ADVOGADO
HONORÁRIOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário

1. A legitimidade ad causam singular é aferível pelo objecto do processo conforme foi delineado pelo autor por via da expressão da relação material controvertida, independentemente da sua existência efectiva ou veracidade.
2. O regime de fixação e de cobrança dos honorários devidos a advogados integrados em sociedades de advogado é o que resulta da conjugação das pertinentes normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e da lei das sociedades de advogados.
3. No domínio da vigência do Decreto-Lei 513-Q/79, de 26 de Dezembro, cabia às sociedades de advogados a fixação e a cobrança dos honorários por serviços de patrocínio prestados pelos seus sócios.
4. O advogado que prestou os serviços se patrocínio integrado em sociedade de advogados não tem legitimidade ad causam para accionar o devedor dos honorários em acção tendente sua cobrança.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"A" intentou, no dia 15 de Junho de 2004, contra B, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 27.650 e juros desde a citação e a reembolsá-lo do respectivo imposto sobre o valor acrescentado, sob a invocação de ser credor dele por honorários relativos ao seu serviço de patrocínio em acção executiva e embargos de executado.
O réu, em contestação invocou, além do mais, a ilegitimidade ad causam do autor sob o fundamento de haver emitido procuração a C, Sociedade de Advogados.
O autor replicou no sentido da sua legitimidade ad causam, e requereu a intervenção de C sob o fundamento de ela deter um interesse similar ao seu e de se impor o seu chamamento para assegurar a legitimidade activa dele.
O tribunal da 1ª instância, por sentença proferida no dia 30 de Novembro de 2004, recusou a intervenção na causa daquela sociedade e absolveu o réu da instância por ilegitimidade ad causam.
Agravou o autor, e a Relação, por acórdão proferido no dia 6 de Abril de 1995, negou provimento ao recurso.

Interpôs o agravante recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o mandato foi conferido ao recorrente a exercer a sua profissão associado numa sociedade de advogados, mas exerceu o patrocínio com independência e por via da prestação do seu exclusivo labor;
- os honorários são a retribuição do trabalho prestado pelo advogado, enquanto profissional livre, e não há direito conferido por lei sem a possibilidade do seu exercício em juízo;
- enquanto resultado concreto da sua profissão, o advogado tem o direito de fixar e cobrar os honorários, não pode sujeitar-se a critérios alheios, salvo os cometidos pela deontologia própria e pessoal, pelo que os pode exigir de quem tiver o dever de os pagar;
- os advogados associados em sociedades de advogados não se demitem desse direito nem do seu efectivo exercício inerente ao exercício da sua profissão, sendo receitas da sociedade constituídas pela repartição dos proventos ou remunerações cobradas ou auferidas pelos seus associados;
- o acórdão recorrido violou o Regulamento dos Laudos de Honorários e os artigos 65º do Estatuto da Ordem dos Advogados e 1º, 6º e 25º do Decreto-Lei n. 513-Q/79, de 26 de Dezembro;
- o artigo 31º do Decreto-Lei nº 229/2004, de 10 de Dezembro, é interpretativo da lei anterior no sentido de que, por deliberação dos sócios, a contraprestação da actividade profissional da advocacia não constitui forçosamente receita da sociedade;
- o direito à remuneração do trabalho consagrado no artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição é afectado pela interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro.

Respondeu o recorrido, em síntese de alegação:
- o agravado nada contratou com o agravante, mas com a sociedade de que este era sócio, e foi a esta que fez pagamentos;
- se alguma coisa fosse devida, à sociedade cabia reclamar o respectivo pagamento;
- a actividade prestada pelo agravante foi-o enquanto sócio da referida sociedade;
- o agravante não tem legitimidade ad causam, porque não tem interesse em demandar, dado não ser titular da pretensa relação jurídica que configura.

II
É a seguinte a dinâmica processual que releva no recurso:
1. O réu declarou constituir procurador o autor, sócio da sociedade de advogados C .
2. O pedido que o autor formulou na acção envolve honorários decorrentes da sua actividade de advogado em patrocínio do réu em acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, intentada pelo último contra D, Ldª e E, à qual este deduziu embargos de executado.
3. O autor exerceu a referida actividade de advogado enquanto sócio de C.

