RECURSO DE REVISÃO
INCONCILIABILIDADE DE FACTOS PROVADOS
Sumário


1 - A inconciliabilidade entre factos que tenham sido considerados na decisão revidenda e numa outra decisão tem de materializar-se numa contradição entre factos provados, como decorre claramente da proposição normativa: os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença -, e não entre factos provados e factos não provados.
2 - Na verdade, só existe verdadeira contradição para o efeito que aqui interessa, entre factos provados que se não conciliem. Só a contradição daí resultante é capaz de gerar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, como sucederá, por exemplo, se numa decisão se der como provado que A matou B e noutra se tiver dado como provado que a morte de A resultou da sua queda involuntária num precipício. Já o mesmo não sucede se num processo se tiver dado como provado que A matou B e noutro tiver ficado não provado que a morte de A resultou de uma acção de B

Texto Integral


I. RELATÓRIO
1. AA e BB interpuseram recurso extraordinário de revisão do acórdão do acórdão proferido no âmbito do processo comum colectivo do 1.º Juízo do Tribunal de Cascais, (329/01.0JELSB), que condenou ambos os recorrentes, em co-autoria e como reincidentes, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, dos artigos 21.º, n.º1 e 24.º, alínea c) do DL 15/93, de 22/1, o primeiro na pena de 11 anos de prisão e a segunda, na pena de 10 anos de prisão, que a Relação de Lisboa, em recurso, baixou respectivamente para 9 e 8 anos de prisão, e posteriormente o Supremo Tribunal de Justiça, também em recurso, baixou ainda para 8 anos a pena aplicada ao recorrente AA, mantendo a fixada para a recorrente BB, ficando assim ambos os recorrentes condenados na pena de 8 (oito) anos de prisão.
2. Concluíram assim a motivação conjunta dos recursos:
I) - Os Recorrentes cumprem, actualmente pena de prisão efectiva de 8 anos, em consequência da sua condenação como co-autores reincidentes de um Crime de Tráfico Agravado de Estupefacientes (art. 24 al. e) do D.L. 15/93), no processo que correu termos no 1,° Juízo Criminal de Cascais e foi posteriormente objecto de Recursos para Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça;
II) - Consideram os Recorrentes que a decisão da qual resultou a respectiva condenação está em oposição com a sentença do 4° Juízo Criminal de Cascais, proferida no processo n° 458/03.6TACSC, em que era arguido CC.
III) - Porquanto, os dois processos pronunciam-se sobre os mesmos factos de forma contraditória, de molde a pôr em causa a justiça da condenação dos aqui Recorrentes;
IV) - Já que os mesmos factos que consubstanciam as duas sentenças, na medida em que mereceram diferente interpretação por parte do Tribunal» levaram no caso dos Recorrentes à sua condenação e no caso do CC à absolvição;
V) - Sendo evidente que os dois processos julgaram a mesma realidade material, embora com arguidos diferentes, de forma inconciliável e contraditória;
VI) - E os factos que num processo foram considerados assentes e serviram para condenar os Recorrentes, foram considerados não provados no processo do CC;
VII) - Nomeadamente, foi considerado provado, no processo em que os Recorrentes foram condenados, que o CC era a pessoa que directa ou indirectamente através de agentes, fornecia o produto estupefaciente aos Recorrentes para estes posteriormente comercializarem;
VIII) - E, no processo dos Recorrentes, toda a acusação e posterior condenação foram baseadas neste facto dado por assente que o CC lhes fornecia a droga que depois estes vendiam;
IX) - Enquanto no processo crime instaurado contra o CC ficou provado que este jamais vendera droga ouqualquer produto estupefaciente aos Recorrentes;
X) - Assim sendo, e evidente a oposição entre os factos que sustentam ambas as decisões, até porque a verificação do Crime de Tráfico de Estupefacientes pressupõe a existência de um produto ilícito que é fornecido por alguém, no caso dos Recorrentes por CC, que outro processo iliba de toda a actividade criminosa;
XI) - A contradição entre estes factos e consequentemente os julgados que fundamentam, assume carácter relevante, já que toda a acusação e condenação dos Recorrentes assenta na comercialização de um produto ilícito que é fornecido por uma pessoa (CC) que outro processo absolve da venda de produto estupefaciente aos Recorrentes;
XII) - Neste pressuposto, a condenação dos Recorrentes é posta em causa, porque assente era factos considerados não-provados noutro processo, questionando-se a justiça do julgamento;
XIII) - Considerando que, neste caso, é preferível pôr em causa o valor da segurança e estabilidade do caso julgado, em nome da salvaguarda da Justiça e da descoberta da verdade material;
XIV) - Estando assim preenchido os pressupostos legais do art°. 449 al e) do C. P. C. para ser admitido o presente Recurso de Revisão de Sentença.
(…)
3. O recurso foi admitido, tendo o Ministério Público junto do juízo da condenação oferecido a sua resposta, na qual concluiu:
1 - Não se descortina a existência de qualquer contradição entre as duas decisões, dependendo os factos provados num e noutro processo da prova produzida em audiência de julgamento.
2 - Da decisão do 4.º Juízo Criminal não consta como provado qualquer facto inconciliável com os factos que serviram de fundamento, nos presentes autos, à condenação dos arguidos.
3 - Assim, do confronto das duas decisões não resulta qualquer grave dúvida sobre a justiça da condenação.
4 - Pelo que não existe fundamento para que se proceda a recurso de revisão nos termos do art. 449, n.º 1, alínea c) do CPP.
4. Na informação a que alude o art. 454.º do CPP, o juiz do processo limitou-se a concordar com a posição do Ministério Público.
5. Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público acompanhou aquela resposta, acrescentando algumas considerações complementares, tudo no sentido da recusa da pedida revisão.
6. Colhidos os vistos nos termos do art. 455.º do CPP, o processo veio para conferência para decisão.

II. FUNDAMENTAÇÃO
7. Factos em que assentou a decisão condenatória.
7. 1. Factos provados:
A) DD vivia com uma filha de AA e BB e daí a ligação entre eles e entre este casal e EE, irmão de DD. FF conheceu AA por terem cumprido penas juntos em estabelecimentos prisionais portugueses. FF conhecia DD mercê da ligação familiar deste com AA e BB.
B) Em Setembro ou Outubro de 2001, GG e HH conheceram-se e interessaram-se reciprocamente pelas respectivas actividades no âmbito da venda de drogas, designadamente a compra e revenda de cannabis sob a forma de pólen de haxixe. Abordaram o assunto e passaram a dedicar-se em conjunto à respectiva compra, guarda e revenda: GG passou a entregar a HH várias quantidades dessa substância, e este passou a guardá-las na sua casa sita em Azenhas do Mar, Colares, Sintra.
C) Por volta do dia 05.12.2001, AA e sua mulher BB [deslocaram-se a local não apurado e] receberam 4 amostras de resina de cannabis [resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da espécie botânica Cannabis sativa L., vulgarmente conhecida como haxixe, produto vegetal prensado composto por um triturado de sumidades secas floridas ou frutificadas do pé fêmea da referida planta ao qual serve de ligante a resina da própria planta] que lhe foram entregues por CC. Trouxeram-nas para a zona de Cascais e entregaram-nas a FF para este sondar o mercado a fim de apurar qual das quatro tinha melhor aceitação entre os consumidores dessa substância. Essas amostras apresentavam marcas de fabricante, em baixo relevo impresso na sua massa. Pelas características dos desenhos desses sinais, AA e FF passaram a referir-se-lhes como “Renault”, “Folha”, “nº 1” e nomes semelhantes, pois uma das amostras de haxixe apresentava a marca do seu fabricante em formato de losango semelhante ao logótipo da referida marca de automóveis; outra apresentava o número 1 (fls. 143) e outra dessa apresentava uma marca em formato de folha de árvore. Este tipo de denominação do haxixe, nas conversas havidas entre compradores e vendedores, em função dos símbolos apostos pelos respectivos produtores, é comum aos diversos arguidos, podendo ver-se a fls. 813 “sabonetes” que apresentam símbolos tais como “7”, “OK” ou “Peixe”.
D, E, F e G) No dia 10 ou 11 de Dezembro de 2001, no stand de venda de carros de que dispunham em Chelas, Lisboa, AA e BB intermediaram uma venda de larga quantidade de haxixe a ter lugar entre DD, no seu meio conhecido por DD e que actuava como “empregado” de CC, e FF, este como comprador: DD encontrou-se no stand dos arguidos AA e BB com FF e aí propôs-lhe que lhe comprasse haxixe que disse ser trazido de Marrocos, na quantidade de 236 quilogramas e ao custo de 155.000$ (€ 773,13) cada quilo, o que perfaria a totalidade de 36.580.000$ (€ 182.460,27). Como contraproposta, FF propôs-se comprar 100 kg e pagar apenas depois de ter procedido à revenda da substância. As negociações prolongaram-se ao longo dos dias seguintes, pessoalmente e por telemóvel. A entrega esteve inicialmente marcada para um armazém de que FF dispunha em Galinheiras, Lisboa, mas esse plano foi depois alterado, tendo-se planeado que as conversações e a entrega decorreriam numa das ruas do Estoril. Em preparação da entrega do carregamento de droga, tiveram lugar diversos encontros e várias reuniões entre diversos arguidos: No dia 11.12.2001, até às 19:40, FF reuniu-se com AA e BB no stand de venda de carros que estes exploravam na Rua Luís Cristino, em Lisboa. Pelas 20:19, FF chegou ao seu armazém de Galinheiras para receber a droga, mas a entrega foi adiada. No dia 12.12.2001, mais uma vez, pelas 10:27, FF aprestou-se a receber o carregamento de drogas numa sua garagem, o que não veio a ter lugar. Depois, pelas 12:32, FF e GG reuniram-se, no carro “Mercedes Benz” ....., no parque de estacionamento do supermercado “Intermarché” de Póvoa de Stª Iria. E, depois, reuniram-se no mesmo dia e no mesmo local, pelas 13:03. O carregamento seria entregue a FF por GG, este trabalhando para CC. Para isso, no dia 12.12.2001, FF e dirigiu-se ao Estoril, ao volante do carro “Audi A6 2.5 TDI”, ...., aparcou pelas 21:07 na Av. Aida, sita nas proximidades do Casino Estoril, recebeu telefonemas e telefonou aos restantes arguidos. Pelas 21:16, FF reuniu-se pessoalmente com DD e estiveram negociando nos jardins do Casino Estoril. A entrega foi momentaneamente adiada pois não dispunham de uma viatura apta a transitar por más estradas, meio necessário para se chegar ao armazém onde conservava as drogas. Para suprir essa carência, FF telefonou a GG e pediu-lhe emprestado o seu jipe “Land Rover Defender 90” ..... Entretanto, AA compareceu no local acompanhada de um quarto indivíduo, indo ela no carro “Opel