidade pública como extinção de antigos direitos reais sobre bens imóveis da titularidade dos expropriados e a constituição de um direito a indemnização, e a constituição de novos direitos reais na titularidade da entidade expropriante.
Face ao disposto no artigo 1310º do Código Civil, onde se expressa que havendo expropriação por utilidade pública é sempre devida a indemnização ao respectivo proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afectados, o acto expropriativo extingue não só o direito de propriedade sobre o prédio em causa como também os outros direitos reais que sobre ele incidam.
2.
Atentemos agora no objecto mediato da expropriação por utilidade pública em causa, tal como resulta da respectiva declaração e da vistoria ad perpetuam rei memoriam.
O prédio em causa, antes da sua fragmentação por via da expropriação, era constituído por um terreno de lavradio com a área de 2.403 m2 e por um terreno de mato e pinhal com a área de 7.800 m2.
A declaração de utilidade pública da expropriação visou a construção de uma via rodoviária e mencionou simplesmente uma parcela com a área de 6.000 m2, sem qualquer referência à existência de alguma servidão predial de aqueduto ou de outra natureza.
Na descrição da parcela de terreno expropriada constante do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam também se não referiu a existência de alguma servidão de aqueduto ou de outro tipo. Mas nela se mencionou a existência da benfeitoria consubstanciada em uma mina de pedra que atravessava o terreno por via da qual a casa é abastecida de água.
3.
Vejamos agora o conceito legal de servidão predial, em tanto quanto releva no caso vertente.
A lei define a servidão predial como o encargo imposto num prédio, o chamado dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado por serviente (artigo 1543º do Código Civil).
Trata-se, pois, de uma restrição ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente, ao direito de gozo do respectivo proprietário, ou seja, implica um direito real limitado.
É oponível não só ao proprietário do prédio serviente como também aos seus futuros adquirentes, de harmonia com o princípio da inerência.
Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que lhe não aumentem o valor (artigo 1544º do Código Civil).
É, assim, essencial à constituição de uma servidão que dela resulte alguma vantagem para o prédio dominante, ou seja, um proveito efectivo por via de um prédio serviente.
As servidões são indivisíveis e, consequentemente, se o prédio serviente for dividido entre vários donos, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia, e se for dividido o prédio dominante tem cada consorte o direito de usar a servidão sem alteração ou mudança (artigo 1546º do Código Civil).
Entre as referidas servidões conta-se a de aqueduto, outrora designada por jus aquae ducendi per fundum alienum, cuja utilidade imediata é o aproveitamento da água de que se é proprietário ou titular do direito de utilização.
Consubstancia-se essencialmente na condução da água para um prédio dominante, onde é utilizada, através de um prédio alheio serviente, por meio de cano, rego ou mina, em regra pelo sub-solo.
É esse tipo de servidão de aqueduto de pedra ou de mina que a recorrente pretende que se tenha constituído na parcela expropriada para gerar a utilidade da água à parcela de terreno sobrante da expropriação, onde se inclui a sua casa de habitação.
4.
Atentemos agora no modo de constituição de servidões por destinação do pai de família.
Os modos de constituição das servidões são o contrato, o testamento, a usucapião ou destinação do pai de família (artigo 1547º, n.º 1, do Código Civil).
tendo em conta o objecto do litígio, no caso vertente só releva, no quadro dos títulos de constituição de servidões, a destinação do pai de família, a que se reporta o artigo 1549º do Código Civil.
Expressa o referido artigo que se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.
Três são, pois, os pressupostos de constituição de servidões por destinação de pai de família, ou seja, a pertença ao mesmo dono de prédios ou de fracções dele, a existência de sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia em ambos ou só um deles, a separação dos prédios ou das suas fracções em relação ao domínio sem declaração contrária à constituição da servidão no respectivo título documental.
A recorrente entende que a referida separação de domínios é susceptível de resultar do título de aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio ou alguma fracção dele que é a expropriação, baseando esse entendimento na doutrina sobre a matéria, o que a lei realmente não exclui.