III
A questão decidenda é a de saber se o recorrente é ou não dotado de legitimidade ad causam para intervir na acção na posição de autor.
A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- regime legal geral da legitimidade ad causam;
- estrutura da relação jurídica material controvertida formulada na acção;
- regime legal das sociedades de advogados aplicável;
- regime geral e especial de fixação e de cobrança de honorários;
- ocorre ou não no caso espécie a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos por uma breve nota sobre o regime legal geral da legitimidade ad causam do lado activo.
Expressa a lei aplicável, em tanto quanto releva no caso vertente, por um lado, ser o autor parte legítima quando tem interesse directo em demandar e que este se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção (artigo 26º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
E, por outro, que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor (artigo 26º do Código de Processo Civil).
Assim, por um lado, o pressuposto processual positivo legitimidade ad causam traduz-se essencialmente numa relação entre os sujeitos e o objecto do processo e visa que só sejam partes no processo as pessoas com interesse para discutir os termos do litígio.
E, por outro, dever ser apreciada e determinada face aos termos em que o autor formula a causa de pedir e o pedido no confronto do réu, pela utilidade ou prejuízo que para um ou outro, respectivamente, possa advir da procedência ou da improcedência da acção.
Dir-se-á que a legitimidade ad causam singular deve aferir-se pela análise do objecto do processo conforme foi delineado pelo autor por via da expressão da relação material controvertida, independentemente da sua existência efectiva ou veracidade.
2.
Atentemos agora na estrutura da relação jurídica material controvertida consubstanciada pela causa de pedir e o pedido formulados pelo recorrente.
O pedido de condenação que o recorrente formulou na acção no confronto do recorrido é o de pagamento € 27 650 acrescidos do valor dos juros moratórios desde a data da citação do último e de reembolso do imposto sobre o valor acrescentado.
A causa de pedir em que o recorrente funda o pedido é, por um lado, um contrato de mandato para o exercício do patrocínio judiciário desenvolvido por via de um instrumento de procuração (artigos 262º, n.º 1 e 1157º do Código Civil)
E, por outro, a omissão pelo mandante do pagamento dos honorários relativos ao serviço de patrocínio que lhe foi prestado pelo recorrente.
A particularidade do caso espécie decorre da circunstância de a referida procuração haver sido emitida a favor do recorrente quando era sócio da sociedade de advogados, C.

3.
Vejamos agora o regime legal das sociedades de advogados aplicável em tanto quanto releva no caso vertente.
No caso vertente, tendo em conta a data em que o contrato de mandato foi celebrado e prestados os serviços de patrocínio em causa, as sociedades de advogados eram regidas pelo Decreto-Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
Com efeito, o novo regime das sociedades de advogados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 229/2004, de 10 de Dezembro, só entrou em vigor no dia 9 de Janeiro de 2005 (artigo 65º).
Sob a epígrafe objecto das sociedades civis de advogados, expressa o primeiro dos referidos diplomas, por um lado, que os advogados podem constituir ou ingressar em sociedades civis de advogados, cujo objectivo exclusivo é o exercício em comum da profissão de advogado, com o fim de repartirem entre si os respectivos resultados, e que as sociedades de advogados adquirem personalidade jurídica com o registo na Ordem dos Advogados (artigos 1º, nº 1, e 5º).
E, por outro, que os advogados só podem fazer parte de uma única sociedade de advogados, deverem consagrar-lhe toda a sua actividade profissional de advogado, deverem as procurações indicar a sociedade de que o advogado constituído faça parte, dever considerar-se o mandato conferido a um dos sócios automaticamente extensivo aos restantes salvo se o contrário constar expressamente da procuração (artigo 6º, nºs 1, 4 e 5).
Acresce que o mencionado diploma expressa que as remunerações de qualquer natureza cobradas como contraprestação da actividade profissional dos sócios constituem receitas da sociedade, que o pacto social determina as modalidades da distribuição dos resultados, e que, na falta de disposição estatutária sobre a distribuição dos lucros, estes são distribuídos por todos os sócios em partes iguais (artigo 25º).