Vectra” .... BB, FF e o tal quarto indivíduo trataram durante cerca duma hora da compra e venda do haxixe. Pelas 22:30, GG foi levar às proximidades do Casino do Estoril, a FF, BB e ao indivíduo que os acompanhava, o seu jeep .... Esse carro destinava-se, como GG bem sabia, a ser deixado em local combinado com EE para este nele se transportar até ao armazém onde conservava o haxixe, carregá-lo com a droga e devolvê-lo a FF depois de carregado. Estavam no local o jipe ..., cedido por GG, para transportar a droga, e o “Opel Vectra” .... para deslocação de BB. Os arguidos abandonaram a zona pelas 22:40. Simultaneamente, o desconhecido que os acompanhava entrou para o referido jipe e transportou-o até à Av. da Fé, nas proximidades de Albarraque, Sintra, onde o deixou aparcado. No dia 13.12.01, pelas 05:00, FF dirigiu-se ao Estoril a fim de receber o jipe carregado de haxixe. Pelas 07:03, aparcou o seu Opel Vectra ..., no qual se transportava, na Praça Almeida Garrett, proximidades do Casino Estoril, e conservou-se no interior. Pelas 07:28 compareceu nesse local, apeado, DD. Contactou FF, este saiu do carro onde se encontrava e encaminharam-se para o “Opel Vectra”, que nessa ocasião ostentava chapas com a matrícula nº .... Este carro estava aparcado na mesma artéria, a cerca de 15 metros do primeiro, e fora aí deixado por DD. Ambos os arguidos entraram para esta segunda viatura e seguiram nela até à Rua de Lisboa, da localidade do Estoril, onde estava aparcado o jipe. Aí chegados, FF apeou-se e encaminhou-se para esse jipe enquanto DD se afastou no “Opel”, que ostentava a matrícula .... De seguida, FF entrou no jipe, onde se encontrava seu filho II, de 13 anos de idade, não obstante a sua actividade envolver narcóticos. No interior do jipe “Land Rover Defender 90”, ..., os arguidos conservavam seiscentos e vinte (620) pacotes, vulgo “sabonetes”, de resina de cannabis [resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da espécie botânica Cannabis sativa L., vulgarmente conhecida como haxixe, produto vegetal prensado composto por um triturado de sumidades secas floridas ou frutificadas do pé fêmea da referida planta ao qual serve de ligante a resina da própria planta], com o peso de 159.300,4 g. Uma parte de tais “sabonetes” apresentava em relevo as marcas de fabricantes: ou um n.º 1 ou um losango que tem parecenças com o emblema das viaturas “Renault”.
H) (...)
I) Esse jipe fora comprado por GG no stand “Estefaniacar”, em Lisboa, por 4.200.000$, no dia 24 de Novembro de 2001.
J) No dia 17.12.2001, pelas 11:30, procedeu-se a busca à casa de morada de AA e BB, sita na Rua de Moçâmedes, Parede. No quarto dos arguidos, estes conservavam 4 cartões de segurança de cartões de telefone móvel, 4 telefones móveis, papéis diversos e 1.098.000$ em maços de notas nacionais então correntes. No armário desse quarto, ocultavam uma balança digital , para pesagens até 5 quilogramas, de que se serviam para procederem à pesagem da heroína que compravam, armazenavam e revendiam. Na carteira, AA conservava 77.000$ em notas. Por sua vez, BB guardava na carteira 20.000$ em notas e um papel onde estavam manuscritos os números de contacto telefónico com JJ, aí referido por “Brasuca”. (...)
P) Q) No dia 18.12.2001 foi passada busca ao stand de que AA e BB dispunham na Rua Luís Cristino da Silva, em Chelas, Lisboa, onde foram encontrados e apreendidos papéis diversos e o “Opel Vectra” ...., comprado por GG a LL(...).
S) Em finais de 2000 ou princípios de 2001, JJ conheceu, na noite da cidade do Porto, MM. Passou a vender-lhe pastilhas de “ecstasy”, quando se encontravam em discotecas, quer para seu consumo pessoal, quer de amigos seus, que também se encontravam nas mesmas discotecas. MM procedeu à revenda de tais pastilhas, aos seus amigos, em estabelecimentos nocturnos da zona da cidade do Porto, por preços que variavam entre 1.000$ e 1.500$ cada pastilha.
T) Em Dezembro de 2001, NN, em conjugação de intentos com JJ, seu namorado, dirigiu-se à agência de mediação de imóveis “L.G. Castro, Lda.”, na Rua da Boavista, Porto, e arrendou um apartamento sito na Rua São Romão, Urb. Maninho, Maia, incluindo lugares de garagem e arrumos, a fim de aí morarem e conservarem as drogas que comercializavam e as armas de que eram donos. Pagaram 600.000$ de entrada. (...)
V) No dia 01.02.2002, pelas 17:00, MM dirigiu-se a JJ e NN e entregou àquele um saco de plástico com o pagamento dum conjunto de pastilhas duma substância laboratorialmente produzida à base do princípio activo MDMA [metilenadioximetanfetamina], vulgo ecstasy, que estes lhe tinham vendido. JJ guardou esse saco no interior do seu carro “Honda Prelude” ..., onde depois foi encontrado e apreendido (129.000$ em notas nacionais então correntes e € 4.435,00 em notas europeias correntes). Esse carro era usado por JJ e NN nas deslocações a que procediam no âmbito dessa actividade, nomeadamente quando contactavam os seus “clientes” e deles recebiam pagamentos das substâncias estupefacientes que vendiam.