A expressão da parte final do referido artigo 1549º do Código Civil relativa à ressalva da declaração contrária à constituição da servidão por destinação do pai de família exige que se expresse no respectivo documento essa intenção de não constituição.
Só a referida declaração contrária à constituição da servidão no documento relativo à separação dos prédios ou das fracções do mesmo prédio, verificados os pressupostos previstos naquele artigo, é susceptível de implicar a não constituição daquela servidão.
E neste ponto, baseada na opinião do autor que cita, a recorrente expressou não ser forçoso que a declaração contrária à servidão seja do anterior proprietário, acrescentado que a cláusula impeditiva da sua constituição, no caso de expropriação, é ordenada pela autoridade judicial.
De qualquer modo, não se trata de uma servidão legal, mas voluntária, porque assenta no facto voluntário da colocação dos sinais que a revelem e se constitui quando os prédios em causa passam a pertencer a proprietários diferentes.
É constituída a título originário por via da transformação de uma mera situação de facto, revelada pelos referidos sinais visíveis e permanentes, numa situação jurídica decorrente da separação do domínio, produtora dos efeitos jurídicos que lhe são próprios.
5.
Vejamos agora se constituiu ou não a servidão de aqueduto pretendida pela recorrente.
Está assente, por um lado, que por via da fragmentação do prédio em causa em resultado da expropriação, uma parcela ficou na titularidade da recorrente e a outra na titularidade da recorrida
E, por outro, que, antes da referida fragmentação existia uma mina de pedra, ou seja um encanamento feito com esse material por onde corria a água que, além do mais, abastecia a casa da recorrente.
E, finalmente, depois da mencionada fragmentação decorrente da expropriação, em cujo título, ou seja, no texto da declaração de utilidade pública que foi publicado no jornal oficial nada constava, a mencionada mina ficou inserida em ambas as novas parcelas do aludido prédio, isto é, a expropriada e a não expropriada.
Este quadro de facto envolve a pertença pretérita à mesma dona do prédio, a fragmentação dele em duas parcelas, os sinais visíveis e permanentes reveladores de uma situação estável de serventia em ambas, a separação das parcelas em relação ao domínio e a inexistência de declaração em documento no sentido de exclusão da constituição da servidão.
E é com base nesse quadro de facto que a recorrente entende constituída a referida servidão por destinação do pai de família, contra o decidido no tribunal de 1ª instância e no tribunal da Relação.
A decisão do tribunal da 1ª instância assentou essencialmente em razão de por via da declaração de expropriação por utilidade pública haverem ficado extintos os direitos, ónus ou encargos incidentes sobre a parcela expropriada e a mesma não haver ressalvado algum deles.
E a decisão da Relação assentou essencialmente no interesse público - fim da expropriação e justificação da extinção automática dos direitos relativos aos imóveis expropriados - na circunstância de a servidão de aqueduto em causa afectar o carácter originário da aquisição da parcela e a própria finalidade da expropriação, e no facto de tal limitação ao exercício do direito de propriedade decorrente da expropriação ser contraditória com a sua própria finalidade.
Mas acrescentou que a aquisição da parcela expropriada livre de ónus e encargos significava a declaração de oposição à constituição da servidão por destinação do pai de família a que se reporta a parte final do artigo 1549º do Código Civil, o que justificou com a imposição derivada da lei, em vista do interesse público, da abolição de qualquer servidão.
Neste ponto, tendo em conta o conteúdo do texto do acto administrativo de declaração da utilidade pública da expropriação em causa, que foi publicado no jornal oficial, não obstante a extinção de direitos sobre a parcela expropriada ope legis acima referida, não se pode concluir que no caso vertente se está perante uma declaração no sentido de exclusão da constituição do direito de servidão em causa (artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1, do Código Civil).
A circunstância de a expropriação implicar a aquisição originária do direito de propriedade sobre a parcela expropriada e a extinção de direitos, ónus e encargos que sobre elas incidam, não seria incompatível com a constituição da servidão de aqueduto em causa, porque esta decorreria, a título originário, por efeito da própria separação jurídica da mencionada parcela expropriada.