Neste último ponto, expressa a nova lei que, salvo disposição do contrato ou deliberação da assembleia geral em contrário, as remunerações de qualquer natureza cobradas como contraprestação da actividade profissional da advocacia dos sócios e dos associados constituem receitas da sociedade (artigo 31.º do Decreto-Lei nº 229/2004, de 10 de Dezembro).
O segmento normativo deste último artigo salvo disposição do contrato ou deliberação da assembleia geral em contrário é inovador em relação ao que prescrevia o artigo 25º do Decreto-Lei nº Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro, que não contém essa ressalva.
4.
Atentemos, ora, no regime geral e especial de fixação e de cobrança de honorários de advogados.
Estabelecia a lei anterior que na fixação dos honorários deve o advogado proceder com moderação, atendendo ao tempo gasto, à dificuldade do assunto, à importância do serviço prestado, às posses dos interessados, aos resultados obtidos e à praxe do foro e estilo da comarca (artigo 65º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados de 1984).
A lei actual estabelece, por seu turno, por um lado, que na fixação dos honorários deve o advogado atender à importância dos serviços prestados, à dificuldade e urgência do assunto, ao grau de criatividade intelectual da sua prestação, ao resultado obtido, ao tempo despendido, às responsabilidades por ele assumidas e aos demais usos profissionais (100º, nº 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005).
E, por outro, que na falta de convenção prévia reduzida a escrito, o advogado apresenta ao cliente a respectiva conta de honorários com discriminação dos serviços prestados (artigo 100º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados de 2005).
O Regulamento dos Laudos de Honorários de Advogados, aprovado por deliberação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 18 de Julho de 2003, prescreve que a conta de honorários deve ser apresentada ao cliente por escrito, assinada pelo advogado e mencionar as provisões recebidas, o imposto sobre o valor acrescentado devido, enumerar e discriminar os serviços prestados, explicitar fundadamente os critérios tidos em consideração na fixação dos honorários, em separados das despesas e encargos, com todos esses valores especificados e datados (artigo 5º, nºs 1, 3 a 5).
O critério de cálculo dos referidos honorários é, naturalmente, aplicável à generalidade dos serviços de patrocínio judiciário convencionados entre os clientes e os advogados, independentemente de estes haverem realizado a sua actividade profissional enquadrados ou não enquadrados em sociedades de advogados.
Mas o regime de fixação e de cobrança dos mencionados honorários relativos a advogados integrados em sociedades de advogados não é apenas o que resulta das mencionadas normas, certo que, como é natural, deve ser especialmente conformado por via da aplicação das normas do aludido regime das sociedades de advogados.
Em consequência, é à sociedade de advogados que compete fixar os honorários correspondentes aos serviços prestados pelos respectivos sócios e proceder à respectiva cobrança (artigo 25º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro).
Porque o recorrente decidiu participar numa sociedade de advogados, ela ficou, por força da lei, subrogada no direito de cobrar os honorários correspondentes ao serviço de patrocínio que prestou ao recorrido, o que se conforma com a própria estrutura societária em que se integrou.
Como a dinâmica da sociedade é determinada pela vontade dos respectivos sócios, não faz sentido argumentar no sentido de a cobrança de honorários não pode ficar na dependência de outrem, designadamente para efeito de prescrição.

5.
Vejamos, ora, se ocorre ou não no caso espécie a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente.
Ele referiu que o artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro, contraria o direito à remuneração do trabalho consagrado no artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição.
Expressa este último normativo que todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, tem direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna (artigo 59º, nº 1, alínea a), da Constituição).
Trata-se de um normativo que estabelece os princípios fundamentais que devem reger a retribuição do trabalho, em conformidade com a sua duração e intensidade, dificuldade, penosidade, perigosidade, exigências de conhecimentos, capacidade e prática.
São direitos imediatamente dirigidos contra os empregadores e o próprio Estado, enquanto legislador, pelo que nada têm a ver com as pessoas que exercem a profissão liberal de advogado.
Conforme acima se referiu, o artigo 25º do Decreto-Lei nº 513-Q/79, de 26 de Dezembro, cinge-se ao regime das sociedades de advogados em que estes decidiram livremente participar com capital ou indústria e que devem, como é natural, cumprir.
O disposto neste artigo em si ou pela forma como foi interpretado nas instâncias não colide, como é natural, com o direito do recorrente, como advogado e profissional liberal, nem com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 59º da Constituição.

6.
Vejamos, finalmente, a solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
O direito de crédito que o recorrente invoca na acção no confronto do recorrido não é da sua titularidade, mas da sociedade de advogados que então integrava.
Isso significa que o interesse directo na demanda não se inscreve na sua titularidade do recorrente nem este é titular directo da relação material controvertida tal como a formula na petição inicial.
A tal conclusão não obsta a circunstância de o recorrente exercer o patrocínio com independência e por via da prestação do seu exclusivo labor, nem o normativo do artigo 2º, nº 2, do Código de Processo Civil enquanto expressa corresponder a todo o direito a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.
Não tem o recorrente, por isso, na espécie, legitimidade ad causam e, consequentemente, não podia proceder a sua pretensão de provocar a intervenção de C.

À míngua do referido pressuposto processual insuprível, traduzida em excepção dilatória, a solução não podia deixar de ser, como foi, a de absolvição do recorrido da instância (artigos 288º, nº 1, alínea d), 493º, nº 2 e 494º, alínea e), do Código de Processo Civil).
Assim, ao invés do que o recorrente afirmou, o acórdão recorrido não infringiu o Regulamento dos Laudos de Honorários, nem o artigo 65º do Estatuto da Ordem dos Advogados de 1984, nem os artigos 1º, 6º e 25º do Decreto-Lei 513-Q/79, de 26 de Dezembro.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido no recurso, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2005.
Salvador da Costa. (Relator)