X e Y) No dia 01.02.02, na ocasião em que foi detido, JJ trazia com ele o seguinte: - a pistola da marca “Lebasque” com o nº ..., de calibre 7,65 mm, com o carregador municiado com 9 munições do mesmo calibre; - a carta de condução da titularidade dum cidadão brasileiro de nome OO com o nº .... emitida em Málaga-Espanha no dia 11.2.98; - o bilhete de identidade deste, com o nº ..., emitido pelo Ministerio del Interior espanhol; - 15.000$ em notas nacionais correntes, e - € 10 em notas europeias correntes. A carta de condução e o bilhete de identidade de OO apresentam removida a fotografia do titular e, no respectivo campo, apostas fotografias de JJ. Tais documentos haviam sido por este alterados, ou por outrem segundo as suas instruções, e estavam em poder do arguido para que este os apresentasse quando interpelado por entidades oficiais ou privadas perante as quais quisesse ocultar a sua identidade. O arguido sabia que a feitura e o preenchimento de tais documentos estão reservados pela lei espanhola aos órgãos desse Estado. Sabia também que tais documentos se destinavam a garantir, perante quaisquer entidades públicas ou privadas, que o teor do respectivo preenchimento correspondia à verdade. Sabia também que a Coroa Espanhola visa garantir a identidade e as habilitações legais dos seus súbditos no seu território e no estrangeiro, não obstante o que se propôs obstar a tanto e diminuir a fé pública na documentação oficial desse Estado.
Z) No dia 01.02.2002, na ocasião em que foram detidos, JJ e NN conservavam no seu carro “Honda Prelude”, ..., o seguinte: - 129.000$ em notas nacionais correntes; - € 4.435 em notas europeias correntes; - 1 telefone móvel “Siemens SL 45“, e - 1 telefone “Nokia 8310” com bateria e cartão Optimus. As referidas verbas eram as referentes ao pagamento de pastilhas de ecstasy recebido momentos antes por JJ das mãos de MM. Na ocasião em que foi detido, JJ trazia com ele diversos documentos e diversos pedaços de papel com inscrições manuscritas. Entre estes contava-se o de fls. 1751, § 1º, com o seguinte teor: “PP, 1000 pastilhas, 10 k choco; QQ 5 k 10 k; RR deve 1300; SS 90. DOLD.” Estas anotações são referentes às vendas de pastilhas de ecstasy e de haxixe feitas por JJ e NN a diversos indivíduos por eles abastecidos das aludidas substâncias. Refere a venda de 25 quilogramas de haxixe e de 1.000 pastilhas de ecstasy, para além de dívidas a cobrar posteriormente pelo fornecimento dessas substâncias a terceiros.
AA) No dia 01.02.2002, JJ e NN conservavam no interior de sua casa, sita à Rua de São Romão, Urbanização Maninho, Maia, bem como na respectiva garagens e nos seus arrumos, o seguinte: - um conjunto de “sabonetes” de resina de cannabis [resina separada, em bruto ou purificada, obtida a partir da espécie botânica Cannabis sativa L., vulgarmente conhecida como haxixe, produto vegetal prensado composto por um triturado de sumidades secas floridas ou frutificadas do pé fêmea da referida planta ao qual serve de ligante a resina da própria planta], com o peso de 32.452,6 g; - um conjunto de “placas” de resina de cannabis na sua variante de pólen de haxixe, com o peso de 5.796,5 g; - 1 saco de plástico que continha 7.859 comprimidos de uma substância laboratorialmente produzida à base do princípio activo MDMA [metilenadioximetanfetamina], vulgo ecstasy, com o peso de cerca de 1,9 quilogramas; - 420.000$ em notas nacionais correntes; - € 4.460 em notas europeias correntes; - 1 espingarda automática da marca “Kalachnikov” de calibre 5,52 NATO, com uma alça telescópica, com dois carregadores próprios para a mesma e com um tapa-chamas suplementar; - 158 munições de calibre 5,52 NATO, perfurantes; - 1 pistola “Browning” de calibre 6,35 mm sem número visível, com carregador, municiada com 2 munições de calibre compatível; - 1 caixa que continha 16 munições de calibre 7,65 mm; - 1 carregador sem marca para munições de calibre 7,65 mm; - 1 telefone móvel da marca “Nokia 8210“, com bateria e sem cartão; - 1 telefone móvel da marca “Nokia 8310“, com bateria cartão Optimus; - 1 telefone móvel da marca “Nokia 8850“, com bateria e sem cartão; - 1 cartão de ligação à rede espanhola Movistar; - 1 par de chapas de matrícula com o nº ...; - 1 máquina fotográfica “Pentax Z10”, com objectiva 70/210 mm da marca “Sigma”, e - um conjunto de papéis, entre os quais o de fls. 701, no qual os arguidos registaram verbas recebidas e a receber referentes a vendas de drogas no valor total de 28.667.500 pesetas de Espanha, e os de fls. 1756 e ss.. - As substâncias estupefacientes assim encontradas eram destinadas por JJ e pela arguida NN a serem distribuídas por compradores diversos. Entre os papéis encontrados conta-se o recibo de aluguer dum carro usado por CC quando esteve em Portugal entre os dias 27.12.2001 e 21.1.2001. Conta-se igualmente o pedaço de papel constante de fls. 1757, referente ao registo de vendas de haxixe totalizando 136 quilogramas dessa substância, vendas feitas por JJ e NN a diversos compradores (“Luk”, “J”, e “Primo”). Também o pedaço de papel de fls. 1758 é o registo de vendas de cerca de 50 kg da mesma substância. Estes papéis, bem como os de fls. 1759 e ss., registam receitas de venda de drogas no valor de dezenas de milhares de contos, arrecadadas por JJ e NN antes de detidos. No mesmo sentido, a agenda de que estes arguidos dispunham na casa onde viviam regista movimentos de vendas de centenas de quilograma de haxixe — quer na sua modalidade habitual quer na nova variedade de pólen de haxixee de dezenas de milhares de pastilhas de ecstasy no montante de dezenas de milhares de contos.