E no caso espécie, quando foi publicada no jornal oficial a declaração de expropriação por utilidade pública, não existia sobre o prédio afectado pela expropriação, pelo menos da titularidade da recorrente, alguma servidão, designadamente de aqueduto.
Mas se algum prédio alheio aproveitava da vantagem derivada da água canalizada pelo subsolo da parcela expropriada, ou seja, no quadro da servidão de aqueduto, certo é que se extinguiu por virtude da mencionada declaração de utilidade pública da expropriação.
Mas importa determinar se é ou não contraditório com a finalidade da expropriação por utilidade pública que por via dela se constitua uma limitação ao exercício do direito de propriedade que por via dela derivou para a titularidade do recorrido a título originário.
O entendimento da recorrente é no sentido contrário, afirmando que a lei não proíbe a constituição da referida servidão relativamente a bens do domínio público no momento em que ele é criado, acrescentando que essa constituição não briga com o interesse público.
Ora, importa ter em conta que a parcela expropriada se destinou, conforme resulta da declaração da utilidade pública da expropriação, à construção de uma via rodoviária de âmbito municipal, naturalmente integrada no domínio público autárquico.
A constituição de alguma servidão sobre bens do domínio público extravasa da mera relação jurídica de direito privado, passando para o âmbito da relação jurídica administrativa, em que o interesse público é que marca o respectivo licenciamento.
A lei considera fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, por exemplo, as que se encontrem no domínio público (artigo 202º, nº 2, do Código Civil).
Integram-se no domínio público, do Estado ou no de outras pessoas colectivas de direito público, as coisas que são objecto de relações jurídicas públicas.
Ora, por via da expropriação, a parcela expropriada para a construção de uma estrada integrou-se no domínio público, em consequência do que deixou de poder ser objecto de direitos privados.
Acresce que os factos provados não revelam que tenha ocorrido a desafectação expressa ou tácita da parcela de terreno expropriada do domínio público onde se integrou, isto é, que tenha passado a integrar o domínio privado autárquico.
O artigo 1549º do Código Civil, relativo à constituição de servidões por destinação do pai de família, estabelece quanto a conflitos relativos a direitos privados, e não para o caso vertente, em que está em causa um conflito entre o interesse privado e o interesse público.
Nessa medida, a lei não exclui que a servidão por destinação do pai de família possa ser constituída por via de expropriação por utilidade particular, em que apenas estão em causa relações jurídicas de direito privado (artigos 1551º a 1554º do Código Civil).
Mas no caso vertente, atenta a integração da parcela expropriada no domínio público, não pode o conflito entre a recorrente e o recorrido ser resolvido à luz do que se prescreve no referido artigo, porque a tal se opõe o interesse público que motivou a expropriação da parcela expropriada.
É, aliás, uma solução conforme com a circunstância de a expropriação por utilidade pública implicar a extinção do direito de propriedade e ou de outros direitos, ónus e encargos incidentes sobre o prédio ou a fracção predial expropriados, e com o facto de a parcela de terreno expropriada passar a ser uma coisa pública, fora do comércio.
6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
A expropriação de imóveis por utilidade pública implica, ope legis, a extinção do respectivo direito de propriedade e ou de outros direitos, ónus e encargos que sobre eles incidam.
A parcela de terreno expropriada sob a declaração de utilidade pública destinou-se à construção de uma via rodoviária de âmbito municipal, integrou-se no domínio público, tornou-se coisa pública e ficou fora do comércio.
O artigo 1549º do Código Civil, relativo à constituição de servidões por destinação do pai de família, estabelece quanto a conflitos relativos a direitos privados, e não para o caso vertente, em que se está perante um conflito entre o interesse privado e o interesse público.
Independentemente da verificação dos pressupostos de constituição da servidão por destinação do pai de família a que se reporta o artigo 1549º do Código Civil, a expropriação da parcela de terreno em causa, implicando a sua integração no domínio público rodoviário autárquico, não permite o estabelecimento da servidão de aqueduto em causa.
A recorrente não tem, por isso, o direito de impor ao recorrido a constituição da referida servidão de aqueduto.
Improcede, por isso, o recurso.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.
Lisboa, 29 de Novembro de 2005.
Salvador da Costa.