BB e CC) JJ e NN eram donos de três carros e duma moto em que alternadamente se transportavam nas actividades do dia a dia e também no âmbito da actividade aqui descrita. Os carros foram apreendidos no dia 01.02.2002: - “Skoda Octavia” ...; “Mazda MX5 ... e “Honda Prelude“.... A moto foi apreendida no dia 20.2.2002 na garagem pertencente a um amigo (Suzuky Bandit ..., comprada em Novembro de 2001 e registada em nome do pai de JJ. O “Honda Prelude”...fora comprado em finais de Dezembro de 2001. O “Skoda Octavia”, que ostentava as chapas de matrícula ...., era usado por JJ e NN na actividade de compra, transporte e revenda de drogas, transportando-se nele como se lhes pertencesse e de acordo com as suas necessidades. Fora tirado ao dono em França, correspondendo-lhe o pedido de apreensão Schengen nº F 0002296451043 0000 2. A numeração que o carro ostentava estava, na realidade, atribuída pelo Estado português a um carro da mesma marca e do mesmo modelo mas pertencente a um tal TT.
DD-EE- FF) NN foi detida à ordem destes autos, pela primeira vez, no dia 01.02.2002, mas, sujeita no dia seguinte ao interrogatório judicial, foi restituída à liberdade. Simultaneamente, JJ ficou sob regime de prisão preventiva à ordem destes autos. Recuperada a sua liberdade, NN manteve-se em contacto telefónico com o companheiro, que lhe deu então indicações para contactar os clientes do casal, aos quais haviam vendido haxixe, pólen de haxixe e ecstasy, a fim de reunir as verbas das vendas efectuadas mas ainda não pagas, para assim o casal reunir dinheiro para prover às suas necessidades — quer às necessidades de alimentação, transporte, habitação e restantes despesas de NN, quer às necessidades de suporte das despesas com o advogado de JJ neste processo. Este deu à sua namorada igualmente instruções para entrar em contacto com CC a fim de lhe explicar a actual situação dos arguidos e também a fim de o alertar para não ser encontrado, detido e responsabilizado pelos seus actos perante as autoridades portuguesas, de modo a não ser julgado, encarcerado nem cumprir a pena que lhe coubesse em conformidade com a lei e com os tribunais de Portugal. Em cumprimento de tais instruções, CC entrou em contacto com a mulher de CC, a quem a arguida explicou que o companheiro estava preso e que a polícia apreendera as drogas ainda não vendidas e o dinheiro proveniente de vendas anteriores. Então, NN, em obediência ao plano traçado por JJ, alertou a mulher de CC para o facto de ele estar sob investigação e afirmou mesmo que estava no processo uma sua fotografia. Assim alertada, a interlocutora passou a dispor de conhecimentos que permitiriam a seu marido evitar contactos com as autoridades policiais portuguesas, e não se deslocar a este país, ao contrário do que fazia anteriormente. Por outro lado, NN entrou em contacto pelo telefone com um conjunto de indivíduos a quem anteriormente tinham vendido as substâncias acima referidas e passou a exigir-lhes o pagamento das verbas correspondentes ao preço das drogas que lhes tinham vendido e que ainda não estavam pagas. Desse conjunto de indivíduos fizeram parte diversos cujos nomes não foram mencionados e também outros referidos como UU, VV e RR. NN recebeu efectivamente verba em dinheiro, de montante não inteiramente apurado, e disso deu notícia por via telefónica a JJ numa ocasião em que este lhe ligou por telefone do interior da prisão. Uma parte dessa verba viria depois a ser encontrada em poder de NNe foi apreendida.
GG) No dia 20.02.2002, após tais telefonemas e recebimentos, procedeu-se a uma busca à casa da Rua São Romão, na urbanização Maninho, Maia, onde NN o vivia. Foram encontrados e apreendidos: € 400 em notas europeias correntes; 1 telefone móvel da marca “Nokia 8210“ com bateria e cartão; 1 telefone móvel “Samsung SGH-N100“ com bateria e cartão; 6 cartões de ligação e telemóveis às redes nacionais TMN, Telecel e Optimus e à rede espanhola Movistar; 2 agendas, e papéis diversos. Entre essas agendas contava-se aquela cujo teor se mostra reproduzido a fls. 1919 e ss., em que NN registara dados referentes à sua actividade de narcotráfico, quer referentes ao período durante o qual se dedicou a tanto em conjugação com JJ, quer referentes ao período que mediou entre a sujeição dele e a sujeição dela a prisão preventiva. O teor de tal agenda inclui: - números de telefones de indivíduos aos quais haviam vendido haxixe e pastilhas de ecstasy consoante atrás referido, indivíduos ainda não identificados nos autos: “RR”, “XX”, “ZZ, etc., - os números de telefone e de fax de CC; - o número de telefone de AA, conhecido da arguida pela alcunha de “...”, e - listas de verbas recebidas por NN junto de compradores de estupefacientes vendidos pelo casal.
HH-II) JJ, NN e MM não exerciam, aquando da detenção a 1/2/2002, qualquer actividade remunerada. As respectivas despesas de habitação, transporte, vestuário e lazeres eram então financiados com os ganhos que auferiam na actividade de compra, transporte, armazenamento e revenda de estupefacientes. No dia 1.2.2002, na ocasião em que foi detido, MM tinha em seu poder € 690 em notas e moedas europeias correntes, destinado a pagar a JJ entregas de pastilhas de ecstasy.
JJ) Os arguidos sabiam que é proibido comprar, transportar, guardar, consumir, embalar e vender as referidas substâncias, cuja composição química conheciam. Igualmente sabiam que o consumo de drogas põe em risco a saúde das pessoas que se dedicam a essa actividade. Conheciam os perigos a que os mesmos indivíduos se expõem, e expõem as pessoas que lhes são próximas, de transmissão de doenças incompatíveis com a vida. Sabiam, por fim, que os consumidores de drogas se dedicam crescentemente a apoderar-se de bens alheios a fim de financiar a sua toxicodependência. Os arguidos conformaram-se voluntariamente com a produção de todos esses resultados.
LL) Os arguidos em poder dos quais foi encontrado armamento e munições sabiam que a detenção de armas de fogo está limitada aos que manifestem essas armas à administração pública, e que o respectivo uso está igualmente limitado pela Lei aos que são titulares de licença concedida pelo Estado português para esse efeito. Esses arguidos detinham o armamento atrás referido sem o terem manifestado e sem serem titulares de habilitação para o efeito.
MM) A actividade dos arguidos FF, AA, BB, GG, JJ e NN visava difundir as substâncias que transaccionavam por largo número de indivíduos, número insusceptível de contabilização exacta mas estimável na casa das dezenas de milhares, para em troca receberem verbas consideráveis, da ordem dos milhares de contos, que lhes permitiram fazer despesas e beneficiar dum bem-estar material largamente superior àquele de que beneficiariam se se dedicassem a trabalhar dentro da lei. Os veículos atrás referidos foram utilizados pelos arguidos na sua actividade ilícita e o dinheiro apreendido foi obtido pelos mesmos com os lucros de tal actividade.
NN) Todos os arguidos agiram livre e conscientemente, bem sabendo que as respectivas condutas eram proibidas por lei.
OO) BB trabalhava juntamente com o marido, AA, no stand de automóveis. Auferiam um lucro médio de cerca de 750 euros. Tem o 3º ano de engenharia química. A arguida tem os seguintes antecedentes criminais: - respondeu em 1997 por um crime de tráfico ilícito de estupefacientes cometido em 1996, tendo sido condenada na pena de 8 anos de prisão, que cumpriu desde a data da condenação até que, no dia 2.4.2000, lhe foi concedida liberdade condicional pelo período compreendido até ao dia 27.2.2004. (...)
RR) AA trabalhava, juntamente com a co-arguida BB, sua esposa, no comércio da venda de automóveis, auferindo um lucro médio mensal de cerca de 750 euros. Vivia com a arguida BB, o filho desta, com 9 anos de idade e os sogros. É doente cardíaco e move-se de muletas. Tem a 4ª classe. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: - respondeu em 1976 por um crime de furto, tendo sido condenado em pena de 18 meses de prisão, que cumpriu; - respondeu em 1980 por um crime de falsificação de veículos e foi condenado em pena de 2 anos e 3 meses de prisão, depois parcialmente perdoada, e cujo remanescente cumpriu; - respondeu em 1985 por crimes de burla, de passagem de moeda falsa e de falsificação de documentos, tendo sido condenado em pena única de 5 anos de prisão, que cumpriu desde a data da condenação até ao dia 5.7.91, e - respondeu em 1992 por um crime de tráfico agravado de estupefacientes cometido em 1991 e foi condenado em pena de 9 anos de prisão e em 2.500.000$ de multa, que cumpriu desde a data da condenação até ao dia 10.12.2000. (...) O arguido AA, no passado, colaborara com a Polícia Judiciária, como informador, tendo as informações prestadas, nalguns casos, levado à apreensão de estupefacientes.
TT) O veículo “Opel Vectra” ... foi comprado pelo arguido GG a LL, por troca por um “Toyota MR-2”, tendo-lhe ainda entregue uma aproximada de cerca de mil contos. (...) Posteriormente, AAA, como comerciante de automóveis, acedeu em colocar no “stand” do arguido AA, denominado “Auto 240-Comércio de Automóveis, Lda.”, um conjunto de automóveis à comissão, entre os quais se encontrava o tal Opel Vectra. O veículo foi utilizado no dia 12/12/2001, com o consentimento do arguido AA, às ocultas e sem consentimento do AAA, pela arguida BB e ainda nesse dia e no seguinte, pelo arguido FF. O veículo foi apreendido em 18/12/2001, data a partir da qual o demandante se encontra privado de utilizá-lo ou de o vender. (...)
XX) O arguido JJ era fresador de 1ª. Trabalhava como barman numa discoteca, em Marbella, Espanha, local onde conheceu CC. Começou a trabalhar para este na comercialização de automóveis, entre Espanha e Portugal. Auferia entre 5000 a 7500 euros, mensais. Vivia a maior parte do tempo em Espanha. Aquando dos factos, vivia com a arguida NN no Porto, no apartamento que aí haviam arrendado. Não tem antecedentes criminais.

8. Factos resultantes da decisão proferida no processo n.º 458/03, do 4.º Juízo do Tribunal Criminal de Cascais:

      Nada se provou relativamente à matéria da acusação, nomeadamente que p arguido tenha travado conhecimento com JJ em finais de 2000, juntamente com um indivíduo conhecido por Mohamed, tendo combinado com aquele passar a fornecer-lhe resina de cannabis e pólen de haxixe, para que o. Mesmo o transportasse para Portugal e aqui o comercializasse, o que teria passado a fazer.
Que o arguido tenha fornecido a AA amostras de resina de haxixe, para que este sondasse o mercado a fim de apurar qual das quatro aqui tinha melhor aceitação, ou que lhe tenha fornecido do referido produto.
Que tenha fornecido haxixe a FF, por intermédio de DD, que para si trabalharia.
Que tenha transportado haxixe.de Espanha para Portugal, juntamente com JJ.
Que o arguido tenha entregue a JJ uma pistola de calibre 7, 35..mm e uma metralhadora Kalachnikov, apreendidas a este, para que o mesmo procedesse à sua venda em Portugal.
Que o arguido tenha sido contactado por NN que o informou que JJ havia sido. .detido, e que …havia, .sido apreendida droga que’não fora vendida e dinheiro.
Que NN e JJ o tivessem os contactos do arguido.
Nenhuma prova documental contra o arguido se mostra junta aos autos e nenhuma das testemunhas inquiridas conhecia directamente do envolvimento do arguido nos factos da acusação, nomeadamente JJ e AA, que não confirmaram ser o arguido quem lhes fornecia droga para transaccionarem em Portugal.

9. O recurso extraordinário de revisão de sentença é estabelecido e regulado pelo Código de Processo Penal, como também pelo Código de Processo Civil, como forma de obviar a decisões injustas, fazendo-se prevalecer o princípio da justiça material sobre a certeza e segurança do direito, a que o caso julgado dá caução. Com efeito, este tem na sua base «uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade …», como observou EDUARDO CORREIA, in Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Livraria Atlântida, 1948 p. 7). Porém, não se pode levar longe de mais a homenagem tributada a tal princípio, de reconhecida utilidade pela estabilidade e certeza que proporciona do ponto de vista das necessidades práticas da vida, do ponto de vista do próprio direito, que, de contrário, perderia credibilidade com a possibilidade de julgados contraditórios, reflectindo-se na estruturação da própria organização social, e do ponto de vista da paz jurídica, que é um objectivo a que almejam os cidadãos.
Mas nem tudo se alcança só com a estabilidade e a segurança, mormente se o sacrifício da justiça material - esse princípio estruturante de qualquer sociedade e pedra de toque de um Estado de direito democrático, que tem a dignidade humana como valor supremo em que assenta todo o edifício social e político – fosse levado a extremos que deitassem por terra os sentimentos de justiça dos cidadãos, pondo-se, assim, em causa, por essa via, a própria estabilidade e a segurança, que se confundiriam com a «tirania», como opinou CAVALEIRO DE FERREIRA (cit. por MAIA GONÇALVES no seu Código de Processo Penal Anotado, 10ª Edição, p. 778) ou com a «segurança do injusto», na expressão de FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 44).
E se tanto no processo civil como no processo penal a certeza e a segurança do direito cedem, em certos casos, ao triunfo da justiça material, há-de convir-se que no processo penal esta se impõe com muito mais pujança, dado o realce diferente e mais exigente de certos princípios que constituem a raiz mesma dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Daí que a Constituição no art. 29.º n.º 6 estabeleça: «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.
A revisão extraordinária de sentença transitada, se visa tais objectivos, conciliando-os com a necessidade de certeza e segurança do direito, não pode, por isso mesmo, ser concedida senão em situações devidamente clausuladas, pelas quais se evidencie ou pelo menos se indicie com uma probabilidade muito séria a injustiça da condenação, dando origem, não a uma reapreciação do anterior julgado, mas a um novo julgamento da causa com base em algum dos fundamentos indicados no n.«º 1 do art. 449.º do CPP:
- A decisão transitada ter assentado em falsos meios de prova, reconhecidos em outra sentença transitada em julgado;
- Tiver sido feita prova, também por sentença transitada, de crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com a sua função no processo;.
- Os factos em que assentou a decisão serem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e daí resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
- Descoberta de novos factos ou meios de prova, que, de per si ou combinados com os do processo suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

10. O caso dos autos enquadrar-se-ia no terceiro dos fundamentos indicados – um dos fundamentos da designada revisão pro reo e que diz respeito à revisão da sentença condenatória, tendo por base a inconciliabilidade dos factos dados como provados nessa decisão com os dados como provados noutra, daí devendo resultar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, ou seja, dúvidas tão sérias, que se ponha fundadamente o problema de o condenado poder vir a ser absolvido, embora se não ponha necessariamente o problema da sua inocência. Desse modo, sendo de concluir que a decisão condenatória assentou, com toda a probabilidade, num erro de facto, aqui indiciado pelo carácter contraditório dos factos dados como provados numa e noutra das decisões, concede-se a revisão para que, em novo julgamento da causa, se obtenha uma nova decisão. Assim é que o recurso de revisão não consiste numa reapreciação ou reexame do anterior julgado.
Sustenta o recorrente que os factos dados como provados na decisão condenatória brigam com os dados como não provados na decisão absolutória proferida pelo 4.º juízo Criminal de Cascais, revestindo tal contradição natureza fundamental.
Diz o recorrente:
«⌠Os⌡ factos considerados provados no processo em que os Recorrentes foram condenados estão em manifesta contradição com os factos dados como assentes no processo de CC;
Mais, esta contradição e oposição não tem carácter despiciendo, antes revestindo natureza fundamental;
Na verdade, a condenação dos aqui Recorrentes no tráfico agravado de estupefacientes assenta na existência de um fornecedor que fornecia o produto para posterior comercialização;
Foi considerado facto provado, no processo dos Recorrentes, que o fornecedor do produto estupefaciente comercializado por estes era o CC;
Ou seja, foi dado como assente que os Recorrentes recebiam o produto estupefaciente do CC, para assim o poderem posteriormente comercializar, recebendo os proventos desta actividade ilícita;
Uma vez que no processo crime que correu contra CC este foi ilibado contudo de todas as acusações, sendo provado que este não forneceu droga aos Recorrentes para estes posteriormente a comercializarem, c ai por terra a base de sustentação fáctica da condenação dos aqui Recorrentes.

Ora, em primeiro lugar, a inconciliabilidade entre factos que tenham sido considerados nas duas decisões tem de materializar-se numa contradição entre factos provados, como decorre claramente da proposição normativa: os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença -, e não entre factos provados e factos não provados.
Na verdade, só existe verdadeira contradição para o efeito que aqui interessa, entre factos provados que se não conciliem. Só a contradição daí resultante é capaz de gerar graves dúvidas sobre a justiça da condenação, como sucederá, por exemplo, se numa decisão se der como provado que A matou B e noutra se tiver dado como provado que a morte de A resultou da sua queda involuntária num precipício. Já o mesmo não sucede se num processo se tiver dado como provado que A matou B e noutro tiver ficado não provado que a morte de A resultou de uma acção de B.
É que, como salienta o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, «não há contradição entre factos provados e factos não provados. A falta de prova de um facto não é a prova do seu contrário. Um facto não provado não é sequer um facto: é precisamente a ausência de um facto».
É que é perfeitamente admissível que um facto tenha sido dado como provado num processo, com determinados meios de prova, e não tenha sido dado como provado noutro processo diferente, em que tenham sido produzidos meios de prova diferentes, ou até nenhuns. Não há aqui contradição alguma. Cada julgamento tem de ser avaliado no seu contexto. A circunstância de um facto não ter sido considerado provado num determinado contexto, não retira qualquer validade ao julgamento feito noutras circunstâncias e noutro contexto processual, em que o mesmo facto foi dado como provado. Isso não significa contradição de julgados que justifique a revisão da decisão onde o facto ficou provado e deu azo a uma condenação. O que significa é que num julgamento se fez prova do facto e noutro não se fez prova. Mas daí vai concluir-se que o arguido foi mal condenado no julgamento onde o facto foi dado como provado? Ou que subsistem dúvidas graves sobre a justiça da condenação?
A contradição entre factos provados e não provados só é relevante se no mesmo processo ela gerar uma contradição insanável na fundamentação (por exemplo dar ao mesmo tempo o mesmo facto como provado e não provado), conduzindo ao reenvio do processo para novo julgamento, se o vício não puder ser sanado com os elementos que já existem no processo. Porém, para efeitos de revisão da sentença condenatória, em que estão em causa duas decisões emanadas de julgamentos diferentes, a contradição tem de ser entre factos provados, e tem de ser uma contradição capaz de pôr em causa de forma séria a justiça da condenação – uma contradição fundamental ou essencial e não uma contradição meramente secundária ou circunstancial. A contradição entre factos provados e não provados não tem essa virtualidade pelas razões apontadas.
Ainda dentro deste âmbito em que nos temos movido, os recorrentes sustentam, distorcendo os factos de modo a levarem a água ao seu moinho que «Uma vez que no processo crime que correu contra CC este foi ilibado contudo de todas as acusações, sendo provado que este não forneceu droga aos Recorrentes para estes posteriormente a comercializarem, cai por terra a base de sustentação fáctica da condenação dos aqui Recorrentes».
Ora, não ficou provado que CC não tenha fornecido droga aos recorrentes. Se assim fosse, as coisas poderiam mudar de figura. O que ficou é não provado que o arguido ⌠CC⌡tenha fornecido a AA amostras de resina de haxixe, para que este sondasse o mercado a fim de apurar qual dos quatro aqui tinha melhor aceitação, ou que lhe tenha fornecido do mesmo produto».
No processo da condenação, ficou, pelo contrário provado que, no dia 5/12/2001, AA e sua mulher BB receberam 4 amostras de resina de cannabis (…) que lhe foram entregues por CC.
Mas, como dissemos, tal não briga de forma alguma com o facto anterior. E, por outro lado, os factos num e noutro processo são diferentes, mais complexos, envolvendo outros meios, outros figurantes, outras acções (inclusive acções independentes da actuação de CC), outras drogas, que não apenas resina de haxixe e até outro contexto temporal.
Por conseguinte, o facto de não ter ficado provado no processo que terminou pela absolvição de CC um segmento de facto que ficou provado no processo da condenação dos recorrentes, não significa que esta prova positiva tenha ficado toldada pela não prova naquele e muito menos que toda a restante factualidade provada, que é muito mais vasta do que esse segmento, esteja inquinada por essa ausência de prova. Ora, os recorrentes, esforçando-se por tirar de cena o tal CC, a pretexto de o tribunal da condenação o ter dado como seu fornecedor, o que só parcialmente corresponde à realidade dos autos, pretendem, para além do já dito, que toda a complexa factualidade dada como provada e revelando autonomia por parte dos recorrentes e ligações a outras pessoas, esteja em contradição com a não prova de uma factualidade muito menos abrangente, como é a do processo onde foi julgado CC.
Em suma, não precisaremos de continuar a nossa análise para demonstrar que o recurso interposto não tem fundamento.


III: DECISÃO
11. Nestes termos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelos recorrentes AA e BB.
12. Custas pelos recorrentes com 6 Ucs. de taxa de justiça por cada um.
  1. Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Fevereiro de 2006
  2. Rodrigues da Costa (relator)

    Arménio Sottomayor

    Carmona da Mota

    Pereira Madeira


_________________________________
1-Examinada a fls. 613, revelou a presença de resíduos da referida substância [3,6-diacetoxi-4,5-epoxi-17-metil-morfineno; diacetilmorfina preparada por acetilação a partir do suco obtido das cápsulas da espécie botânica Papaver Somniferum (L.)].